sábado, 31 de dezembro de 2005

nescafé

café desnatado
leite alienado
política des café e nada.

sábado, 24 de dezembro de 2005

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

editando meu profile do orkut

programas de tv:

hmmm... seriados brasileiros, americanos, mexicanos e hindus. Todos completamente idiotas. Animes tibetanos ou sauditas, ainda que os da Ilha de Galápagos tenham me surpreendido ultimamente. Atrizes expressivas ótimas, sabe? Me encanto também com os programas pseudocults produzidos na Nicarágua, na Etiópia e na Coréia do Norte pós testes atômicos. São de um complexidade digamos francesa. Amo os programas de auditório da Nova Zelândia, o Reality Show com pessoas anencefalas que fizeram transplante de face entre si e o Animal Planet falando diretamente de Marte. \o/

Adoro tooodo esse tipo de coisa que passa na tv.

¬¬

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

domingo, 27 de novembro de 2005

Corpo Humano

Somos viciados em nossos próprios corpos. Desde pequenos, despertamos um impulso exploratório, já bem cartografado pela psicologia, inicialmente pelo território conhecido e mapeado; depois, partimos para as rugas e curvas de nossos pais, com direito a pelos que nos causam repulsa, até nos darmos conta, seja num joguinho de "mostro o seu, que eu mostro o meu", seja numa espiada no banheiro da natação, seja numa aula de catequese em que alguém esqueceu a calcinha, seja num daqueles infernais banhos de praia que os pais jogavam todas as crianças juntas dentro do chuveiro, que os amiguinhos e amiguinhas possuíam e não possuíam um corpo similar ao nosso. Daí ficamos mais velhos e só ampliamos o campo de exploração, seja mediado pelo desejo, por um ímpeto erótico ou pelo desprezo: tentamos manter o corpo da melhor maneira possível e, mesmo depois de experimentar algumas dezenas deles, permanecemos curiosos para milhões de outros. Acredito que a monogamia essencialmente não me atinge pela simples curiosidade que tenho pelos corpos, pela sinuosa diferença entre eles, por uma certa obsessão cronenberguiana em sacar proporções, distorções e aparelhagens. Sinto que preciso experimentar boa parte da humanidade até me decidir e isso provavelmente deve durar a vida inteira. Decerto, nem sei bem porque comecei a escrever sobre isso, o intuito desse post era apresentar um artista australiano radicado em Londres, Ron Mueck, cujo estilo hiperrealista de interesse antropomórfico, assim como o manejo preciso com dimensões e escalas alteradas, parece levar essa curiosidade natural dos sujeitos, ao longo de toda a vida, por patamares não dantes percorridos até atingir um campo de absoluto desconforto.

In Bed (2005)

Mother and Child (2002)

Wild Man (2005)

Woman Pregnant (2002)

A Girl (2006)

Boy (2000)

Spooning Couple (2005)

Big Man (2000)

Angel (1997)
Mask II (2001-2002)

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Automatizando

"Gerência Técnica, Bom dia"

Quando você começa a atender o telefone da sua própria casa assim, pode ter certeza que chegou o momento de trocar de estágio.

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

A Maçã Nua

FADE IN:

CENA 1 - INT. SALA DO APARTAMENTO - NOITE
Um cigarro esquecido queima em um cinzeiro no chão. No fundo, alguém [IVO] se mostra inquieto e irritado, andando de um lado para o outro, entrando e saindo do ambiente em questão. Esse personagem masculino, um tanto fora de foco, joga uma bolsa velha no chão, colocando dentro ou entulhando ao lado dela alguns pertences (livros, vinis, roupas, um violão). Em seguida, volta a se mover de modo apreensivo, ausentando-se constantemente de nosso campo visual, enquanto uma música melancólica ['THERE IS AN END' - THE GREENHORNES] toca numa antiga vitrola que também aparece em quadro do lado esquerdo. Vez ou outra, o rapaz surge ora dando um leve chute em sua mochila, ora abaixando para amarrar o sapato, ora pondo suas coisas em ordem, separando alguns dentro da bolsa. De súbito, interrompe seu percurso, pega a bolsa com rispidez – deixando o instrumento musical cair e abandonando outros objetos - e se dirige até uma porta ao fundo. Abre, hesita por um segundo e bate com força ao sair. 

FADE OUT:

“A MAÇÃ NUA” 

FADE IN:

CENA 2 - EXT. PRAÇA - DIA / TARDE
Imagens documentais de dois velhos [que poderiam ser DAVI E IVO] sentados em um antigo banco de uma praça qualquer. Essa cena se repete algumas vezes ao longo do roteiro, contudo, a cada retorno, aparecem senhores diferentes em praças diferentes. Nessa primeira, é perceptível uma sensação de indiferença entre eles, composta especialmente na falta de olhares e na falta de palavras. DAVI, sem demonstrar expressão alguma, tira vagarosamente uma carteira de cigarros do bolso. Não dá importância para um que cai no chão, enquanto coloca outro na boca. Em seguida, pega um isqueiro mais lentamente do que pegara o cigarro e o acende próximo ao rosto enrugado. Dá um longo trago, mas não chega a soltar a fumaça. 

CENA 3 - EXT. TERRENO– FIM DE TARDE (FLASHBACK) 
Um jovem [DAVI], visivelmente ébrio, solta, entre a tosse e o sorriso, a fumaça de um cigarro que acabara de acender, continuando o sentido da cena anterior. Ele está sentado ao lado de outros três garotos, todos no início da adolescência, em galhos secos e velhos caídos no chão. Ao redor dos quatro, existem árvores densas e nem tão densas, além das paredes de uma casa em ruínas tomada pelo verde. Todos estão vestidos com a farda de seus colégios quaisquer. Suas bolsas e sapatos estão pendurados em galhos e largados pelos cantos, assim como algumas fotos em preto e branco presas a barbantes. Um incenso está encaixado em algum lugar. 

