sábado, 27 de março de 2004

You'd rather cry, I'd rather fly

Um pouco desconexas, a dança e a lembrança, a neblina que envolvia os nossos corpos, nos fazendo repetir inúmeras vezes a expressão 'lugar do caralho'. Vicente caiu de costas no tapete persa dos meus pais com a canção ainda na boca; caiu por entre nossas bolsas, nossas roupas, caiu e teve as frutas de um lado e os garranchos poéticos do outro. Sorriu por não estar com o violão na mão e lembrou que ainda não tínhamos bebido do vinho, que não tínhamos degustado da "periquita" que ganhara como presente de uma tia. Eu secretamente preferiria o velho "carretier" e suas baratas, lembrava mais intimamente a juventude das sarjetas do Recife velho, mas não faria objeção alguma. Lucia estava perdida em meus braços e eu estava perdido no cheiro de canela que tinha o seu pescoço. No cheiro de cravo da índia que tinha o seu colar. No cheiro de sexo que meu corpo exalava junto ao dela. Tínhamos de brindar cem mil vezes antes de ir. Vicente trouxera o vinho, Lucia trouxera o chá e eu trouxera eles dois para junto de mim. Esquecemos de nosso apartamento pequeno, de nossas coisas simples, do problema no encanamento do banheiro, dos gritos cada vez mais altos no emprego, da falta de emprego e das topadas na saída do hospital. Tiramos todas as roupas e deitamos todos juntos. Nada poderia ter sido melhor. Uma xícara, três taças e uma piada. Um brinde de vinho e alguns goles no chá. Uma risada. Lucia cantava sozinha com uma rosa em mãos. Crystal ship era a que ela mais gostava. Vicente se levantou um pouco tonto e acompanhou a melodia de maneira disforme com o seu violão. Fui ao lado de Lucia e passamos a ver ao longe o sol escondido por trás das nuvens e imaginamos nosso filho correndo ou gritando no meio da noite com medo da escuridão. A paternidade era sem dúvida o meu gozo final.

O sol se punha e Lucia já estava adormecendo silenciosa, daquela maneira delicada que me faz achar qualquer mínimo movimento um atentado brusco. Encostei o meu rosto ao seu com o cuidado das costureiras do interior da paraíba e também adormeci. A música já dava sinais de que estava para ir embora, mas Vicente continuava a dançar em seu eterno frenesi, em sua eterna vida intensa, em seu eterno gosto pelo eterno. Estrelas de um cochilo de vinte minutos ou o sonho metalinguístico. Acordei e lembrei como o céu era mais bonito longe do centro da cidade, como as luzes dos postes, dos faróis, dos apartamentos, dos semáforos decepavam o brilho que vinha do universo. Marília havia chegado. Um pouco atrasada é certo, mas chegado. Vicente estava deitado em seu colo com um sorriso maroto e ela tocava de leve o seu violão. Lucia já arrumava as nossas tralhas para voltarmos para casa e eu pensava em adiar aquele momento o máximo possível. Jim tinha terminado sua apresentação e eu perdera o fim e justamente o fim que era só meu. Peguei minha bolsa verde, pus em meus ombros e não esqueci de colocar meus pensamentos engraçados pelo furo. Dobramos o tapete e Vicente tentou carregá-lo sozinho. Rimos das tentativas frustradas até me oferecer para ajudá-lo. Ele correu e me deu um forte abraço que quase me levou ao chão. Naquele instante, pensei que o homem se sente pleno quando tem um homem de um lado e uma mulher do outro, quando cada um deles alternam suas posições, podendo ser pais, filhos, irmãos, tios ou amantes. Tinha descoberto que minha opção era fazer família na rua. Escondi as lágrimas como era de costume. Lucia notou e me deu um suave beijo no pescoço e trouxe seu cheiro de canela para perto de mim. Era uma pena, mas eu ainda não era capaz de chorar na frente das pessoas. Ainda seria e isso era uma promessa. Estávamos prontos para ir, havíamos guardado tudo no fusca azul marinho de Vicente e, antes da ignição, acordei.

terça-feira, 23 de março de 2004

Weird scenes inside the gold mine!

