sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

obra de arte

estamos em obras,
desculpem o transtorno.

domingo, 7 de novembro de 2004

Bocarra

Pela quarta vez na semana e décima sexta num mês de vinte e oito dias, Bento chegou atrasado no emprego. O ônibus tinha demorado, o ônibus estava cheio, o ônibus não parava de encher. Os créditos do cartão eletrônico não vingaram, o despertador tinha falhado, precisou contar as moedas de todos os seus bolsos. Tinha o bastante, passou a catraca, não sentou, ninguém segurou sua mochila, sentiu dor nas pernas, atendeu o celular duas vezes, segurou os gases da sopa de feijão dormida do café da manhã, lembrou da 'batida salve-todos' no esconde-esconde, preferia quando gritavam 'golou o ovo', chegou atrasado no emprego pela quarta vez na semana e décima sexta num mês de vinte e oito dias. Apressado, soltou um "bom dia" na entrada sem olhar para quem estava falando e enquanto passava o crachá no ponto eletrônico, notou que os porteiros e motoristas da firma estavam reunidos lendo e discutindo passagens da Bíblia. Abriu a bocarra, afinal ele, que tinha todos os motivos para abrir a bocarra, não desperdiçava seu tempo com qualquer asneira. Subiu as escadas resmugando: "pois no meio tempo, porteiro e motorista não ficavam de tititi com a Bíblia, discutiam sobre cachaça e mulher e seguravam o saco com força". Naturalmente, houve mal estar.

terça-feira, 12 de outubro de 2004

Jornalista

ou a entrevista por e-mail como instrumento de preguiça.

segunda-feira, 20 de setembro de 2004

Sobre sombras e limbos

Diferentemente do formalismo russo que não é só russo e da avant garde francesa que tampouco é apenas francesa, o expressionismo alemão (idem), em seu âmbito cinematográfico, não se desenvolveu associando os filmes com uma produção teórica sobre a especificidade do cinema. Entretanto, nem por isso deixou de assumir uma postura estética que põe em xeque a estrutura e os meandros do modelo clássico da representação: em convergência com o modernismo, cuja a arte-ventre é o próprio cinema, abandona-se por completo o viés realista ao caminhar entre o onírico e o sombrio abusando das sombras como recurso dramático e das deformações em cenários claramente falsos. Apesar de não se constituir como novidade para nós, espectadores contemporâneos, especialmente pela difusa rede de influências que o legado expressionista postulou, não podemos deixar de perceber a substituição dos ângulos horizontais pelos diagonais acentuando a instabilidade de nossos passos pelas vielas de um mundo misterioso em preto e branco – um mundo que se assemelha a um pesadelo bem maquiado que nos seduz e nos intriga. Assim sendo, da mesma forma que aponta para frente, para o cinema trash e de horror, para o cinema noir, para Orson Welles, o expressionismo alemão que não é só alemão finca seu lado teórico traduzindo em imagens parte do dilema do mito da caverna de Platão, resgatando o antecedente filosófico essencial da arte cinematográfica, o princípio da ilusão, para lançar seus holofotes sobre a relação de confiança/engano que se estabelece entre o espectador e a representação da realidade ao qual ele se dispôs a assistir.

Assim sendo, O gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiener se firma, continuando os passos iniciados por Estudante de Praga (1913), de Stellan Rye e Paul Wegener e O Golem (1915), de Paul Wegener and Henrik Galeen, um tratado para além de uma tendência, ao tomar abertamente o antirealismo como norte e ao imprimir na tela a exacerbação dos sentimentos reprimidos que se amontoam na mente. Todo clima externo parece se diluir de uma fonte interna. Dizem por aí nos livros de história e fofoca do cinema que o diretor é o menor dos responsáveis pela concretização do filme, que os créditos deveriam ser dados de maneira coletiva para Rudolf Meinert e Erich Pommer (produção), Carl Mayer (roteiro) e especialmente para Walter Rohrig e Hermann Warm (cenografia). Na dúvida, ficam os nomes. Mas o fato é que independentemente de quem fez e de quem deixou de fazer, não quero cair nessa baboseira de defender o autor, o resultado plástico do filme se associa a um modelo narrativo que confunde a instância da realidade com a instância do delírio, estabelecendo um dos primeiros flertes entre a loucura e o sonho no cinematógrafo. Para atingir um nível ainda mais profundo e complexo, Caligari nos deixa a dúvida se é em si uma história ou uma história dentro de outra. Somos lançados ao limbo do entendimento enquanto que Hollywood entregava tudo mastigado na boca de sua platéia. Quantos filmes – pelo bem ou pelo mal – já não beberam dessa rebuscada maneira de costurar as estruturas cinematográficas? Na linha deste projeto estético, David Lynch reinventa a representação a cada filme.

Um dos trunfos maiores da arte expressionista, arte que se funda no abismo paradoxal entre a racionalidade e a emoção, é sua capacidade de despertar reações ambíguas em seus apreciadores, fazendo o menos convencional se manifestar como mais humano. O famoso quadro 'O grito' (1893), de Edvard Munch, por exemplo, desliza facilmente entre o desespero fluido das correntes de tintas claras ao desconcerto visual em relação à figura andrógena do centro. Não se trata da representação do homem, mas do desespero do homem. Em O Gabinete do Dr. Caligari as ruas são estreitas, as casas aglomeradas umas sobre as outras, os personagens grandes demais em relação à estrutura em sua volta, os ambientes internos e externos das locações não segue lógica alguma de medida. Temos rostos teatralmente maquiados a fundo a fim de ceder uma expressão além da real: uma ode à distorção e ao exagero. O filme trata de observar não o Cesare, sonâmbulo, mas a dor em seus olhos enrugados; não Caligari, mas a gana e ambição contidas em sua face maquiavélica. O conjunto de elementos nos transporta para outro tempo, para outro século, quase como se instituísse não só uma teoria social da representação, mas uma teoria histórica da representação.

Como é possível perceber graças às reviravoltas recorrentes nas narrativas expressionistas, o sujeito não se mostra cartesiano e fixo numa posição imutável, se deixa levar por seus sentimentos, há uma óbvia superação da dicotomia entre bem e mal. As personagens deambulam sem se firmar, em definitivo, sobre nenhuma das duas extremidades, afundam em um moinho de incertezas e contradições e é de dentro dessas incertezas, de dentro de toda escuridão, no caso de Caligari, que aparece um tom alvo, uma luz que parece não se encaixar com o resto do ambiente do filme. Trata-se da mulher, em seu vestido branco, que termina seqüestrada pelo sonâmbulo Cesare. Enquanto a carrega nos braços – passando pelo cenário muito parecido com o do clipe Otherside, do RHCP – desenvolve-se a tensão máxima entre o claro e o escuro, alterando o contraste e distinguindo ainda mais ambas as cores. O sonâmbulo hesita em seu ato homicida, não consegue matar aquela mulher, se vê desperto, apaixonado. Já a turba de homens tomado pela histeria não hesita sobre ele. Tanto a película de Wiener, como outras de Murnau e Fritz Lang lançam seus focos sobre os riscos da justiça humana exercida no calor da emoção - algo que apesar do processo civilizador continua a acontecer na forma dos linchamentos públicos.

Na cena do assassinato de Alan (que havia recebido mais cedo, uma profecia de que iria morrer até o fim do dia), apenas a sombra de Cesare aparece refletida na parede. A sombra toma um valor indicial, deixando clara a presença do sonâmbulo no ambiente e de suas verdadeiras intenções. Por um segundo, a sombra torna-se o personagem, torna-se tão presente quanto qualquer outro elemento narrativo . O mesmo acontece no filme M, o vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang (um dos ícones do expressionismo), na cena em que o assassino aborda a criança. Mostra apenas as sombras dos envolvidos e em seguida o balão subindo, significando o infeliz destino da garota. As metáforas e a sutileza em usá-las parece ser uma outra característica dessa tendência.