O cigarro roda de mão em mão para um lado, enquanto uma garrafa de vinho barato roda para o outro. DAVI e dois dos jovens bebem e fumam muito, enquanto contam suas situações de quase-sexo (como tinham chupado uma menina, como tinham metido o dedo). As risadas são constantes. IVO parece distante daquele assunto, permanece calado e se destaca em relação aos seus amigos por não ser tão exagerado quanto eles. Não fuma e tosse bastante por conta da fumaça. Restringe-se a dar apenas leves goles no vinho, enquanto olha algumas fotos em suas mãos. Vez ou outra chama a atenção de DAVI para ver uma das fotografias. O amigo, instantaneamente, sai do clima da conversa e sempre se mostra curioso ou interessado aos chamados de IVO. 

Aos poucos, os jovens ficam bêbados e começam a andar pelos galhos caídos, fechando os olhos, rodando a cabeça, escorregando e rindo. Em seguida, todos, exceto IVO, ficam apenas de cuecas e correm para fora do ambiente em questão. Gritam como loucos. IVO dá um último gole no vinho, mantém um ar quase blasé até olhar para trás e sorrir meio anestesiado ao recusar o chamado dos amigos. Começa a tossir repetidamente, enquanto observa, com certa melancolia, nomes, desenhos e frases escritas na madeira em que está sentado. Nota-se que muitos daqueles rabiscos foram feitos em tempos diferentes. Termina por fim escrevendo com uma chave a frase: "you can't shine if you don't burn". 

CENA 4 - EXT. PRAÇA – DIA/TARDE 
Close numa mão enrugada escrevendo a mesma frase na madeira do banco, enquanto tosse repetidamente, continuando o sentido do momento anterior. Novamente voltam as imagens documentais de diferentes senhores em praças igualmente distintas. Sempre são focados dois velhos sentados com um olhar perdido; apático. Um deles [DAVI] traga seu cigarro, vagarosamente. IVO coloca a mão no rosto, faz expressões sutilmente vagarosas e cansadas até se lançar a um movimento brusco para cruzar as pernas. 

CENA 5 - INT. SALA DO APARTAMENTO – MADRUGADA (FLASHBACK). 
Um jovem [IVO] descruza as pernas no mesmo compasso, continuando o sentido da cena anterior. Duas cadeiras estão frente a frente a certa distância. Um rapaz [IVO] de aproximadamente uns vinte e quatro anos e uma MULHER desta mesma idade – quase despidos – estão sentados nelas. Em volta, o chão está coberto com fotos coloridas e garrafas de rum e coca-cola (cuba-libre). Entre as duas cadeiras, há um cavalete onde repousa uma tela ainda não terminada e o apartamento em si tem um ar de recém ocupado. IVO e a moça se encaram através de um olhar ora cínico, ora sereno; através de um sorriso ora sarcástico, ora confortante. Há uma tensão e um cinismo latentes no ar. A MULHER se levanta com um ar blasé, fumando um cigarro na piteira. Aproxima-se da tela e dá uma ou duas pinceladas. IVO permanece imóvel mesmo depois dela passar por trás de sua cadeira, tocando-o de leve, sussurrando algo no seu ouvido, tocando em seus mamilos e mordiscando sua orelha. Em seguida, a MULHER anda até uma antiga vitrola onde pega um vinil nas mãos. Faz uma expressão de repulsa e o devolve ao seu lugar. Pega outro vinil, abre um sorriso contido e coloca o som o mais alto possível [LE TEMPS DE L'AMOUR - APRIL MARCH]. Esboça uma dança lenta, movimentando os braços, cheia de charme. IVO sorri, cruza as pernas novamente, toca o rosto agora sério até voltar a sorrir. A porta do apartamento é aberta por um outro jovem (DAVI). Primeiro um sorriso ébrio e malicioso. Em seguida, dá um trago em seu cigarro e seus olhos verdes não escondem uma surpresa indesejada. 

* A MULHER está de calcinha usando uma camisa de botão do rapaz. A camisa está meio aberta na parte superior, insinuando os seus seios, aumentando a sensualidade já intrínseca a ela. Além do charme enquanto fuma, a moça também mostra sua delicadeza em cada um de seus passos curtos e, principalmente, em sua dança. Ela possui olhos serenos e inocentes, que se transformam sem problemas num olhar astuto, charmoso ou sagaz. 

CENA 6 - EXT. PRAÇA – DIA/TARDE 
Voltam as imagens documentais. Os olhos verdes de DAVI continuam os mesmos. Ele olha para os lados, pisca, fecha os olhos com uma expressão densa. DAVI leva a mão esquerda à cabeça, permanece com os olhos fechados e se mostra um tanto desconfortável. IVO descruza as pernas e amarra o tênis. DAVI desperta e olha desinteressado para cima, quase esboçando um sorriso por trás da falta de expressão. Puxa a fumaça do cigarro e tenta produzir círculos de fumaça com a boca falhando algumas vezes até conseguir. 

CENA 7 - EXT. RUA – DIA (FLASHBACK) 
Um garoto de oito anos [DAVI] assopra bolhinhas de sabão continuando o sentido da cena anterior. Ele corre com a mão levantada, numa linha de trem aparentemente abandonada, depois de algum tempo percebemos que atrás dele vem outro garoto [IVO] também soltando bolinhas de sabão. IVO tropeça e cai, DAVI continua em frente, então para de correr e volta. Ambos sentam na ponta da linha de trem suspensa, IVO vai perdendo o olhar de choro, ampliando um olhar curioso, os dois balançam as pernas enquanto as bolhinhas de sabão tocam a ponta de seus pés. 

CENA 8 - EXT. PRAÇA – DIA/TARDE 
DAVI e IVO, novamente encarnados em diferentes velhos, continuam o balançar de pernas que, obviamente, não permanece idêntico, mas que remete vagamente à sua infância. Continuam em suas posições, sem trocarem palavras ou olhares. Alguns pedestres ou ciclistas passam anônimos por suas frentes. Alguns olham, outros nem isso. Por sua vez, nada parece interessar aqueles dois senhores, nada os resgata por completo de seus postos apáticos. IVO tira, vagarosamente, os óculos para limpá-los. 