Silêncio e o escuro do presságio da aurora. Os pássaros em verde e branco pela janela, as formigas de uma leve esquizofrenia caminhando em suas mãos e o sono de seu cachorro diabético deitado ao lado da cama. Ainda não era obesidade mórbida. Estava um pouco espantado por ter acordado por si mesmo, por se sentir um tanto leve e por não estar com resquícios de dor de cabeça. Nenhum grito descartável, nenhum choro ordinário. Nada. O calmo e o vazio descansavam nas paredes do quarto onde os quadros pintados permaneciam sombrios e ultrapassados. Suas ideias estavam escondidas em páginas de cadernos que já não usava e pela eternidade ficariam lá sem nascer para os olhos do mundo. Sem nascer aos seus próprios olhos de criador e às suas mãos de criatura que segue normas e cumpre protocolos. Seus quadros expostos eram as grades de sua própria prisão. O relógio antigo havia parado às quatro da manhã. Todos estavam em seus ninhos. As velas e o charme que não se vê nas lâmpadas. E com aquela fonte de luz empunhada em suas mãos desvendou a escuridão de seu próprio ser, de sua própria casa que tinha que chamar de lar. Adorava a penumbra. A incerteza de cada passo e a confiança em cada um dos pés. Adorava o silêncio daquela hora. Em dezoito anos de vida eram dezoito anos vivendo naquele mesmo lugar. Conhecia cada pedaço, cada encosta e cada obstáculo. Vivia farto disso.

Pôs a vela sobre a pequena mesa da sala ao lado do vaso de flores mortas que continuavam ali dia após dia. Ninguém parecia perceber a falta de vida, ninguém se importava em tirá-las de seu jazigo. Estavam mortas. Abriu a geladeira e viu dezenas de frutas podres, molho de tomate fora da validade, queijos mofados. Ninguém notava coisa alguma, sequer a falsidade de seus sorrisos. Seria o último a tocar em suas pétalas já sem cores. Os galhos de árvores dançando em sombras, os postes indo dormir e o silêncio escapulindo por entre as brechas das portas fechadas. Acendeu um cigarro sentado no sofá enquanto lia um livro sobre Rimbaud. Por três dias ele não era de escorpião. Acabara sendo de libra mas com uma tendência escorpiana bem aguçada. Talvez fosse seu ascendente, talvez não. Rimbaud rompia em absinto enquanto Ícaro ainda caía do céu com poucas cervejas. Nasceram no mesmo dia. 20 de outubro e alguma hora qualquer em algum minuto sem importância. Apenas alguns séculos os separavam, apenas alguns acasos os tornavam pessoas completamente diferentes. Completamente. Passava as páginas sem pressa enquanto, igualmente sem pressa, os primeiros raios do sol pareciam brotar. E para as pulgas de Anaximandro, o cachorro diabético; para as borboletas nas papoulas vermelhas do jardim da praça até os fungos dos afrescos na capela sistina ou os leões na selva africana; o sol costuma trazer o fio perdido na noite anterior. O fio de esperança que insiste em nascer todos os dias.

Tinha tido um sonho tão sincero e de um encanto suave ainda não conhecido por seus olhos. Isso o enchia de medo. Era fato que sua existência não era das mais felizes. Era fato que tinha medo do gênero humano e se incluía nesse medo. Era de fato um solitário e mesmo que em sua identidade estivesse escrito “Ícaro” em letras marcadas, ele não sabia bem quem era e a cada dia parecia saber menos ainda. Desde pequeno o reflexo de suas indas e vindas se mostravam em forma de pesadelos à noite. O fim em espasmos, tremores, mãos molhadas e as palavras de sua mãe: “calma, meu filho”. Parecia uma piada justamente ela estar pedindo calma. Seus sonhos estavam a ser melhores que sua própria vida. Lembrou das máscaras que são colocadas viradas contra o rosto, lembrou das estátuas que se fingem de mortas, lembrou de si mesmo contando as horas para ir dormir. Ligou o rádio e apagou a vela já desnecessária. Um pouco de ruído. Não estava bem sintonizado e dava um ar de primórdios daquele aparelho. Talvez fosse o vento, talvez não. Mexeu na antena quando finalmente pode ouvir a música que tocava nitidamente. Era The doors. The end. Incrível como a madrugada era cheia de segredos e mistérios que por ventura só se mostravam assim. De alguma maneira, quase como um ataque de narcolepsia, o sonho reviveu por completo em sua mente e deu laços e laços em seu pescoço. Dormiu enforcado.

sábado, 20 de março de 2004

Let it roll, all night long!

Sentado numa grama com duas outras pessoas e suas costas tatuadas. Minha bolsa era velha e tinha um furo por onde deixava sair minhas fumaças e por onde costumava colocar a vergonha de meus pensamentos engraçados. Ela usava um colar de sementes vermelhas que tocava o umbigo e de tão misterioso, o seu próprio olhar, olhos grandes e pretos, desenhava formas e mais formas na geometria do irrecusável. Assanhava meus cabelos para que ficassem cada vez mais assanhados, rasgava minhas calças para que ficassem cada vez mais rasgadas. Cobria-me de um mundo mais antigo para dar alguma razão a minha velha barba. Vibrávamos pelo ar fresco, pelos pés descalços e nos agarrávamos a leveza de colocar um violão na mão, notas perdidas, enquanto os instrumentos indianos não terminavam de ser afinados. Estávamos ali por causa de uma banda e entrávamos com nosso samba de qualquer maneira, nos dias de ira e nos dias de cerveja, permanecendo fora de ritmo mesmo na chuva fina que irrompe de nuvens solitárias nos dias de sol. O casamento da raposa comentaria um senhor mais velho inundado da pequena sabedoria do cotidiano.