O próprio expressionismo alemão aparece como uma metáfora da Alemanha devastada pela Primeira Grande Guerra, há todo o ar pessimista, toda construção desesperada. Além disso, há a construção do ‘ser maldito’ presente em Caligari; em M; em Nosferatu – o ser maldito que funciona meio como uma antecipação do que estaria por aparecer na nação germânica. Funcionaria o expressionismo como denuncia ou como consentimento? Talvez a resposta não seja tão cartesiana, talvez ela não esteja inclusa no sistema binário ocidental. Um último ponto que precisa ser enfatizado está presente no final do filme e, de certa forma, desconstrói todo o filme. Ao menos, do ponto de vista narrativo. Tudo não passa de uma mentira, de uma alucinação na cabeça de um louco internado num manicômio. Caligari não é mais que o diretor do recinto, a mulher amada não é mais que uma interna, Cesare não mais que um sonâmbulo a ser estudado. O roteiro nos engana, brinca com todo ‘o real’ da película, transforma todo o sentido até então discutido.

sábado, 18 de setembro de 2004

Lista de Mudanças

Preciso cortar o cabelo e criar o costume de cortá-lo em intervalos de tempo menores; preciso fazer a barba ou apenas aprender a apará-la o bastante quanto quero, o bastante quanto tento e nunca consigo – não nego o gosto do ar ralo de meus pêlos, dessa tal mistura de inocência e sujeira bem vestida em minha face. Preciso pegar a minha carteira de reservista do exército o quão antes puder, fazer um novo passe fácil o quão antes puder e passar menos horas na internet sem fazer absolutamente nada. Preciso ir num dentista, num dermatologista, num endocrinologista. Preciso me matricular na academia e tentar manter o ritmo por alguns meses – algumas semanas, alguns dias, alguns números. Preciso engordar só um pouquinho e diminuir a masturbação intensiva; preciso abandonar a neurose da balança e ao menos fingir vigor no decorrer de meus dias.

Preciso ler mais e mais e ainda mais rápido. Preciso comprar (ou ganhar =P) uma gaita (e/ou uma flauta), aprender a tocá-las e tentar não desistir em uma semana – afinal quem nunca quis sair pululando no meio da grama abraçado aos seus próprios chiados? Preciso ver alguns filmes para a cadeira de cinema, comandada pela suposta noiva de Tarantino e continuar a ver outros filmes que vejo só para mim. Preciso ter prontas sobre minhas mãos antes do Natal, as camisas de ‘Lain’ e o sorriso irônico de Jim Morrison. Preciso ir à feirinha da Bom Jesus e espero realmente que os trapezistas de linhas ainda estejam presos no pequeno varal. Preciso deixar de ser refém do que escrevo, do que sonho nas noites insônes e do que penso sem ninguém saber. Preciso não me preocupar tanto com o que eu bebo, com o que fumo ou com o que beijo. E preciso mandar mais pessoas a merda, d-e-l-i-c-i-o-s-a-m-e-n-t-e.

Preciso prestar mais atenção nas aulas da universidade, tentar ser um pouco mais responsável e me dedicar ao espanhol – e não estou decidido se estou à procura de um estágio. Preciso estimular meu charme ainda que não saiba bem qual seja – talvez o melhor caminho seja mesmo descobri-lo. Talvez deixe pra mais tarde. Preciso comer mais frutas pela manhã e pela noite, tomar mais água o dia inteiro e dormir bem menos horas do que o habitual. Seria uma boa se pudéssemos adiar a preguiça. Preciso variar os meus dias, me libertar de uns típicos estigmas e colocar os sempre velhos discos novos para tocar. Na verdade, eu preciso pegar uns ônibus errados de vez em quando e me perder achando tudo muito lindo. Talvez eu precise apenas dos sorrisos não falsos e dos abraços mais fortes. Preciso das pessoas, das árvores que sempre estiveram por lá e do clima de interior no coração da cidade. Preciso das histórias bonitas e preciso começar. Realmente, pedras são ótimas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

quarta-feira, 15 de setembro de 2004

Era uma vez o manifesto ideológico...

Se eu conseguisse descrever uma cena de cerca de seis minutos, tida com uma das mais significativas da história do cinema, se em palavras pudesse transmitir bem a presença excessiva de cada corte, o trabalho minucioso de montagem, a expressão caricata nos rostos em close, a variação de distância entre a câmera e os corpos agitados e a frieza dos algozes diante de suas vítimas, quem, além dos cinéfilos de carteirinha, poderia adivinhar que estaria me referindo a um filme soviético, mudo, preto e branco, da década de 20 e não a um videoclipe recém-lançado na MTV? Pois é, estamos falando da famigerada escadaria de Odessa, o quarto ato d'O Encouraçado Potemkin (1925), falando de Sergei Eisenstein que, reunindo influências das mais diversas a partir de âmbitos artísticos, políticos e científicos, ascendeu como efígie de uma vanguarda cinematográfica, o formalismo russo, fazendo de seu peculiar controle como cineasta também uma teoria sobre o cinema. Assim sendo, temos um diálogo entre a dialética de Hegel rearranjada por Marx com o teatro dramático de Meyerhold, uma trajetória que parte do engajamento político estimulado por Lenin e que o leva a participação no Prolekult, uma curiosidade intelectual que o faz carregar consigo a composição dos ideogramas do teatro kabuki, a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov e as experiências de Kuleshov com justaposição de imagens.

Não era preciso reproduzir a realidade, criar um duplo translúcido e axiológico, mas sim, criar conceitos tomando como lógica o encontro de imagens, encontro visceral se necessário, e fazendo da realidade objeto de discurso ideológico. Eisenstein não foi um cineasta qualquer, fora um iconoclasta dos valores burgueses e um eremita dentro da ditadura soviética que passou a impor o realismo como modelo estético ideal das (e para as) massas. Se durante a década de 20, após a Revolução de 1917, se consolidou como o cineasta da Revolução, entrou na década seguinte, na era Stálin, como um dos artistas mais perseguidos dentro da URSS. Vinicius de Moraes escreveu certa vez que "a luta contra a 'estética formal' no filme russo foi em grande parte a luta contra a influência de Eisenstein", especialmente pelo cineasta ter se firmado como teórico da montagem descortinando a linguagem cinematográfica clássica para a forma como a conhecemos/entendemos hoje. Entretanto, mesmo com toda pompa do cânone não podemos deixar de pontuar como, em seus filmes, existem momentos de pouca conotação, de poucas imagens-idéias, afinal considerar O Encouraçado Potemkin como uma seqüência interminável de imagens vanguardistas, um espetáculo cinematográfico a cada milésimo de segundo é apenas referendar as repetidas frases que não passam de uma opinião socialmente estabelecida e reproduzida nos antros do exercício da crítica. De qualquer forma, nós, jovens de vinte e poucos anos, crescidos na era da estética do videoclipe, da sobrecarga de informações a cada corte, da hipertrofia de imagens que deixam de nos sensibilizar pelo excesso em oposição à raridade, temos os olhos já acostumados à velocidade e ainda assim, a escadaria de Odessa não poderia ser mais rápida.


Diferentemente de Pudovkin, diretor conterrâneo e contemporâneo, que ligava o conceito de montagem a construção – uma construção dramática que usava de personagens isolados num microcosmo (a mãe, o líder) para lançar mão de uma parábola social - Eisenstein partia de personagens coletivos (os operários, os marinheiros, os revolucionários), remontando um esboço de 'povo' em sua concepção de montagem ligada à colisão: “do choque de duas imagens distintas surgia algo novo no inconsciente do público” (Merten, 2003, p. 52). Em A Greve (1924), o diretor funde/alterna o rosto de um homem com a face de uma raposa, o rosto de um homem com a face de uma coruja, o rosto de um outro com a face de um cachorro para dar uma dimensão da personalidade dos espiões infiltrados na fábrica. Além disso, cria a sequência de imagens mais poderosa de sua filmografia, e normalmente subvalorizada, ao estabelecer um paralelo entre uma multidão de operários sendo reprimida/assassinada por hordas de policiais com a de um touro sendo morto num matadouro: correria, faca no pescoço do animal, sangue escorrendo, uma criança atirada de um prédio, tiros, mãos para alto, um vasto campo de mortos. A violência contra o proletariado não é amenizada tanto para associar a força da imagem em si com a força com a qual são montadas em sequência, como para reforçar uma realidade sociopolítica cruel que tornara imprescindível a Revolução Bolchevique em 1917.