CENA 9 - INT. SALA DO APARTAMENTO - NOITE (FLASHBACK). 
Continua o movimento de limpar os óculos (nesse caso, óculos escuros, excêntricos). Duas cadeiras estão frente a frente e a certa distância uma da outra. IVO e DAVI com seus vinte e tantos anos – apenas de cueca, Davi com uma gravata roxa – estão sentados nelas se encarando. Suas roupas estão espalhadas pelo chão da sala, que agora abriga em suas paredes um enorme acervo de referências culturais, formatando um verdadeiro mosaico pop. Um ou dois abajures estão acessos dando à sala um clima de meia-luz. 

DAVI se levanta, passa por trás da cadeira em que estava sentado e percorre a sala tocando com uma expressão carregada alguns objetos e inúmeros recortes presos na parede. Dá alguns tragos no baseado que tem em mãos, enquanto caminha vagarosamente. Chega até a vitrola e desliga o som. Continua a trajetória até ficar de frente a um GRANDE QUADRO por trás da cadeira onde IVO está sentado. 

O quadro de uma MAÇÃ - em cores fortes e linhas disformes - contrasta com as costas nuas de DAVI e o peitoral nu de IVO. Em cima da tela é possível ver escrito em letras rabiscadas “you can't shine if you don't burn”. DAVI encara profundamente o quadro e não o toca. IVO, por sua vez, ainda sentado, encosta a cabeça nas costas de Davi. A tensão é extrema. 

DAVI (APREENSIVO) 
Como aconteceu isso, Ivo? 

IVO (RELAXADO E IRÔNICO) 
Não importa. Eu também não entendo, pronto, passemos pra próxima.(pausa) E não era sempre você que me instigava a tentar tudo? (pausa) Olhaí, aqui estamos, essa é só mais uma tentativa.

DAVI se vira e olha para baixo. IVO permanece com a cabeça encostada no amigo e olha para cima. Encaram-se por um instante. DAVI coloca o baseado na boca de IVO que traga sem problema e, em seguida, coloca na sua própria boca. 

DAVI (RÍSPIDO) 
Mas caralho... (pausa) eu acho que já passamos do ponto. 

IVO (RELAXADO) 
Não, Davi... (pausa) não existe mais um ponto. 

Continuam se encarando. IVO agora pega o baseado da boca de DAVI e coloca na sua própria boca. DAVI se vira e abaixa a cabeça. IVO coloca os óculos escuros de volta no rosto carregado de ironia. 

CENA 10 - EXT. PRAÇA – DIA/TARDE 
Continua o movimento dele colocando os óculos de volta. IVO vira para o outro personagem e faz menção a dizer algo, seus lábios inseguros chegam a se mover, a dar impressão de um sussurro. Porém, DAVI olha para o lado oposto. IVO hesita, permanece calado e se vira. Nesse mesmo momento, DAVI o olha e desvia o olhar, o olha e desvia o olhar novamente. IVO toma ar e se vira pronto para falar algo, quando DAVI já está novamente olhando para o lado oposto. IVO desiste de sua tentativa e termina por fazer um barulho com a boca, uma espécie de assobio. 

CENA 11 - EXT. PRAIA – NOITE (FLASHBACK) 
O assobio permanece vindo da boca de IVO, visivelmente ébrio, continuando o sentido da cena anterior. IVO está deitado de mãos atadas a uma garota que usa uma vestimenta leve. Do seu outro lado, está DAVI. Todos três na areia de uma praia aparentemente deserta. Algumas garrafas de vinho, umas bolsas abertas e uma fogueira ao fundo compõem o ambiente. 

A menina está quase dormindo. Já os dois rapazes olham as estrelas, apontando vez por outra para o céu. IVO parece explicar a DAVI algo sobre o sol que vem nascendo e as nuvens negras que se afastam, enquanto esse se mantém atento, por trás de um sorriso misterioso e triste. Em dado momento DAVI assanha o cabelo de IVO e encosta a sua testa carregada de tristeza no braço do amigo. Uma chuva fina começa a cair. 

IVO (RELAXADO E ÉBRIO) 
Porra... (suspiro) eu sempre me pergunto se uma amizade se faz por todos os anos que se passam ou pelos últimos dez minutos de picuinhas e intrigas. E, pra falar a verdade, nunca sei a resposta.

DAVI (MEIO INDIFERENTE E ÉBRIO) 
Provavelmente a gente se força a crer nos anos, ainda que esteja sob o destino dos minutos (pausa). Dos minutos ou quem sabe dos segundos, dos centésimos, dos milésimos... de todos esses detalhes invisíveis. (longo gole no vinho) Tsc... a intensidade é uma ilusão, a profundeza não. (longa pausa) Eu sempre penso no longo tempo em que passamos construindo um relacionamento e no tempo mínimo que podemos colocar tudo a perder. Tudo. (pausa) Tudo. (Pausa) Mas, pra ‘também’ falar a verdade, meu amigo... eu acho que o tempo, o tempo não tem nada a ver com isso. 

Permanecem em silêncio. IVO dá imensos goles em seu copo até correr para o mar, tirando suas roupas; gritando como um louco. Porém, antes de se perder na escuridão se vira e chama seus companheiros. Os dois se levantam. DAVI dá um leve beijo na boca da mulher, mais sereno do que sexual. Em seguida, encara o amigo o negando com um sorriso triste. DAVI o observa mais um pouco, abaixa a cabeça e fecha os olhos. Abre um guarda-chuva, se vira e vai embora. Enquanto isso, a garota, que havia saído correndo pela areia, chega até IVO e o beija. Esse, por sua vez, não dá nem importância a ela. Sua atenção esta presa à reação do amigo. Seus olhos negros não escondem a surpresa indesejada. 

