sexta-feira, 30 de maio de 2003

Barbie

Não era meio-dia, não tinha acordado de ressaca, não precisaria roubar absorventes da sua cunhada. Ainda assim, levantou um pouco zonza da cama, viu por uma persiana que a empregada da casa de seu namorado-quase noivo estava perto de terminar o almoço e caminhou descalça para alimentar os hamsters e trocar a água. Passaram trinta minutos no rádio-relógio, para que ela, depois de fumar seu segundo cigarro na varanda e olhar todas aquelas casas condenadas, depois de guardar no cesto duas ou três roupas dele espalhadas pela sala, depois de escutar a canção-tema do Globo Espetacular, pa-pa-pa-pa pa-pa-pa, precisou admitir que não era mais capaz de conduzi-lo até onde ela queria chegar, que mesmo que desejasse muito, quisesse muito, sonhasse muito, simplesmente não conseguiria reverter a mortificação dos corpos. Tinha cansado das tangentes viciosas, não aguentava mais comparar o que tinha sido com o que estava sendo, os olhares daquela terça e os olhares de ontem, de tal modo que, num ímpeto de felicidade e confusão, num ímpeto de força que quase a deixou ser ar, se tornou uma dessas mulheres que cada vez mais estão preparadas não apenas para o fim como para dez mil passos além.

quinta-feira, 29 de maio de 2003

Lojas Americanas

Fiquei sabendo há poucas horas de uma história engraçadinha e ordinária que aconteceu com uma amiga minha. Ok, pra ela deve ter sido super foda, mas como estou aqui pra rir da desgraça alheia, vou adentrar pelo lado humorístico da coisa. Essa minha amiga costumava pegar coisas nas Lojas Americanas e não pagar, geralmente material escolar, tipo folhas de fichário, caneta, lápis, borracha, corretivo. Acontece que na sua última investida, ela foi pega pelos seguranças da loja e isso ocorreu justamente quando, mais ousada, tinha decidido fazer seu primeiro roubo de médio porte. Pois é, tava fazendo a feira escolar. Não sei bem como foi a abordagem inicial, se foi algo escandaloso presa-em-nome-da-lei-pessoas-correndo ou algo na linha serviço-secreto-tudo-silencioso-e-discreto, só sei que a levaram para uma sala, fico imaginando aquelas salas vazias com uma cadeira no centro, e deixaram ela lá esperando os seus pais chegarem. Passados uns vinte minutos, o segurança voltou e não fez o esperado e clichê terror psicológico, pelo contrário, avisou de antemão que ela não ia descer para o "bom pastor" porque era 'dimenor', nem que ia parar na DPCA porque não tinha cara de 'alma sebosa'. Daí chega o pai, pensa logo que alguém havia servido de cúmplice ou mentor até a própria, queridinha-xixuxa, afirmar que estava 'agindo sozinha'. Putz, eu pagava pra escutá-la dizendo isso. Obviamente depois de tudo resolvido, seus pais tiveram uma longa conversa, perguntaram se estava com algum problema, se queria ajuda médica, se estava fumando maconha, o básico de sempre na tentativa de entender o que tinha levado sua filhinha-queridinha-xixuxa a fazer aquilo. Claro que a garota se fez de vítima pra sair na boa. Ficou acertado que ela não seria punida porque claramente estava passando por um momento delicado e que este fato se manteria escondido do resto da família. Bem típico da classe média. Só sei que no mesmo dia ela me disse que foi para o bigode jogar dominó e se a bem conheço, beber vinho carreteiro. Eita, quase ia esquecendo de um detalhe importante: claro que quando o pai dela chegou na loja, a primeira coisa que ele pediu para ver foi a fita do sistema de segurança, daí alertaram que se ele visse a fita, a famigerada fita, o caso seria levado ao tribunal. Pelo que consta, rolou ainda um momento moral-da-história-em-forma-de-ameaça por parte de algum responsável da loja, dizendo que se ela se envolvesse em outra empreitada dessa em qualquer uma das Lojas Americanas, não ia ter boquinha, ia direto para a DPCA. Se eu estivesse por lá não deixaria de lembrar que ela completa 18 anos no final do próximo mês. De qualquer forma, tenho que admitir que adoro mesmo meus amigos por me nutrirem de furadas tão legais e originais: a cereja do bolo é o simples fato de que essa amiga, toda certinha, era uma das quais eu achava impossível passar por uma dessa. Ainda bem que as pessoas mudam. Só assim para nos surpreenderem.

segunda-feira, 19 de maio de 2003

Óptica

Olhos de vidro, de espelho quebrado, de rosto ferido: os vesgos olhos estão fechados nesse vivo corpo de eterna cegueira.

quinta-feira, 15 de maio de 2003

Utopias

"A vida deveria ser de trás para frente. Nós deveríamos morrer primeiro, se livrar logo disso. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante para puder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, faz festas e se prepara pra faculdade. Você vai para o colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta para o útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando e termina tudo com um ótimo orgasmo!!!"