A justaposição dessas imagens-idéias, cria incondicionalmente uma resposta talvez não conceitual, mas emocional da platéia e Eisenstein anunciava não procurar por uma platéia passiva, sem sensibilidade, mas uma platéia de co-criadores, de co-pensadores. Na prática, todavia, a partir dos estudos de Pavlov, o cineasta acreditava conseguir moldar/condicionar as reações de quem presenciava suas construções imagéticas, diminuindo o peso das idiossincrasias individuais em busca da ascensão de um ideal em comum, ou seja, queria - e fora contratado para - lançar ao proletariado um manifesto ufanista, um referencial artístico de inspiração à luta socialista. Só que é preciso entender a variação histórica que nos liga a tais obras, afinal já não há mais um corpo proletariado interessado, especialmente após o fim da experiência real do socialismo no regimento das nações. Das lutas, restaram apenas a utopia, dos líderes, apenas as epígrafes. O marxismo dispensou a aproprição revolucionária, ainda que as unhas do diretor russo continuem a nos tocar com a força que só temos em momentos de profunda raiva. E não se faz pelo lado ideológico, mas pelo lado narrativo, técnico, histórico, cinematográfico e poético. Estamos descobrindo novos signos no filme em si e no filme inserido em um novo contexto: reinterpretando os significados, remodelando os paradigmas. Sergei Mikhailovitch Eisenstein agora é outro.

“A montagem é, para ele, o poder criativo do cinema, o meio pelo qual as 'células' isoladas se tornam um conjunto cinemático vivo; a montagem é o princípio vital que dá significado aos planos puros” (Augusto, 2004, p. 61). Essa talvez seja a marca inegável do diretor e o paradigma estabelecido por tal a todo o cinema. Alguns segundos e um corte, alguns mais e outro. E outro. E outro. Ora meramente figurativo ou circunstancial, ora magistralmente bem pensado, o corte se acumula fazendo com que hora alguma se mostre desnecessário, aleatório. E Eisenstein não se prende apenas a montagem para lançar suas idéias – um casal junta, no meio da sala, objetos da casa que possam ser vendidos para conseguirem dinheiro, a mulher esconde um vestido que causa confronto com o marido; no meio da briga terminam colocando o próprio filho de colo no monte a ser vendido sem perceberem. Essa cena parece previamente não pensada. Talvez até seja. Acredito que não.

A Greve funciona como um baú de diretrizes, um baú de possibilidades e ideias não só que o diretor voltaria a explorar em suas obras seguintes, mas também idéias vigentes em outros cinemas vanguardistas da época. É um filme que desliza na linha dos detalhes e do virtuosismo, onde absorvemos muitas proposições formais e discursivas que se tornariam completas em cenas imponentes e onde existe um apuro técnico assustador ao olharmos o ano do filme: produzido em 1924, lançado em 1925. Há um trabalho com sombras, com paradoxos, iluminação contrastando entre o claro e escuro e ângulos inusitados da câmera. Obviamente dialogando com o expressionismo alemão. A greve talvez funcione como um sumário do que viria ser toda a obra cinematográfica de Eisenstein, sendo muitas das idéias presentes ora exercidas ainda mais profundamente, enquanto que outras jamais voltariam a ser reutilizadas em seus filmes posteriores. Seja do maniqueísmo (capitalismo selvagem x socialismo libertário) ao trabalho minucioso de montagem; Eisenstein e seus olhos ainda esperançosos pela revolução estavam por completo representado ali. Mas o tempo faria com que seus olhos fossem outros.

No Encouraçado Potemkin, a teoria de montagem de Eisenstein toma ares ainda mais profundos. Existe uma ligação dialética entre os cinco atos; uma estrutura onde se desenrola uma situação, uma tensão e uma reação oposta. Uma parte se liga a outra dessa maneira (marinheiros encontram os vermes, se recusam a comer o que resulta no quase fuzilamento de alguns, o que não acontece pois há um grito revolucionário que desencadeia uma rebelião). Por fim, no último ato, com a expectativa de confronto entre o Potemkim e a esquadra czarista há não o combate tão tangente e sim um grito de união: 'irmãos'. É cafona, mas é exatamente o sentimento que os 'camaradas' russos precisavam representar para si mesmos.

Assim como em A Greve ainda que carregue uma carga política bem direcionada, que o faz panfletário em termos ideológicos, o filme já não soa como um manifesto ‘real’, ou possível de ainda reunir entusiastas. Seria bastante anacrônico. Talvez já tenha soado como tal, mas hoje não mais. Para sermos conscientes devemos entender o sentido original do filme – encomendado pelo governo para saudar os vinte anos da revolta do Potemkin, acontecida em 1905, porém para um jovem na pós-modernidade esse sentido não faz diferença alguma, na verdade, esse sentido nem existe dependendo do interesse cinéfilo dele. No contemporâneo esse jovem irá construir seu próprio sentido dentro do filme de acordo com a sua vivência – e livre da questão ideológica, poderá reparar em outras questões, hoje, mais relevantes dentro da película (inclusive sobre o papel – ou justamente o esvaziamento – da ideologia em nosso tempo). O Encouraçado Potemkin é um filme político sim, mas não um manifesto ideológico. Pelo menos não em 2004.

sábado, 7 de agosto de 2004

sexta-feira, 16 de julho de 2004

semana

terçanovaquarta
quartanovaquinta
quintanovasexta
sextanovosábado
sábadodomingo

segunda,
sempre,
segunda.

quinta-feira, 20 de maio de 2004

The End

- Então, chorasse?

- Claro que não. Vida real não me emociona. Só choro em filmes.

quarta-feira, 28 de abril de 2004

Encontro Marcado - Fernando Sabino

Junto com Demian, de Hermann Hesse, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, Encontro Marcado, lançado originalmente em 1956, ocupa um dos lugares no panteão de livros que precisam estar por perto, para consulta existencial, como se carregassem, cada um deles ao seu modo, parábolas de minha própria vida. Diferente dos outros, no entanto, nunca consegui terminar de lê-lo, tamanha confiança que depositei no paralelismo, não necessariamente similitude, entre a minha experiência e condição humana e o trecho que acompanha da infância ao início da vida adulta de Eduardo Marciano. Todas as duas ou três vezes que chegava na metade, desistia candidamente. Sempre tinha a certeza de que só deveria me aventurar na segunda parte, com o personagem casado e não sei se até a sua morte, quando estivesse com os meus quarenta anos, por puro medo de que fosse rompido o contrato estabelecido entre o livro desmembrando página a página sua geração e eu desmembrando lembrança a lembrança a minha. Não a toa Encontro Marcado se tornou livro de cabeceira de vários jovens no final da década de 50, que se identificavam com o caráter cosmopolita quase sem referências ao campo ou ao êxodo, fortalecendo dilemas, angústias e liberdades emergentes com o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo que conduz uma época, traçando um retrato histórico, Fernando Sabino fundamenta seu intento a partir de uma profunda filosofia do cotidiano. Vejamos alguns trechos:

"Tudo acontecia numa seqüência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo de acomodar-se a uma transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda maior. Que viria agora?"

"Era preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava apodrecer na mão. Casado. A vida o afastava de sua origem, de seus amigos. Já nem sempre estaria presente nas lembranças deles, o tempo o empurrava com força demais e isso era terrível. Mal podia sentir o gosto das novas experiências, já não eram novas, ficavam logo para trás, o passado, ele que não tinha presente, não tinha nada, não fizera nada – por que não podia parar um pouco, descansar, não dar mais um passo? Queria adquirir seus hábitos também; certa maneira de ser, ele que era moço. Sozinho"

"Sozinho, o tempo passando, ignorava tudo que ficava para trás: Mauro fizera um poema e ele não sabia, Hugo lhe mandara um telegrama, apenas um telegrama lhe mandara Hugo. Assim, eles iam mudando: nada de intimidades. Uma suave cortesia. Uma distinta amizade. Amabilidade de parte a parte. E falsidade, hipocrisia, conveniência. Pois não, também acho, com prazer. Com quem puxar angústia agora? Nascemos para morrer – nada pior do que não ter nascido. A vida tem dessas contradições, dizia o pai. Onde as verdades eternas? O tempo levava tudo, ele não tinha onde se ancorar. Tudo isso é natural, diria ele, natural; viver é assim mesmo. O tempo acontece, o que tinha de ser já foi, agora a nostalgia de já ter sido em experiência, etcetera, etcetera. Conheceria novas pessoas, pensarias outras coisas, ouviria em silêncio prudente e compassivo opiniões alheias que um dia já foram suas. E está certo. Não se pode fazer da dúvida de outrora o pão nosso de cada dia: não posso responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei. Sozinho: sozinho no mundo. O que significa isso?"