* Nessa cena, primeiro a MULHER está praticamente dormindo e, em seguida, a garota se mostra completamente serena. Seu rosto tem aquela beleza de quem acabou de acordar, aquela leveza, aquela expressão singela. O beijo em Davi é sincero, mas completamente fraternal (não é um beijo de língua, apenas encosta os lábios lateralmente nos lábios de Davi e lhe dá um abraço apoiando a cabeça no ombro dele). 

CENA 12 - EXT. PRAÇA – DIA/TARDE 
Os olhos negros de IVO continuam surpresos. Ele olha para os lados, pisca, fecha os olhos com uma expressão densa – intercala com fotos de uma intimidade sutil entre os personagens da última cena. Uma chuva fina começara a cair. DAVI está com um guarda-chuva aberto, enquanto IVO permanece se molhando. Os dois já parecem um pouco inquietos, em especial IVO. Suas mãos estão trêmulas. DAVI coloca a mão apoiada no banco e deixa o cigarro queimar sem se mover nem para tragar. A cinza se acumula. 

CENA 13 - INT. SALA DO APARTAMENTO – NOITE (FLASHBACK) 
Um cigarro esquecido queima em um cinzeiro no chão. No fundo, alguém [IVO] se mostra inquieto e irritado, andando de um lado para o outro, entrando e saindo do ambiente em questão. Esse personagem masculino, um tanto fora de foco, joga uma bolsa velha no chão, colocando dentro ou entulhando ao lado dela alguns pertences (livros, vinis, roupas, um violão). Em seguida, volta a se mover de modo apreensivo, ausentando-se constantemente de nosso campo visual, enquanto uma música melancólica ['THERE IS AN END' - THE GREENHORNES] toca numa antiga vitrola que também aparece em quadro do lado esquerdo. Vez ou outra, o rapaz surge ora dando um leve chute em sua mochila, ora abaixando para amarrar o sapato, ora pondo suas coisas em ordem, separando alguns dentro da bolsa. De súbito, interrompe seu percurso, pega a bolsa com rispidez – deixando o instrumento musical cair e abandonando outros objetos - e se dirige até uma porta ao fundo. Abre, hesita por um segundo e bate com força ao sair. O cigarro continua a queimar no cinzeiro até que a mão de um segundo personagem [DAVI)], que até então estava totalmente OCULTO na cena, bate a cinza e tira o fumo de quadro. DAVI aparece no ambiente indo até onde a mochila do outro personagem estava anteriormente. Possui um cigarro numa mão e uma garrafa de vinho na outra. Vai até a porta, senta e encosta a cabeça nela, ao mesmo tempo em que fuma seu cigarro e bebe do vinho. A partir disso enquanto no cinzeiro vão aparecendo goias e mais goias de cigarros fumados, DAVI, em cada momento, está numa posição e vestimenta diferente dentro do ambiente (ora deitado olhando para cima, ora deitado sem camisa meio que dormindo, ora sentado fumando, ora andando apreensivo, ora sentado tocando um instrumento musical melancolicamente, ora bebendo muito). Por fim, DAVI vai até o cinzeiro e apaga o seu último cigarro. Resta apenas um fio de fumaça. 

CENA 14 - EXT. PRAÇA – DIA 
Um fio de fumaça sai de um cigarro recém apagado no chão ao lado do sapato de DAVI. O cigarro permanece acesso por algum tempo até que a fumaça se torna mais e mais rala até se extinguir de uma vez. DAVI se levanta, fecha o guarda-chuva e sai por um lado, sem dar importância ao outro senhor. IVO demora mais um bom tempo sentado, em seguida, olha para o lado que o outro seguira por alguns segundos. Termina saindo pelo caminho oposto. O banco fica vazio. 

FADE OUT. 

CRÉDITOS

quinta-feira, 20 de outubro de 2005

Recorrência

- Você tem um calendário aí na carteira?

- Mas para que você precisa de um calendário se todos os seus dias são iguais?

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

Wars

Se George Lucas tivesse realmente chamado Orson Welles para fazer a voz do Darth Vader, desistiu por acreditar que a voz seria facilmente reconhecida, tenho certeza que Welles ia meter muito mais do que a boca, ia meter logo o bedelho inteiro, na trilogia toda. Pois é, talvez os ewoks não existissem.

quinta-feira, 29 de setembro de 2005

Cruzamento

O ônibus vinha chutado pela Avenida 17 de Agosto. Passava um, dois, dez sinais amarelos bem no minutinho de virar vermelho, o apito de controle de velocidade não parava de ressoar, idosos eram arremessados de um lado para o outro dentro do coletivo, o trânsito estavam sombriamente livre e em qualquer curva mais acentuada algum homem de voz grossa e dedos pequenos soltava o clássico comentário: "essa porra de motorista acha que tá carregando boi!". Foi então que em um dos sinais amarelos-quase-vermelhos, um carro de gente fina e bacana partiu antes do verde e atravessou a 17 de Agosto bem na frente do coletivo ensandecido. O ônibus freou, o carro acelerou, e enquanto era idoso para tudo que é lado, livros dos estudantes voando pelos ares, a cobradora caindo da cadeira, o homem de voz grossa e dedos pequenos segurando com todas as suas forças, todos ouviram aqueles dois segundos do som de pneus trincados que antecipam o 'puft' final. O 'puft' final veio, pois o carro ao acelerar com tudo, conseguiu escapar do ônibus, mas terminou batendo em outro carro que vinha na mão contrária à do ônibus, veículo que também tinha atravessado um sinal que acabara de fechar. Esse outro carro, por sua vez, bateu numa moto; a moto não bateu em ninguém, mas o motoqueiro terminou machucado, estava com o capacete em um dos braços e falava no celular tentando justificar o atrasado para a amante que o esperava na Praça 13 de maio. Só deixou de chama-lo de desgraçado quando soube do ocorrido. Todos recompostos dentro do ônibus, o motorista afinal tinha conseguido frear a tempo, então satisfeito com seu ato de heroísmo seguiu adiante, chutadíssimo do mesmo jeito.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

¥

um gravador de sonhos,
estilingue de pensamentos.

um chá de memória.


