segunda-feira, 19 de abril de 2004

Tudo

Não há uma diferença física nas mãos dos poetas, somos todos miseráveis, bêbados, cientistas ou profetas, terminamos como os cometas perdidos pelas bandas de Netuno. É aquela velha sensação sobre o tempo, sobre os anos que se passam, sobre as marcas na pele, sobre todos aqueles filmes e amigos que nunca fizemos. É o inevitável esquecimento do singelo, as mentiras reunidas num espirro e as vírgulas que pontuam e confundem as nossas vidas.

É o sorriso dos amigos ébrios caídos na sarjeta, as primeiras lágrimas depois do almoço e o abraço já sem força no início da manhã. É o acordar sem ninguém e o ir dormir sozinho. São os dois juntos suspensos sobre a mandala dos sonhos. É o medo de envelhecer e não ter sido, a crença nostálgica de que o passado é sempre mais seguro. São as rugas que ainda não existem, os filhos que não nasceram, a felicidade que nos habita apenas em estado de devir. É a incerteza diante do eterno transitório.

É o medo de não ser capaz. De beijar sem vontade, de sorrir o sem jeito e de levar consigo apenas os espinhos das rosas vermelhas. Nunca se sabe direito sobre o que é, apenas se traduz como aquela velha sensação sobre o tempo. É sobre o cada antes e sobre o cada depois. É sobre nossas cicatrizes, sobre as cinzas que se misturam ao cheiro do derradeiro suor que escorre pelo corpo. São os livros que deixaremos de escrever, as palavras que inundam o não dito e os gestos que nunca fizeram parte de mim.

São as mãos trêmulas e o tempo nos olhos que viram o além-mundo e o além-olhos. São as ondas. O oceano inteiro. A chuva que nos leva, que nos molha, que nos lava. É o sexo rápido com duas ou mais pessoas, os pulsos e as nádegas tatuados, o sangue saindo do nariz e pingando pelo queixo. É ser macaco na mão de Buda, cantar Hare Krsna com os bolsos cheios de grana, pular como Tom Bombadill antes de se jogar da janela do CFCH. É brincar de criar fábulas, de tocar flauta, de soltar bolas de sabão numa floresta de eucaliptos.

É a ira se metamorfoseando em prazer, os anjos caídos e ainda assim, anjos. Todas as quedas que levamos nas escadas. É o delírio de quem respira as vielas de concreto com os olhos castanhos cheios de lágrimas, o pequeno transe em cada verso. É a capacidade de criar ilusões para si mesmo, implantar no cérebro o canto da sereia. É também sobre o agora, sobre a mão em movimento sobre as teclas, sobre os olhos que observam as palavras. É, na verdade, sobre nós, entre nós.

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