"Há uma fresta em minha alma por onde a substância do que sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê. Depressa, não há tempo a perder. Também tenho meu preço mas ninguém conseguirá me comprar, todo dinheiro do mundo não basta, hei de escapar como água entre os dedos da Coisa que me aprisionar entre os dedos – hei de fluir como um rio, dia e noite, nem que tenha de dormir de pé"

"Ai Minas Gerais, tuas sombras, teus noturnos, teus bêbados pela ruas, Eduardo Marciano, minha mágoa, minha pena, minha pluma, merecia morrer afogado, o barco te leva para longe, a praia está perdida, mas voltarás nem que tenhas de andar sobre as águas..."

"De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura, um encontro".

quinta-feira, 22 de abril de 2004

segunda-feira, 19 de abril de 2004

Tudo

Não há uma diferença física nas mãos dos poetas, somos todos miseráveis, bêbados, cientistas ou profetas, terminamos como os cometas perdidos pelas bandas de Netuno. É aquela velha sensação sobre o tempo, sobre os anos que se passam, sobre as marcas na pele, sobre todos aqueles filmes e amigos que nunca fizemos. É o inevitável esquecimento do singelo, as mentiras reunidas num espirro e as vírgulas que pontuam e confundem as nossas vidas.

É o sorriso dos amigos ébrios caídos na sarjeta, as primeiras lágrimas depois do almoço e o abraço já sem força no início da manhã. É o acordar sem ninguém e o ir dormir sozinho. São os dois juntos suspensos sobre a mandala dos sonhos. É o medo de envelhecer e não ter sido, a crença nostálgica de que o passado é sempre mais seguro. São as rugas que ainda não existem, os filhos que não nasceram, a felicidade que nos habita apenas em estado de devir. É a incerteza diante do eterno transitório.

É o medo de não ser capaz. De beijar sem vontade, de sorrir o sem jeito e de levar consigo apenas os espinhos das rosas vermelhas. Nunca se sabe direito sobre o que é, apenas se traduz como aquela velha sensação sobre o tempo. É sobre o cada antes e sobre o cada depois. É sobre nossas cicatrizes, sobre as cinzas que se misturam ao cheiro do derradeiro suor que escorre pelo corpo. São os livros que deixaremos de escrever, as palavras que inundam o não dito e os gestos que nunca fizeram parte de mim.

São as mãos trêmulas e o tempo nos olhos que viram o além-mundo e o além-olhos. São as ondas. O oceano inteiro. A chuva que nos leva, que nos molha, que nos lava. É o sexo rápido com duas ou mais pessoas, os pulsos e as nádegas tatuados, o sangue saindo do nariz e pingando pelo queixo. É ser macaco na mão de Buda, cantar Hare Krsna com os bolsos cheios de grana, pular como Tom Bombadill antes de se jogar da janela do CFCH. É brincar de criar fábulas, de tocar flauta, de soltar bolas de sabão numa floresta de eucaliptos.

É a ira se metamorfoseando em prazer, os anjos caídos e ainda assim, anjos. Todas as quedas que levamos nas escadas. É o delírio de quem respira as vielas de concreto com os olhos castanhos cheios de lágrimas, o pequeno transe em cada verso. É a capacidade de criar ilusões para si mesmo, implantar no cérebro o canto da sereia. É também sobre o agora, sobre a mão em movimento sobre as teclas, sobre os olhos que observam as palavras. É, na verdade, sobre nós, entre nós.

sábado, 10 de abril de 2004

Metropolis

Nossas engrenagens são tão similares que olhamos para o mundo em busca dos mesmos parafusos.

terça-feira, 6 de abril de 2004

O Mundo


"The Fool turns to take that final step along his final path, and finds, to his bemusement, that he is right back where he started, at the edge of that very same cliff he almost stepped over when he was young and too foolish to look where he was going. But now he sees his position very differently. He thought he could separate body and mind, learn all about one, then leave it to learn about the other. But in the end, it is all about the self: mind and body, past and future, the individual, and the world. All one, including the Fool and the Mystic who are both doorways to the secrets of the universe.With a knowing smile, the Fool takes that final step right off the cliff...and soars. Higher and higher, until the whole of the world is his to see. And there he dances, surrounded by a yoni of stars, at one with the universe. Ending, in a sense, where he began, beginning again at the end. The world turns, and the Fool's journey is complete".


"The World (or Universe) card pictures a dancer in a Yoni (sometimes made of laurel leaves). The Yoni symbolizes the great Mother, the cervix through which everything is born, and also the doorway to the next life after death. It is indicative of a complete circle. The Dancer has one leg crossed over the other, just like the Hanged man. She is, in a sense, his opposite, the Hanged Man right-side-up. As the Hanged Man saw infinitely inward, the Dancer sees infinitely outward.The Dancer is also the opposite of the Wheel. The Wheel goes up and down like a Ferris Wheel, which means those on it feel like they get moved to higher or lower positions, are lucky or unlucky. The World, by compare, goes round and round like a carousel. This means that whatever corner of the universe a person gets sent to, it seems equally wonderful and interesting, not like a promotion or demotion. With the World there are no Zeniths or Nadirs; each corner is different, but all are similarly important".


sexta-feira, 2 de abril de 2004

Natural child, terrible child!

Nada o irritava tanto quanto ser acordado pelo telefone da sala, nem mesmo o detestável barulhinho dos despertadores de R$2 que vendem de rolo na rua Nova. Mais uma vez cochilara com o cigarro nos dedos e um dia ainda tocaria fogo na casa. Precisava dar um jeito na narcolepsia. Apagou o filtro queimado e tentou ser rápido o bastante para pegar o gancho antes que alguém o fizesse. Alguém o fez. A fumaça continuava firme saindo do cinzeiro. Decidiu escutar para tirar a prova dos nove, só pra ter certeza se teriam desligado ou atendido. Sentiu-se tirano por um segundo. Sua mãe estava na escuta, a voz dura falhava pela primeira vez: haviam encarcerado seu filhote na prisão. Ícaro sabia que mais dia, menos dia uma grande merda se abateria sobre seu irmão. Era apenas uma questão de tempo e o tempo havia chegado. Apesar do sorriso em sua face, da respiração precisamente controlada e do desespero do outro lado da linha, não ironizou o fato do irmão ser tão forte em outros dias, tão orgulho e supra-sumo mentiroso. Sentia um prazer mórbido por vê-lo como um coelhinho assustado ligando para a mamãe. Os dias de glória eram pequenas lacunas em histórias repetidas. Contou os segundos nos dedos. Foram 7. A porta do quarto de seus pais abriu numa pancada só. Rasgos de boca na aurora, dentes trincados e um sorriso exposto em sua face de garoto-homem. O circo iria começar.