quarta-feira, 14 de setembro de 2005

quarta-feira, 7 de setembro de 2005

Engajamento Ltda

E o que dizer da ONG do bem que abriu uma loja e batizou de 'Ética'?

segunda-feira, 29 de agosto de 2005

Acredito que minha criação, desnaturalização e transgressão nunca foram acompanhadas, menos ainda pautadas, pelo justo (e pueril) sentimento de culpa, no entanto, desde que senti o peso da argumentação ainda criança, desde que fui grosso com uma vizinha arrogante, xinguei a coordenadora do colégio ou que tive de discutir com minha mãe por ela ter lido, sem permissão, linhas não tão carinhosas em meus cadernos, tenho um pequeno receio dos momentos em que as palavras me escapam: seja na ocasião em que elas explodem para fora e geram um campo de batalha, seja quando as isolo num mar distante dentro de uma garrafa.

quinta-feira, 25 de agosto de 2005

§

Sinto falta de um baú muito imenso para guardar cada uma das pequenezas bem miúdas do mundo.

terça-feira, 12 de julho de 2005

terça-feira, 14 de junho de 2005

Distinção 7

Existe uma sombria diferença entre saudade e carência: enquanto a primeira brota e se cultiva, a segunda brota e nos envenena.

terça-feira, 31 de maio de 2005

Vestígios

Até hoje quando deito na cama e vou dormir, a primeira coisa que faço é cobrir meu corpo com o lençol até o pescoço, deixando apenas a cabeça e os pés de fora e faço isso desde os seis anos, época em que o lençol carregava uma carga de segurança, pois acreditava que se um assassino entrasse no meu quarto enquanto eu estivesse dormindo, o dito cujo iria imaginar que alguém tinha chegado antes, me esquartejado e levado o tronco. Pois é, sou vítima da especulação mórbida desde bem miúdo.

domingo, 24 de abril de 2005

Entrevistado

Por que jornalismo?

Um ano antes de fazer vestibular, decidi que meu interesse por literatura não deveria necessariamente influenciar a escolha da minha profissão. No começo ia fazer direito, ou melhor, quando criança sonhava em ser paleontólogo, mas para o bem da entrevista é preferível não voltarmos tanto. Durante o ano que queria fazer direito, comecei a escrever muito, desenvolvi uma espécie de diário poético e aos poucos me libertei de algumas amarras estilísticas. À medida que conhecia novos autores investia nas pequenas ousadias. Todos meus cadernos de colégio tinham mais poesias, contos ou frases soltas que anotações escolares. Nesse mesmo período, se não me falha a memória, passei a participar de um mundo diferente do que eu estava acostumado, passei a viver e ter experiências de vida que até então só tinha intimidade através dos filmes. Depois disso, pisei na jaca da ânsia ‘ícone-porra-louca-rebelde-adolescente’ que para muitos ainda é a camada mais vistosa da minha aparência. Daí rolou aquela inundação de coisa nova. Naturalmente, como um bom leitor de Rimbaud, a inspiração só aumentava, usava do estranho para alcançar um auto-conhecimento, despi-me dos puderes simultaneamente no campo da experiência e da estética.

Toda as minhas sextas ou sábados terminavam na rua da Moeda, durante a semana saía com os amigos depois do colégio, chega uma hora que é preciso desvendar a cidade por si mesmo: percorri os cantos sujos da noite, tive minhas primeiras experiências com drogas, descobri pesadamente o sexo, tomei os primeiros porres, vomitei por aí. Tal movimento se concretizou no ano seguinte, ano de conclusão do ensino médio, com minha viagem para a Chapada da Diamantina, depois sozinho e sem dinheiro para o interior do estado, depois ainda numa Bienal realizada por aqui. Foi então que percebi a impossibilidade de trabalhar com uma coisa e ter a minha realização profissional em outra, que não agüentaria deixar essas duas esferas em lugares distintos. Nesse processo de assimilação terminei desistindo de direito. O mundo me pedia frieza e sensatez quando estava encharcado de instinto e sentimento. Durante o segundo ano, fiz vestibular por experiência para jornalismo, justifiquei para minha família dizendo que era uma prova mais fácil, mas só estava preparando o terreno. A decisão já estava tomada e jornalismo apareceu como única opção. É bom lembrar sempre a inconsequência de assinalar o resto da vida aos 16.

De qualque forma, para você ter uma ideia, fiz o vestibular animado, feliz da vida, tendo certeza que era aquilo: sonhava com a possibilidade de ‘sobreviver’ e me sentir realizado com uma mesma profissão. Óbvio que isso era uma loucura utópica, sem sentindo algum: jornalismo não me daria nem dinheiro, nem realização. Mas acho que nessa época eu estava mais propenso a esse tipo de precipitação e também não tinha algumas informações/reflexões básicas só adquiridas quando você entra na universidade. Ainda assim, sinto que não vou enfrentar mais grandes crises dentro do curso, sequer me arrependo de ter escolhido jornalismo, agora que estou aqui, quero nem saber, vou até o fim. Também sei que nesse tempo irei passar por transformações – ora a base de decepções, ora a base de orgasmos – que - assim espero - me tornarão uma pessoa mais madura, pelo bem ou mal do peso que essa palavra pode carregar. Continuo acreditando no imenso potencial da universidade, especialmente da universidade pública e digo isso não apenas pelas salas de aula ou bibliotecas, mas especialmente - e talvez principalmente - pelas pessoas que você conhece lá dentro. Sua dura perspectiva dá um rodopio e esvanece no ar.


Depois que tu entrou na universidade, o que mudou na tua visão sobre a escrita?