(Supostamente) Charles Chaplin

sábado, 10 de maio de 2003

:

Conto os dias nos dedos, faço risquinhos nas paredes, guardo as unhas dos pés.

domingo, 4 de maio de 2003

Cerveja

Aí deu uma vontade louca de tomar cerveja, daquelas que você fica feliz só pela vontade, liguei para minha companheira oficial de cachaça ltda e ela recusou toda braba porque tinha que fazer brigadeiro. Fiquei meio desolado, estava ali pela Rosa e Silva, não sabia bem onde passava meu ônibus, então decidi seguir uma rua qualquer e andar sem lenço e com documento no começo da noite. É sempre bom fazer um passeio de reconhecimento nos bairros que você pouco frequenta. Daí quando cheguei na parada de ônibus, numa praça bem bonita cheia de eucaliptos, fui perguntar sobre o riodoce/cdu a uma senhora que ali se encontrava. Meu irmão, posso até não ganhar no bingo ou no pernambuco da sorte, mas é incrível como as pessoas se abrem comigo sem motivo aparente até porque, pra começo de história, estou muito longe de ser a barraca da simpatia. Então, a senhora começou a dizer todos os ônibus que passavam por lá, um por um, qual demorava mais, qual demorava menos, depois explicou que a parada tinha mudado de lugar, explicou o motivo, reclamou porque não concordava com o motivo, disse que morava não sei onde depois de San Martin, que passava mais de uma hora dentro do coletivo e que nem sempre os jovens ofereciam o lugar para ela sentar. A bichinha falou tanto em tão pouco tempo, tão exasperada, que quase a convidei pra tomar uma cerveja comigo, se fosse mais jovem até rolava, mas logo depois fiquei intrigado, pensando nas pessoas que falam muito com estranhos, tomado pela sensação de que isso acontece, para além das que são naturalmente gralhas e grilos, por ser a primeira vez no dia que elas estão, de fato, conversando com alguém. Bateu a culpa melancólica e terminei dando a maior bola pro papo da senhora, ela era bem solícita pra falar a verdade, tanto que fez questão de me avisar quando meu ônibus apareceu, mesmo que eu já o tivesse visto bem antes, e fez questão de dar parada i-n-s-i-s-t-e-n-t-e-m-e-n-t-e. Subi no coletivo, lotado, normal e quando estou pegando meu passe-fácil, sinto uma mão segurando meu braço com força e tremelique. Olho desconfiado achando ser alguém conhecido e dou de cara com uma mulher que nunca vi mais gorda, daí faço uma expressão de dúvida e ela solta: 'desculpa, achei que você fosse cair'. Sem dúvida tava chapada, não porque ficou a viagem toda traseirando e falando besteiras sem sentido, mas pelo simples fato de que senti o bom cheiro da erva maldita quando passei por perto. Talvez isso tenha contribuído para que eu ficasse a caxangá inteira visualizando uma cerveja, de tal modo que, desci duas paradas antes só pra dar um pulo num lugar onde sempre tem conhecidos dando bobeira. Ontem não tinha uma alma sequer e beber sozinho é fim de carreira demais até mesmo para mim. Cheguei em casa todo cabisbaixo, finalmente tinha admitido a completa derrota, liguei o computador pronto pra reclamar da vida com alguém no msn, quando eis que minha mãe entrou sorrateira no meu quarto e perguntou pela primeira vez desde que me entendo por gente: "Rodrigo, quer uma cerveja? Comprei algumas...". Você nega o quanto pode, faz a adolescência valer até o último minuto, mas tem coisas que só a sua mãe pode fazer por você.

sexta-feira, 2 de maio de 2003

Chatolino

Daí chegam os dias de chuva na cidade, me deixo guiar pela preguiça mórbida, bate aquela vontade de ficar em casa, sentir o frio que só rola no meu bairro, adentrar no transe que o som de água caindo proporciona e tudo se encaminha perfeitamente para o fluir completo da mazela humana. Parece-me tão dentro dos conformes ter seus dias de vegetal, que não consigo entender a motivação das pessoas que grudam suas mãos ao telefone e não entendem o princípio básico dos que desertaram da matilha: chamam pra ir ao cinema, digo que não, ligam de novo pra saber o que estou fazendo, digo que nada, ligam pra assistir filme na casa de não sei quem, mando se fuder. Pronto, mal-estar criado, só tenho a agradecer pelos convites, liguem sempre, mas por favor não insistam. Gostaria até de desenhar minha lógica e sei que se o fizesse direitinho, terminariam compreendendo. De qualquer modo, basta correlacionar 'tenho mais o que fazer' e 'não tenho o que fazer' e fingir que ambas as orações adquiriram o mesmo significado.