Lúcia parecia nos conduzir a cada movimento seu, os cabelos negros ondulados, presos e soltos, sua silhueta sobrepondo o céu azul e a velha flor amarela presa na orelha. Queríamos ser os poetas, mas não passávamos dos carteiros que não sabem ler direito e distorcem cada variante a sua própria maneira. Pela primeira vez ela estava na roda. Rimos e também quase choramos ao relermos os garranchos em papéis soltos dos abandonados cadernos de matemática. Éramos doces e nem tanto. As palavras dela eram as mais suaves, se materializavam em letras de convite de casamento sem afetação, tocavam a minha pele como uma mão que percorre todo o corpo até posicionar o rosto para um longo beijo na boca. As palavras dele só o próprio conseguiria ler, me afetava como os abraços fortes nos momentos que não temos força para ficar de pé. Eram também o sussurro de uma alma ébria para além do teor alcoólico. A gradação da gagueira que acompanhava as minhas palavras logo se tornavam lapsos do que eu nunca vi, se mostravam através de metáforas e mais metáforas que nem eu entendia e davam um ar de estranheza e beleza em sua última sílaba. O fato era único: nos amávamos muito.

Logo acendemos o cigarro que todos fumavam em busca do olhar vermelho e do paraíso de sombras, ela sorriu mais uma vez sem motivo e eu me levantei com uma maçã presa nas mãos. Roadhouse blues no volume máximo. Sentia cada lacuna da minha mente, cada desejo do meu sexo em meio as centenas de frutas esparradas pela grama que ficava mais verde a cada dentada. Ela se levantou com as uvas enroscadas em seu pescoço e sua mão erguia um incenso de alguma erva não muito convencional. A fumaça dançava entre nossas bocas. Esbanjávamos nossa felicidade em bolinhas de sabão que tocavam de leve as folhas mais altas dos eucaliptos. Lucia era a mais bonita e eu a amava imaginando ser impossível amar novamente. Sua dança, sua saia, seus seios e minha boca. Tudo em uma nota só. Tudo em um único toque seguido de dez mil. Vicente tinha ainda o cigarro em suas mãos e o seu chapéu de palha estava tão velho que era o símbolo de seu primeiro porre. Primeiro de vários outros. Passamos a vida brindando.

Aprendemos a cair no chão sem abalar a tranquilidade, a rir sem soar como indiferença e a chorar quando não havia outra coisa a se fazer. Nunca em minha presença aquele garoto iria perder seu chapéu de palha. Estávamos nós três dançando. Eu, a minha musa e o meu irmão. Tínhamos a certeza de que não faltava mais nada. Pouca vezes na vida conseguiram pensar nisso novamente. Sequer lembravam como estavam se ausentando dos rumos coletivos, pois naqueles instantes caíam no completo e delicioso mundo da autorerferência sem peso algum. O violão estava parado e minha respiração ofegante. A voz de Jim estava tão alta e ainda mais forte. Eu estava fora do meu conhecer e dentro de um mundo muito maior. O tapete persa que tinha roubado da casa dos meus pais servia de mesa, de cama, servia-se por si só. Sair do quarto de sempre e ir ao espetáculo da vida e do nunca era a peça que eu criara para ser o ator principal. Sorri e fuma as estrelas enquanto se equilibra. Come uma romã e sorri para beijar. Dança a chuva e sorri o além dos teus olhos. Essa era uma história curta e uma história e tanto.

quinta-feira, 18 de março de 2004

sexta-feira, 12 de março de 2004

π

Nenhuma palavra a mais, nenhuma palavra a menos.
Não iremos beber nem deste, nem de nenhum outro silêncio.

Estamos à procura das palavras certas.

terça-feira, 2 de março de 2004

Carnaval

sem muito confete ou serpentina, 
nada de pierrot ou colombina. poucos blocos vistos, poucas marchinhas seguidas, 
risadas por tão pouco e pouco frevo no pé. 
encontros, desencontros, reencontros de tempos em tempos. 
novos velhos rostos, 
velhos novos corpos. 
o vento mais fraco, o eco mais alto, a sujeira por trás da multidão. 
vozes trocadas, falsetes caídos, uma poética ébria de meio de rio seco. 
uma cerveja, dois vinhos baratos, uma vodka bielorussa. 
duas doses e meia de alerquim.

ao menos, gritei que jesus era bissexual dentro de um ônibus cheio de beatas.