Em termos de escrita jornalística, simplesmente me situei dentro da realidade acadêmica e mercadológica, porque não tinha um discernimento crítico aprofundado, era um espectador desinteressado dos tramites pragmáticos. E, pra falar sério, gosto disso desde que não se transforme em alienação. Hoje tenho plena consciência da escrita jornalística e ainda assim, me mantenho meio distante, digamos que há uma leve distancia ética entre nossos corpos. Não costumo deixá-la me tocar muito, embora os trabalhos exijam uma cada vez maior aproximação carnal. Assumo um certo preconceito. No que toca a minha escrita, fico num impulso pendular de mudar de opinião a todo momento ao mesmo tempo que pareço não mudar muito. Sinto que as minhas palavras se transformam, se modelam, são fluidas o suficiente para acompanhar as eferverscências ou calmarias do momento. No entanto, existe uma essência consciente que geralmente chamamos de estilo, mas também acredito na possível mutabilidade dessa essência. Ok, cansei dessa masturbação mental. Próxima pergunta.


Qual o papel da palavra?

Isso é tão vago que poderia passar páginas e páginas respondendo tão vagarosamente e vagamente que tua ia dormir antes do fim. É o tipo de pergunta que cada pessoa pode responder uma coisa diferente e espero que elas o respondam diferente mesmo. Para mim, a palavra, e no meu caso a escrita, funciona não só como um meio de expressão, impressão e devaneio; funciona como um modo de adentrar minha subjetividade pela porta da frente sem ter que tocar a campainha. A conversa pode ser tão densa e intimista a ponto de tornar o resultado um texto cujo sentido original é exclusivo para mim. Na cabeça de outros, torna-se outro texto. Às vezes eu sou tão o cúmulo da subjetividade, das metáforas, da intimidade, da falta de rumo que posso me despir completamente sem que alguns notem a minha presença. Mas eu entendo que a palavra para algumas pessoas tem um valor social, pedagógico, politicamente correto. Sou egoísta e muito autoreferente nesse ponto. Vale dizer que o entendimento pleno do que eu escrevo não cabe a mim, vivo de esquecer antigas razões, permito minhas mãos psicografar meu inconsciente. Uma experiência quase lisérgica. Sempre penso nas pessoas que lêem e concedem outro significado, até mais rico que o meu. Essa polifonia é sensacional. Não gosto quando alguém me pergunta sobre o que trata um texto meu. Quem decide é quem lê, Barthes, Umberto Eco, todo mundo já dizia isso antes de mim. Essa coisa de inspiração como verdade tá super caída. Não me considero uma autoridade sobre as minhas palavras.


Palavra é realidade? E que realidade é essa?

Palavra é (odeio esses princípios de definição) uma re-significação do entendimento que temos de realidade. Para um terceiro que lê, é a re-re-significação. Você pode ter um apreço maior pela fantasia ou pelo realismo em suas descrições, pode ser mais ou menos denotativo, mas por um caminho ou outro não é o caso de hierarquizar uma legitimidade. Essa cobrança de refletir realidade é uma besteira, gosto de danificá-la irremediavelmente desde que o resultado estético me agrade. Identifico-me com Dorian Gray e sua admiração pelo belo em suas diversas instâncias. A parte de eu ser feinho só pode ser uma ironia.


O outro é alcançado mais facilmente pela literatura ou pelo jornalismo?

Depende do outro. Existem milhares de variáveis que estão entre um emissor e um receptor por mais que aprendamos isso de uma forma bem mecânica em Teoria da Comunicação. Seja como for, de forma geral, generalizando mesmo, acho que enquanto o jornalismo toca mais rápido e superficialmente, a literatura aparece para ser mais profunda. O primeiro é um beslicão, o segundo uma facada, desperta reflexões mais intensas, mais dolorosas. O jornalismo vale pelo momento, depois só resta como registro. A literatura tem lá sua transcendência. Claro que rola uma pose, um ‘quê’ de mais charmosa. Você lê Clarice e aquelas palavras lhe acompanham para onde você vai, você vê Clarice fumando seu cigarro e se deixar levar pelo encanto de sua fala. Você lê um jornal e no outro dia nem lembra quem escreveu a matéria, sobre o que se tratava, nada. Tenho a impressão que as pessoas ultimamente andam mais esquecidas do que nunca.


O discurso da verdade no jornalismo.

O discurso não. O mito. Pelo que falei da re-significação dá pra tirar. Essa coisa de verdade não me agrada e ao menos teoria não agrada muita gente, só que com o tempo as pessoas deixam pra lá, deixam pra lá qualquer coisa. Somos uma geração muito inerte e no curso os professores tentam colocar na nossa cabeça a extrema necessidade em ser objetivo, passar a verdade e tal. O pior é que alguns acreditam mesmo e seguem em frente.


Jornalismo é broxante? Literatura é tesão, é liberdade, são múltiplas verdades?

Jornalismo não me deu tesão, mas nem por isso é uma broxada. Assim, o princípio da função jornalística é bastante interessante, o problema são as regras e modelos instituídos, jornalismo também não é o fim do mundo como você está tentando me coagir a dizer. Sei que é intencional pra estampar a capa do seu trabalho. Na literatura, tenho uma história engraçada. Primeiro eu tentei compor letras de música, mas daí passei a achar que encaixar palavras numa melodia não me deixava dizer o que eu queria, daí parti para a poesia achando que ali estava a liberdade, mas depois de um tempo a abandonei quase por completo porque meus pensamentos estavam muito densos e confusos para serem colocados em versos. Daí passei a achar a prosa-poética o meio de conseguir utilizar minha liberdade em essência. Um dia vou achar que até a prosa poética me limita e das duas, uma: ou vou ficar só no mundo dos pensamentos ou irei virar funcionário público. Talvez as duas coisas.


O que a tua aproximação com a literatura soma ao jornalismo?

Eu estou aprendendo a separar um pouco as intenções (estarei realizando os devaneio dos meus 15/16 anos?), porque até o vocabulário que me impulsiona é abominado pelas regrinhas castradoras do jornalismo. Quando tive minhas primeiras aulas de redação jornalística tive certeza da frigidez do professor. Nada era emoção, sabe? Mas ao mesmo tempo, dentro da universidade, há abertura para diversas formas de expressão, de modo que de uma maneira ou outra você encontrando o seu espaço de expressão. É preciso empurrar com força às vezes. Existem os momentos de maior ousadia e os de maior contenção. O pior é que estou me acostumando a isso e quando os professores não deixam claro se a gente pode brincar com as palavras ou não, tiro pela impressão que tenho dele. Um dia ainda me ferro. Será que em Paulo Cunha vou me ferrar?