Nenhum sussurro típico da manhã nos corredores recém acordados. Os gritos aumentavam e as lágrimas de sua mãe eram verdadeiras, mas não preencheriam nem um miudinho do rio Ganges. As cobras que conhecia eram cegas e não choravam. Falava de seu marido não estar nunca em casa. Falava da possibilidade dele ter uma amante. Falava e falava e falava sem parar. Esquecera que a questão não era o seu marido ter ou não uma amante, seu casamento ser ou não um fracasso e sim o fato de seu filho estar atrás das grades. Ela, cobra cega que era, nunca se daria ao trabalho de culpar seu preferido. Nunca. Ícaro queria culpar os seus pais, queria culpar seu irmão, queria culpar alguém e não ter peso algum na consciência por isso. Não era capaz. Incrível como as lágrimas de sua mãe o deprimiam por mais que ele fingisse o oposto. Sentia-se fraco e logo notou as formigas de sua esquizofrenia correrem por seu braço esquerdo. Tentou matá-las mais uma vez. A porta de um outro quarto se abriu. Saíra sua irmã de cabelos longos e loiros enrolada em um lençol. Harpia perigosa e sedutora. Olhou a mãe e perguntou sobre o ocorrido. Não se surpreendeu em uma linha de seu rosto ao saber e por pouco não o sentenciou culpado friamente em meio a todos. Sua mãe era definitivamente uma cobra cega. Ícaro voltou ao sofá da sala e em sua calma plena tomou de volta o livro em suas mãos. Voltou a ler como se nada tivesse acontecido. Anaximandro estava desperto e deitara sob os seus pés. Finalmente um carinho. Estava conseguindo abstrair a pressão daquela casa e de suas paredes carregadas de ódio. Sua mãe não deixaria isso acontecer por mais tempo e ele não contaria os segundos desta vez.

Rimbaud voou na parede. Ícaro fitou sua mãe abrindo e fechando a boca em seqüência como um peixe. Um peixe destruído pelo tempo. Sorriu e em seguida sentiu um tapa na face que o trouxe de volta. Sorriu novamente. Sua mãe partiu para agredi-lo. Sua irmã-harpia soltou os lençóis e segurou a mãe por entre seus braços já tocados por metade da cidade. Entendera finalmente o que acontecia. A cobra cega queria que ele chorasse, ou pelo menos que ele sofresse pelo irmão. Sem chance. Sociedade dos poetas mortos, os últimos dos rebeldes, as invasões bárbaras... poderia listar os inúmeros filmes pelo qual já derramara lágrimas e lágrimas, mas por seu irmão não desperdiçaria uma sequer. A harpia seminua segurava a cobra cega. Um quadro poderia ser pintado e nesse novo mundo que se esconde pelas pilastras da escuridão seria colocado em uma das portas do corredor principal. Sorriu pela terceira vez ao imaginar o incesto daquelas duas figuras. Seria seu último sorriso. Incrível como sua mãe nunca culparia o filho preferido. Não que se considerasse um Gabriel, mas alguém precisava cortas suas asas. Logo Ícaro pensava em asas. O cachorro diabético correra para algum canto onde não pudesse ver pessoas. Estava assustado. O garoto-homem tirou a ira de si e a expôs no meio da sala. Falou tudo que achava, tudo que sabia sobre o irmão. Não poupou palavras ou gestos, não censurou sequer uma expressão. Sua mãe acendeu um cigarro. Ela já sabia de tudo. Seu julgamento permanecia impassível. Ícaro ficou pensativo: quantos anos fazia que ele não dava um abraço honesto em alguém de sua família? Cinco de dezoito. A culpa que procurava não era por causa da infelicidade do seu irmão, era por sua própria infelicidade, por sua vida não ser símbolo de coisa alguma.

Anaximandro estava mais doente do que nunca, perdia a visão à olhos vistos, provavelmente teria que ser sacrificado em poucos meses. Sua irmã estava grávida mais uma vez e seu pai estava em uma nova viagem comendo putas no interior. Ícaro iniciara uma jornada depressiva mais profunda que todas anteriores, já não se preocupava em fumar na frente da mãe, já não freqüentava as aulas na faculdade. Quase não falava, quase não comia. Estava desistindo aos poucos de viver. Tornara-se um fantasma de si mesmo, estava magro, pálido e sem saco para conversas ao telefone. Ocupava seu corpo como um vasilhame sujo. Queria tanto sair daquela casa e esquecer sua vida. Lembrava diariamente de Janis Joplin que transava com todos os homens, mas no final da noite sempre dormia sozinha. Comprou oito pães, um sonho e voltou mais apressado do que nunca temendo encontrar alguém que o desviasse de seu objetivo. Abriu a grade de casa e foi direto ao banheiro. Pegou algum remédio para sono e tomou todos comprimidos de uma só vez. Talvez morresse, talvez entrasse em coma induzido como queria. Existia a possibilidade de sonhar. Acreditava apenas em como sonhava coisas maravilhosas e como acordava em pesadelos terrenos. Sua vida era tudo o que não queria. Sentou no sofá, abriu o livro de Rimbaud, acendeu um último cigarro e dormiu antes do sétimo trago.

sábado, 27 de março de 2004

You'd rather cry, I'd rather fly

Um pouco desconexas, a dança e a lembrança, a neblina que envolvia os nossos corpos, nos fazendo repetir inúmeras vezes a expressão 'lugar do caralho'. Vicente caiu de costas no tapete persa dos meus pais com a canção ainda na boca; caiu por entre nossas bolsas, nossas roupas, caiu e teve as frutas de um lado e os garranchos poéticos do outro. Sorriu por não estar com o violão na mão e lembrou que ainda não tínhamos bebido do vinho, que não tínhamos degustado da "periquita" que ganhara como presente de uma tia. Eu secretamente preferiria o velho "carretier" e suas baratas, lembrava mais intimamente a juventude das sarjetas do Recife velho, mas não faria objeção alguma. Lucia estava perdida em meus braços e eu estava perdido no cheiro de canela que tinha o seu pescoço. No cheiro de cravo da índia que tinha o seu colar. No cheiro de sexo que meu corpo exalava junto ao dela. Tínhamos de brindar cem mil vezes antes de ir. Vicente trouxera o vinho, Lucia trouxera o chá e eu trouxera eles dois para junto de mim. Esquecemos de nosso apartamento pequeno, de nossas coisas simples, do problema no encanamento do banheiro, dos gritos cada vez mais altos no emprego, da falta de emprego e das topadas na saída do hospital. Tiramos todas as roupas e deitamos todos juntos. Nada poderia ter sido melhor. Uma xícara, três taças e uma piada. Um brinde de vinho e alguns goles no chá. Uma risada. Lucia cantava sozinha com uma rosa em mãos. Crystal ship era a que ela mais gostava. Vicente se levantou um pouco tonto e acompanhou a melodia de maneira disforme com o seu violão. Fui ao lado de Lucia e passamos a ver ao longe o sol escondido por trás das nuvens e imaginamos nosso filho correndo ou gritando no meio da noite com medo da escuridão. A paternidade era sem dúvida o meu gozo final.

O sol se punha e Lucia já estava adormecendo silenciosa, daquela maneira delicada que me faz achar qualquer mínimo movimento um atentado brusco. Encostei o meu rosto ao seu com o cuidado das costureiras do interior da paraíba e também adormeci. A música já dava sinais de que estava para ir embora, mas Vicente continuava a dançar em seu eterno frenesi, em sua eterna vida intensa, em seu eterno gosto pelo eterno. Estrelas de um cochilo de vinte minutos ou o sonho metalinguístico. Acordei e lembrei como o céu era mais bonito longe do centro da cidade, como as luzes dos postes, dos faróis, dos apartamentos, dos semáforos decepavam o brilho que vinha do universo. Marília havia chegado. Um pouco atrasada é certo, mas chegado. Vicente estava deitado em seu colo com um sorriso maroto e ela tocava de leve o seu violão. Lucia já arrumava as nossas tralhas para voltarmos para casa e eu pensava em adiar aquele momento o máximo possível. Jim tinha terminado sua apresentação e eu perdera o fim e justamente o fim que era só meu. Peguei minha bolsa verde, pus em meus ombros e não esqueci de colocar meus pensamentos engraçados pelo furo. Dobramos o tapete e Vicente tentou carregá-lo sozinho. Rimos das tentativas frustradas até me oferecer para ajudá-lo. Ele correu e me deu um forte abraço que quase me levou ao chão. Naquele instante, pensei que o homem se sente pleno quando tem um homem de um lado e uma mulher do outro, quando cada um deles alternam suas posições, podendo ser pais, filhos, irmãos, tios ou amantes. Tinha descoberto que minha opção era fazer família na rua. Escondi as lágrimas como era de costume. Lucia notou e me deu um suave beijo no pescoço e trouxe seu cheiro de canela para perto de mim. Era uma pena, mas eu ainda não era capaz de chorar na frente das pessoas. Ainda seria e isso era uma promessa. Estávamos prontos para ir, havíamos guardado tudo no fusca azul marinho de Vicente e, antes da ignição, acordei.

terça-feira, 23 de março de 2004

Weird scenes inside the gold mine!