A linguagem do jornalismo é pobre?

Sem querer generalizar novamente, mas na maioria dos casos é pobre e a desculpa falseia o fato de ser um meio popular para encobrir o mito da imparcialidade. Essa é uma hora que eu me acho super elitista, super nem aí para o social, porque se tem algo que me irrita é quando alguém pede para tornar o meu texto mais claro através da substituição de palavras por sinônimos populares. O problema é que sou doido: quando mudo uma palavra por um sinônimo, simplesmente não vejo o texto da mesma maneira. Nunca fui muito bom em seguir as regras dos outros, sou da turma que gosta de fazer as suas próprias regras. James Dean chora.


Há prazer na leitura do jornal diário?

Poxa, eu adorava ler jornal, sabia? Eu era realmente viciado. Sendo que com o tempo perdi o interesse, por diminuir dentro de mim a importância do presente enquanto tempo histórico. Isso tem muito a ver com a expansão da minha cultura para outros lados, principalmente através da universidade. Hoje quase não leio periódico, só folheio, gasto poucos minutos. É mais uma ironia, levando em conta que faço jornalismo. Sem dúvida, determinados cadernos dentro do jornal aceitam uma linguagem mais livre, contudo, me pergunto se há abertura para o aumento desse espaço. Não há. Você deveria perguntar isso a uma pessoa que trabalhe em jornal e não a mim. Na minha própria sala de aprendizes sou um dos mais distantes do jornalismo diário, por mais que tire notas boas em Marconi.


Uma escrita gostosa de ler é advinda de talento ou de técnica?
Não vou responder essa e... como assim gostosa? Tu só podes ser lésbica.


Na faculdade há uma reflexão sobre o texto ou há apenas uma reprodução das técnicas já estabelecidas?

Há espaço para as duas coisas, em medida diferentes, as técnicas são ensinadas em muitos períodos. Acho que o sistema acadêmico acredita que uma escrita literária provém de talento mesmo ou eles exercitariam melhor essa potencialidade. Gosto de acreditar que uma escrita boa vem de uma inspiração boa mesmo que seja uma inspiração falsa. Acontece. Eu acho que não sei de onde vem as coisas. Nunca fui bom em criogênesis.

quinta-feira, 21 de abril de 2005

1967

Sonhei que Paul McCartney me dizia que o mundo iria fazer de tudo para me enquadrar num Sgt. Peppers, mas que eu não podia passar pela vida sem alcançar o Lonely Hearts Club Band.

segunda-feira, 18 de abril de 2005

Torre de Pisa

Sempre que tem um conflito para estourar, desses temerosos que ameaçam suprimir uma cultura, me posiciono contra o grupo mais imperialista e penso no seguinte: se querem brigar, que briguem, se acabem, se danem para lá, mas aquela coisa, matem os italianos, mas não destruam a Itália. Sei que é bem ortodoxo, mas o homem nasce de novo, a humanidade continua sua caminhada, logo logo surgirão novos motivos para brigar e enquanto essa brincadeira não tem fim, a história se apaga, a beleza se perde. Sempre gostei mais de mármore que de ossos.

sexta-feira, 8 de abril de 2005

Nascimento / Morte

Depois de cansar da Escola de Frankfurt, especialmente do empenho ideológico de Adorno e Horkheimer, adentro o pensamento do "terceiro" e mais interessante autor alemão desse período com uma dúvida básica: não sei se a aura foi destruída pela ascensão da fotografia e pela posterior radicalização do cinema, afirmando o rompimento com a unicidade, a perda do elemento místico envoltório e uma percepção massificada próxima aos objetos ou se esse conceito só deixa de existir enquanto tal depois que Walter Benjamin escreve sobre ele e determina sua morte. É só uma dessas inquietações filosóficas de banheiro, se os conceitos estão no mundo, esperando serem cartografados e nomeados, ou se estão na cabeça do homem como explicação desse mesmo mundo, de forma que quando se trata de um conceito de fim, a morte da aura, o mesmo tempo em que nasce é o tempo em que deixa de existir.