Silêncio e o escuro do presságio da aurora. Os pássaros em verde e branco pela janela, as formigas de uma leve esquizofrenia caminhando em suas mãos e o sono de seu cachorro diabético deitado ao lado da cama. Ainda não era obesidade mórbida. Estava um pouco espantado por ter acordado por si mesmo, por se sentir um tanto leve e por não estar com resquícios de dor de cabeça. Nenhum grito descartável, nenhum choro ordinário. Nada. O calmo e o vazio descansavam nas paredes do quarto onde os quadros pintados permaneciam sombrios e ultrapassados. Suas ideias estavam escondidas em páginas de cadernos que já não usava e pela eternidade ficariam lá sem nascer para os olhos do mundo. Sem nascer aos seus próprios olhos de criador e às suas mãos de criatura que segue normas e cumpre protocolos. Seus quadros expostos eram as grades de sua própria prisão. O relógio antigo havia parado às quatro da manhã. Todos estavam em seus ninhos. As velas e o charme que não se vê nas lâmpadas. E com aquela fonte de luz empunhada em suas mãos desvendou a escuridão de seu próprio ser, de sua própria casa que tinha que chamar de lar. Adorava a penumbra. A incerteza de cada passo e a confiança em cada um dos pés. Adorava o silêncio daquela hora. Em dezoito anos de vida eram dezoito anos vivendo naquele mesmo lugar. Conhecia cada pedaço, cada encosta e cada obstáculo. Vivia farto disso.

Pôs a vela sobre a pequena mesa da sala ao lado do vaso de flores mortas que continuavam ali dia após dia. Ninguém parecia perceber a falta de vida, ninguém se importava em tirá-las de seu jazigo. Estavam mortas. Abriu a geladeira e viu dezenas de frutas podres, molho de tomate fora da validade, queijos mofados. Ninguém notava coisa alguma, sequer a falsidade de seus sorrisos. Seria o último a tocar em suas pétalas já sem cores. Os galhos de árvores dançando em sombras, os postes indo dormir e o silêncio escapulindo por entre as brechas das portas fechadas. Acendeu um cigarro sentado no sofá enquanto lia um livro sobre Rimbaud. Por três dias ele não era de escorpião. Acabara sendo de libra mas com uma tendência escorpiana bem aguçada. Talvez fosse seu ascendente, talvez não. Rimbaud rompia em absinto enquanto Ícaro ainda caía do céu com poucas cervejas. Nasceram no mesmo dia. 20 de outubro e alguma hora qualquer em algum minuto sem importância. Apenas alguns séculos os separavam, apenas alguns acasos os tornavam pessoas completamente diferentes. Completamente. Passava as páginas sem pressa enquanto, igualmente sem pressa, os primeiros raios do sol pareciam brotar. E para as pulgas de Anaximandro, o cachorro diabético; para as borboletas nas papoulas vermelhas do jardim da praça até os fungos dos afrescos na capela sistina ou os leões na selva africana; o sol costuma trazer o fio perdido na noite anterior. O fio de esperança que insiste em nascer todos os dias.

Tinha tido um sonho tão sincero e de um encanto suave ainda não conhecido por seus olhos. Isso o enchia de medo. Era fato que sua existência não era das mais felizes. Era fato que tinha medo do gênero humano e se incluía nesse medo. Era de fato um solitário e mesmo que em sua identidade estivesse escrito “Ícaro” em letras marcadas, ele não sabia bem quem era e a cada dia parecia saber menos ainda. Desde pequeno o reflexo de suas indas e vindas se mostravam em forma de pesadelos à noite. O fim em espasmos, tremores, mãos molhadas e as palavras de sua mãe: “calma, meu filho”. Parecia uma piada justamente ela estar pedindo calma. Seus sonhos estavam a ser melhores que sua própria vida. Lembrou das máscaras que são colocadas viradas contra o rosto, lembrou das estátuas que se fingem de mortas, lembrou de si mesmo contando as horas para ir dormir. Ligou o rádio e apagou a vela já desnecessária. Um pouco de ruído. Não estava bem sintonizado e dava um ar de primórdios daquele aparelho. Talvez fosse o vento, talvez não. Mexeu na antena quando finalmente pode ouvir a música que tocava nitidamente. Era The doors. The end. Incrível como a madrugada era cheia de segredos e mistérios que por ventura só se mostravam assim. De alguma maneira, quase como um ataque de narcolepsia, o sonho reviveu por completo em sua mente e deu laços e laços em seu pescoço. Dormiu enforcado.

sábado, 20 de março de 2004

Let it roll, all night long!

Sentado numa grama com duas outras pessoas e suas costas tatuadas. Minha bolsa era velha e tinha um furo por onde deixava sair minhas fumaças e por onde costumava colocar a vergonha de meus pensamentos engraçados. Ela usava um colar de sementes vermelhas que tocava o umbigo e de tão misterioso, o seu próprio olhar, olhos grandes e pretos, desenhava formas e mais formas na geometria do irrecusável. Assanhava meus cabelos para que ficassem cada vez mais assanhados, rasgava minhas calças para que ficassem cada vez mais rasgadas. Cobria-me de um mundo mais antigo para dar alguma razão a minha velha barba. Vibrávamos pelo ar fresco, pelos pés descalços e nos agarrávamos a leveza de colocar um violão na mão, notas perdidas, enquanto os instrumentos indianos não terminavam de ser afinados. Estávamos ali por causa de uma banda e entrávamos com nosso samba de qualquer maneira, nos dias de ira e nos dias de cerveja, permanecendo fora de ritmo mesmo na chuva fina que irrompe de nuvens solitárias nos dias de sol. O casamento da raposa comentaria um senhor mais velho inundado da pequena sabedoria do cotidiano.

Lúcia parecia nos conduzir a cada movimento seu, os cabelos negros ondulados, presos e soltos, sua silhueta sobrepondo o céu azul e a velha flor amarela presa na orelha. Queríamos ser os poetas, mas não passávamos dos carteiros que não sabem ler direito e distorcem cada variante a sua própria maneira. Pela primeira vez ela estava na roda. Rimos e também quase choramos ao relermos os garranchos em papéis soltos dos abandonados cadernos de matemática. Éramos doces e nem tanto. As palavras dela eram as mais suaves, se materializavam em letras de convite de casamento sem afetação, tocavam a minha pele como uma mão que percorre todo o corpo até posicionar o rosto para um longo beijo na boca. As palavras dele só o próprio conseguiria ler, me afetava como os abraços fortes nos momentos que não temos força para ficar de pé. Eram também o sussurro de uma alma ébria para além do teor alcoólico. A gradação da gagueira que acompanhava as minhas palavras logo se tornavam lapsos do que eu nunca vi, se mostravam através de metáforas e mais metáforas que nem eu entendia e davam um ar de estranheza e beleza em sua última sílaba. O fato era único: nos amávamos muito.

Logo acendemos o cigarro que todos fumavam em busca do olhar vermelho e do paraíso de sombras, ela sorriu mais uma vez sem motivo e eu me levantei com uma maçã presa nas mãos. Roadhouse blues no volume máximo. Sentia cada lacuna da minha mente, cada desejo do meu sexo em meio as centenas de frutas esparradas pela grama que ficava mais verde a cada dentada. Ela se levantou com as uvas enroscadas em seu pescoço e sua mão erguia um incenso de alguma erva não muito convencional. A fumaça dançava entre nossas bocas. Esbanjávamos nossa felicidade em bolinhas de sabão que tocavam de leve as folhas mais altas dos eucaliptos. Lucia era a mais bonita e eu a amava imaginando ser impossível amar novamente. Sua dança, sua saia, seus seios e minha boca. Tudo em uma nota só. Tudo em um único toque seguido de dez mil. Vicente tinha ainda o cigarro em suas mãos e o seu chapéu de palha estava tão velho que era o símbolo de seu primeiro porre. Primeiro de vários outros. Passamos a vida brindando.

Aprendemos a cair no chão sem abalar a tranquilidade, a rir sem soar como indiferença e a chorar quando não havia outra coisa a se fazer. Nunca em minha presença aquele garoto iria perder seu chapéu de palha. Estávamos nós três dançando. Eu, a minha musa e o meu irmão. Tínhamos a certeza de que não faltava mais nada. Pouca vezes na vida conseguiram pensar nisso novamente. Sequer lembravam como estavam se ausentando dos rumos coletivos, pois naqueles instantes caíam no completo e delicioso mundo da autorerferência sem peso algum. O violão estava parado e minha respiração ofegante. A voz de Jim estava tão alta e ainda mais forte. Eu estava fora do meu conhecer e dentro de um mundo muito maior. O tapete persa que tinha roubado da casa dos meus pais servia de mesa, de cama, servia-se por si só. Sair do quarto de sempre e ir ao espetáculo da vida e do nunca era a peça que eu criara para ser o ator principal. Sorri e fuma as estrelas enquanto se equilibra. Come uma romã e sorri para beijar. Dança a chuva e sorri o além dos teus olhos. Essa era uma história curta e uma história e tanto.

quinta-feira, 18 de março de 2004

sexta-feira, 12 de março de 2004

π

Nenhuma palavra a mais, nenhuma palavra a menos.
Não iremos beber nem deste, nem de nenhum outro silêncio.

Estamos à procura das palavras certas.

terça-feira, 2 de março de 2004

Carnaval

sem muito confete ou serpentina, 
nada de pierrot ou colombina. poucos blocos vistos, poucas marchinhas seguidas, 
risadas por tão pouco e pouco frevo no pé. 
encontros, desencontros, reencontros de tempos em tempos. 
novos velhos rostos, 
velhos novos corpos. 
o vento mais fraco, o eco mais alto, a sujeira por trás da multidão. 
vozes trocadas, falsetes caídos, uma poética ébria de meio de rio seco. 
uma cerveja, dois vinhos baratos, uma vodka bielorussa. 
duas doses e meia de alerquim.

ao menos, gritei que jesus era bissexual dentro de um ônibus cheio de beatas.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

Rock in the Casbah

Começa com três acordes de guitarra no repeat e, por muito menos, Matheus já estava mexendo o corpo sem qualquer senso de harmonia, extrapolando o jeitão estranho de observar as pessoas em sua volta, mantendo os olhos semicerrados e o volume gigante na calça apertada. Quando se cansava, meio por causa do efeito das drogas, meio pela vontade de pagar de gatão, encostava uma das botas de couro preto num poste, às vezes numa parede toda pichada. Colocava os óculos escuros e emulava sua postura a partir das fotos de seus ídolos. Antes, só curtia um baseado, mas quando se aproximou do punk inglês, do que chamava de verdadeiro punk, o baseado caiu no anacronismo, só conseguia ficar chapado com coquetéis de remédios derretidos numa colher e enfiados em suas veias. O emagrecimento brutal foi apenas uma das consequências.

O som de sua antiga banda, com letras superficiais, compostas de palavrões e palavras de ordem, expunha tudo que ele sempre quis expor. Arrastava uma corja de idiotas, lançava estilo entre os mais novos e como um bom vocalista pulava,  jogava-se no chão, berrava e olhava nos olhos de sua garota, dedicando duas ou três canções para ela, o que lhe rendia nove ou dez ótimas transas nos dias seguintes. De quando em quando pegava outras no banheiro do metrô. Acontece que era um cara solitário, só poderia chegar sozinho em seu destino, acordava, dava dois ou três gritos e colocava todas e todos para fora. Matheus passou o começo da vida adulta preso entre o lixo e a fúria, tão inquieto que o descanso costumava lhe causar um estranho tipo de desconforto. Mudava as trancas de seu apartamento regularmente e às vezes passava dias acompanhado apenas de uma seringa.

O santinho do pai que lhe espancara inúmeras vezes na infância estava no bolso da calça quando Matheus perdeu os sentidos pela última vez. Realmente tinha extrapolado: passara a semana com as mesmas roupas rasgadas, visitara todos os bares da cidade com um whisky barato nas mãos, trocou sua televisão, seu tapete persa e sua guitarra. Ainda assim, as garotas comentavam sobre um charme da decrepitude. Acontece que ele nunca mais tinha tido uma transa boa, estava rodeado de prostitutas, sua banda tinha acabado, ele tinha sido expulso, Sid Vicious estava morto e ele não tinha mais quem emular. Tentou sair, abrir a porta, comer uma maça, recuperar as forças, ouvir o som, abrir os olhos. Não tinha volta, não havia palco, cena, nada. Apenas um colchonete e um cheiro de cadáver que se arrastou por três semanas até alguém chamar a polícia.

Utopia e Psicodelia

Toda vez que algum de seus colegas do curso de filosofia falava sobre Zeitgeist imaginava dezenas de crianças morrendo no Nepal. Sandro foi o primeiro a deixar o bigode, o primeiro que surgiu com o papo místico de reaver a essência do ser humano, enquanto escutava música indiana ou praticava meditação, só para exacerbar seu pacto cafona com a cultura oriental. De repente, Sandro não estava sozinho, sua capacidade de arregimentar pessoas era encantador, quase como se entre uma noitada e outra entupida de ácido lisérgico, todos em sua volta tivessem descoberto o terceiro olho. O grupo começou a dividir o mesmo apartamento, uma ocupação abandonada no centro que recebia sempre novos pupilos desesperadamente em busca de uma utopia, ainda que passassem mais tempo ruminando o clima da época do que efetivamente vivendo-o. Tratava-se de um transe entre a vontade de experiência e ausência de poder.

Logo descascaram parte da pintura da parede e preencheram o espaço com cores fortes e móveis abandonados, enquanto Sandro estimulava que cada um descobrisse seu talento natural, de modo que foram emergindo pouco a pouco danças desconcertantes de pouca ou nenhuma genialidade. Como bons estudantes de filosofia, vários usavam da poética do aleatório para se expressarem, criando frases como "círculos verdes sobre os cantos do amanhã", "natas douradas no desnecessário do saber", "gotas de inexistente soltas no espaço". Espalhavam pelos quartos e salas como se fosse ensinamentos metodológicos. Ninguém entendia coisa alguma e também não reclamava, por isso eles preferiam ditar a falta de sentido como ápice da lucidez interna, sempre conclamando sobre outro plano existencial, outro plano espiritual, com cores funcionando como melodias, guinadas de ritmos, uso do desuso. A maioria só durava uma semana no apartamento e o próprio Sandro mal conseguia acompanhar seus pensamentos.

Escutavam Syd Barrett todos os dias e organizavam orgias semanalmente. O apartamento já existia há dois anos e estava com uma configuração mais estabilizada, sem tantas idas e vindas, o que de certa maneira contradizia o ímpeto inicial de movimento. As roupas estavam mais exageradas, também mais sujas, alguns foram empestados por piolhos, bichos de pé, até carrapatos e o chão estava coberto de cabelos de todos os tipos e partes do corpo. Sandro sabia que o seu sonho não duraria para sempre, sabia até que não duraria nem mais um ano. Era preciso acabar, pois os próprios loucos estavam se traindo. Syd havia sido, enfim, expulso da banda. As paredes foram perdendo a cor, o apartamento estava ficando vazio, servindo apenas de depósito de coisas deixadas de lado. Sandro assim terminou seu projeto, tomando o esquecimento como fuga de um novo tempo. Não queria participar. Ficou sozinho até desaparecer.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

Nostalgia

Tenho saudades das entrelinhas, das linhas tortas e de todos os versos mal escritos. Tenho saudades de não saber qual é o próximo passo, de cair bêbado na sarjeta e de passar a madrugada inteira chorando por um filme. Tenho saudades dos meus sonhos infames, das minhas crenças desajeitadas e de me sentir um tanto inseguro. Tenho saudades de não ter responsabilidades de adulto e ao mesmo tempo não ser tratado como uma simples criança. Tenho saudades do colo da minha mãe.

Tenho saudades de quando eu não tinha saudades. Que eu ficava triste só de ter dúvidas e não feliz por ser um garoto curioso. Tenho saudades de correr nu pela praia, de me melar de merda de boi e de nadar no açude da fazenda do meu pai. Tenho saudades de fazer xixi na cama e ficar envergonhado, de ter pesadelos, de levar sustos infantis e de prender o choro da queda só para fingir ser forte. Tenho saudades do conforto dos braços do meu pai.

Tenho saudades de não ser maior de idade, de ser o símbolo da juventude rebelde e de me olhar no espelho, enquanto o mundo palpita. Tenho saudades de ir a escola, de ser expulso das aulas de inglês e ouvir as pessoas me chamarem de irresponsável. Tenho saudades de tomar banho na bica da igreja em dia de chuva, de olhar o rio estando sentado na ponte e de mandar um beijo para a lua. Tenho saudades dos passos, dos gritos e das histórias que não esquecerei. Tenho saudades das folhas secas do outono de Gravatá e dos carinhos do meu melhor amigo.

Tenho saudades dos meus lençóis coloridos, que me escondiam do que eu mesmo criava. Tenho saudades das brincadeiras ingênuas, do meu cachorro que foi levado e de meu primeiro beijo na boca. Tenho saudades de subir nas árvores e de cair delas também. Tenho saudades de chutar a bola na casa do vizinho, de correr dos cachorros ferozes e de entrar nas casas mal-assombradas. Saudades de estar namorando no dia dos namorados e de ter uma namoradinha no maternal. Tenho saudades da minha sempre presente infância.

Tenho saudades das minhas poesias de amor, dos meus contos que só tinham drogas e de todos os cadernos de matemática que eu não usava. Tenho saudades de chegar atrasado na aula todos os dias da semana, de perder meu sapato e de fazer aviãozinho de papel. Tenho saudades das guerras de coração de nego, dos uivos dos cachorros e das conversas sobre extraterrestres. Tenho saudades do sapo chamado Ambrósio mas que todos conheciam como Frederico.

E tenho saudades de chorar ouvindo Beatles, de abraçar o desconhecido e de fumar maconha na varanda do teu quarto. Tenho saudades de ficar doente e ver as pessoas preocupadas comigo. Tenho saudades dos meus primos que não vejo há mais de dez anos. Tenho saudades de riscar as paredes, de roer as unhas do pé e de cuspir para cima. Tenho saudades de cada palavra que já disse e de todas as outras que um dia esqueci. Tenho saudades de guardar o universo na minha caixinha de segredos.

Diálogo

1
A intensidade é uma doce ilusão, meu amigo. A profundeza não.

2
Sempre me questiono se uma amizade se faz pelos anos passados ou pelos últimos dez minutos de desconforto... e nunca chego numa resposta.

3
Provavelmente nos forçamos a crer nos anos, ainda que estejamos sob o destino dos minutos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2004

Conselho

Se você pretende tomar minhas palavras como um resgate da sua falta de crença ou usar das minhas frases como homeopatia para sua singela depressão, pode ter certeza que dentre todas as funções sociais, a de auto-ajuda é a que menos me fascina. Se tivesse vontade de ser yuppie, seria a que mais me fascinaria sem dúvida. De qualquer modo, coloque uma roupa bem bonita, aquela que suas banhas ficam mais discretas e vá em qualquer um destes supermercados que vendem os livros mais badalados do momento, os guias para executivos, um montão de generalidade e, se você estiver com sorte, o Dalai Lama estará lhe esperando em alguma prateleira.

domingo, 25 de janeiro de 2004

sábado, 17 de janeiro de 2004

17 de janeiro de 2004

O fato das cortinas não serem estáticas sempre foi ponto de discórdia, de modo que as rugas sob a luz de velas e as taças de vinho já vazias sempre pareciam distintas quando mudavam os castiçais da sala. Um deles chegou carregando uma bolsa sem forma e as desvantagens de uma palavra. Não fora o fim da poesia, estavam apenas no início e tinham todos, os anseios e as inseguranças. Não havia desespero em cartas de suicídio. No hay banda. There is no band. It is all an illusion. Mudaram o espelho de lugar e reencontraram os lápis e os papéis que tinham perdido. Não fora o fim dos abraços, nem das belas piadas ou destes últimos solares. Aprenderam a agradecer todos os dias pelos beijos que não deveriam ter dado se entorpecendo com uma bebida barata.

Agora sequer precisavam dos pseudônimos femininos e do medo de discar o telefone. Não fora um fim, mas outro recomeço. A chuva pela janela e os cantos orientais, a dança solitária e as cartas do baralho jogadas na cama. Havia um rastro de formiga num antigo móvel de madeira. Ouviram / contaram histórias de infância e desejaram ouvir as primeiras palavras de seus filhos. Estavam dando um tempo na falsa honestidade. Parece patético, mas havia um papo sobre ser e reacender o introspectivo e o eu. Não queriam guardar segredos, deixaram as desculpas pra lá, agarraram os cabelos e estenderam seus sorrisos no varal. Estavam ali pelos abraços mais fortes e por alguns beijos também. Um fusca azul. 17 de janeiro. Nada de águas de março ou semana santa ou época natalina. 17 dias depois do fim do ano, estou pronto.

Tenho que ser mais sereno.

sábado, 10 de janeiro de 2004

quarta-feira, 7 de janeiro de 2004

A história de uma gotinha

No início era apenas uma típica gotinha d’água daquelas que chegam discretas pelo teto da sala e que em quatro ou cinco invernos se tornam uma artística infiltração. De fato, foi um début de baixo orçamento, apesar dela carregar aquela presença cínica de quem concentra toda sua umidez. Não demorou muito até fazer daquele canto um antro espiritual, receitando energias a torto e a direito, invocando karmas novos, fazendo e desfazendo mau olhado. Era antes de tudo uma gotinha esotérica. Lia todo santo dia seu horóscopo por intermédio das moscas e todo santo dia tirava tarô para alguém. Algumas baratas descontentes com seu destino morreram depois disso.

Era também uma gotinha ambiciosa e com consciência de classe. Conhecia a história das gotinhas, seus feitos mais homéricos, sua posição na sociedade, os teóricos mais relevantes e tinha sempre um astuto argumento para se defender do que não lhe ameaçava. Por ser única naquela sala de pouco movimento, tinha sempre um sorriso dúbio e um ego para apontar. Tornou-se também terapeuta e após algumas seções, vaga-lumes com problemas sexuais voltaram a acender suas companheiras. Não demorou muito até a gotinha se tornar cada vez mais popular e aprender a ser uma atriz tão boa que conseguia passar uma boa primeira impressão para quem fosse. Comercializava simpatia com as aranhas.

No círculo de falácias, cada um dizia uma coisa, mas todos inundados de uma convicção assustadora: uns a tomavam como pai de santo em exílio de algum país não laico, outros comentavam na fresta da janela que não passava de um psicóloga problemática sem referências, alguns evocavam sua candidatura nas próximas eleições e a grande maioria afundada em seus delírios maternos mal resolvidos, enxergavam-na como uma criança doce e traquina. Logo chegaram as chuvas de verão, a gotinha tinha contraído alguma mazela com os mosquitos transmissores, de forma que sentia a presença de milhares de gotinhas, mas, isolada de seu mundo, permanecia sozinha. A consciência histórica não lhe servira de nada.

Cada vez mais gotinha-inha-inha, terminou se dedicando aos mexericos do cotidiano das vidas alheias. As lesmas contavam as grandes novidades da semana passada (os fuxicos que todos já sabiam e que já estavam cansados de saber), as moscas os pequenos segredos (aquela coisa que você escuta e treme nas bases antes de acreditar). Era no fim de sua jornada uma gotinha fofoqueira. Odiava o complexo de perseguição das baratas, besouros e lagartixas e sempre falava mal das formigas perdidas e das formigas trabalhadoras. Repetia todos os dias que se tivesse antenas e patas, antes de tudo teria sido uma rebelde. Só que a gotinha era apenas uma gotinha.

A chuva parou. O teto foi reformado. Nenhuma gota iria cair. Pintaram as paredes. A gotinha secou.