domingo, 20 de março de 2005

Amores Expressos

"Esta vida é uma viagem, pena eu estar só de passagem"
Paulo Leminski

Da superfície da pele encostada por acaso em uma estranha ao mais profundo e fugaz dos sentimentos entre desconhecidos, dos encontros repetitivos e anônimos do cotidiano aos apartamentos abandonados no vazio. Um dia, todos os indivíduos presos na distância de apenas um centímetro de seus corpos poderiam se tornar bons amigos, bons companheiros de momento. Ou talvez nunca chegassem a se conhecer, a se tocar mais conscientemente do que para pedir licença. São novamente os mais tristes e solitários dos seres que se encontram, que se cruzam e não se percebem. Horas depois poderiam estar apaixonados uns pelos outros. Horas depois poderiam estar sumidos da história – dos pequenos retratos civis, dos minuciosos recortes do viver contemporâneo. Da fragmentação narrativa dos amores expressos (expressos no sentido de rápidos, passageiros, efêmeros) aos formalismos audiovisuais do diretor. Somos novamente nós, os anjos, dentro dos pensamentos embalados num aparente silêncio, num aparente conforto. Somos os ouvidos e olhos que eternamente acompanham esses personagens sem nome, mas que relatam seus íntimos desejos. Estão ainda mais anônimos, mais solitários; mais excêntricos e exóticos. Cada pequeno hábito não convencional, cada pequeno questionamento os faz diferentes dos enlatados produzidos em massa que os próprios personagens consomem sem restrição – Honk Kong é o coração capitalista dentro de uma China meio aberta, a região de orientais híbridos, filhos da cultura chinesa e da cultura Pop ocidental. Não aparecem com data de validade precisa – nem sozinhos, nem juntos, nem os sentimentos. O videoclipe na tv trata de dar o ritmo do passo, tudo está num permanente estado de transformação; calmo e intenso dentro da individualidade de cada um. Nem as amizades, nem os amores estão seguros. São histórias demais, sentimentos confusos e tensões desnecessárias. São desconfianças infantis; cinismos excessivos e ligações não profundas. Estamos sempre na beirada das relações, olhando para baixo e com o medo estampado em nossa face. Nunca estamos prontos para cair. Essa é uma narrativa que traz policiais, funcionárias de lanchonetes e traficantes. Mas não é uma narrativa comum de perseguições. Na verdade, é sobre a fuga e o reconforto dos sentimentos, sobre pessoas que não se conhecem, mas que por um momento compartilham suas vidas. Trata-se de duas histórias inacabadas de solidão – dois contos interligados por menos de um centímetro de distância. Ou separados em mundos paralelos. Primeiro a noite, depois o dia; um à violência e o outro a magia. Primeiro os labirintos urbanos, as artimanhas, o submundo; depois o mercado, as escadas rolantes, as lanchonetes. Primeiro o whiskey com abacaxi enlatado, depois a salada junto ao café. Primeiro uma jukebox em algum bar decadente, depois ‘California Dreamin’ tocando intensamente. Há um contraste, mas também há confluências. A tristeza, a solidão, o abandono – a própria estética fugaz e estranha parece se repetir, ainda que no segundo momento mais voltada para um novo estágio. São seres da síndrome do vazio, da falta que nunca é saciada e do destino incerto. São seres românticos e desencontrados. A velocidade parece aumentar, aumentar, aumentar. Os personagens estão prontos para correr, prontos para seguir o ritmo alucinado dos novos tempos. Informações, imagens, idéias, emoções. Tudo lançado como bombas sobre as cidades, tudo produzido como encomenda num ‘fast-food’. É um filme sobre o amor, sobre as paixões que vêm e vão como aviões nos aeroportos distantes e não distantes. É sobre contatos intensos e fugazes a tal ponto de não se realizarem. Nem sequer um beijo e o sentimento já passou. Fica a lembrança. E talvez haja um problema. Nós não a entregamos em domicílio.

He Qi-wu ou número 223 é um policial que quando apaixonado, gosta de correr para que as lágrimas não cheguem aos olhos, para que elas sejam expelidas por seu corpo antes de tomarem sua face. Está sempre a correr, a esbarrar em desconhecidos que um dia viria a conhecer. Ou que nem isso. O mundo em sua volta se desfoca – literalmente se desfoca. [A sensação de velocidade sob os pés apressados em meio à multidão causa náusea num primeiro momento, a visão parece rascunhada, carregada sem jeito. A cena é ‘videoclíptica’ demais, até violenta por isso. A própria câmera se perde no caminho para se achar em seguida e se perder novamente. Há uma estranha sensação entre um trabalho rebuscado e uma obra rasurada. Algo parecido com o início do filme ‘Irreversível’, de Garpard Noé. Mas a violência aqui fica só na montagem, não se torna gratuita]. O número 223 corre entre milhares de sem face, engolidos numa massa única e disforme que anda, anda – o que me remete a homogeneização do homem e ao seu futuro ‘robótico’. O rapaz termina se chocando com uma estranha. A câmera para – literalmente para. O contraste visual já está criado.

"No momento de maior intimidade, ficamos 0,01 centímetro de distância. 57 horas depois, eu me apaixonei por ela".

A namorada de Qi-wu (223) acabara o relacionamento de cinco anos, pois ele não a entendia. Uma coisa estranha de se dizer depois de tanto tempo. Inconformado, o rapaz tenta manter um contato com as pessoas em volta dela, desejando provar para si mesmo e para os outros que na verdade é a moça que quer o reencontro. Tenta demonstrar uma situação que não existe. Mantêm uma espécie de orgulho melancólico, enquanto a amada sequer o liga, sequer aparece dentro do filme. Antigamente, May ia ao ‘Midnight Express’ porque o gerente dizia que ela lembrava a Demi Moore. E depois que eles se separaram, ela diz que Qi-wu está cada vez mais diferente do Bruce Willis. [O cinema de Wong Kar-Wai é bastante referencial (e em alguns momentos até auto-referencial – segue esse tendência deixada por Wim Wenders e re-significada por Tarantino). Há um trabalho interessante com a música – ora funcionando como delineador de ambiente (bar decadente - música decadente), ora como delineador de situação emocional (melancolia no personagem, melancolia na música). Porém, ao mesmo tempo, ela não segue diretamente esses padrões, assim como encontra outras conotações dentro da película. É a personagem que escuta música alta e tem que se aproximar de um outro personagem para que possam conversar; é o rapaz que coloca a ficha e sempre a mesma música na jukebox estilo retrô, é a incerteza para o futuro enquanto escuta ‘happy together’. A música pode vir associada à imagem de várias maneiras – interferindo diretamente nela, retificando um clima do mostrado ou sendo irônica para com. Chang, em ‘Felizes Juntos’, parece nos chamar a atenção para trilha sonora da película, aparece como metáfora dos olhos presos a questão plástica e dos ouvidos esquecidos do trabalho estilístico da música (ou da falta de). Na verdade, essas são apenas algumas facetas que o diretor trabalha. Suas referências vão de Wim. Wenders, Antonioni, Godard, o kitsch e o cult até a geração fast-food, coca-cola, Mc Donalds e o cinema extremamente mercantil americano. E tudo está num grande bolo fermentado pela cultura oriental]. A desconhecida é apresentada no filme sem nome. É apenas uma oriental loira, que fala inglês, bebe whiskey e é traficante. Em teoria não passa disso. Ela contrata/constrói imigrantes para que eles transportem drogas (constrói no sentido de forjar mulheres grávidas, crianças inocentes, pais vestidos em roupas feitas em casa, enquanto que insere cocaína dentro dos sapatos, da barriga ou até do ursinho de pelúcia). Literalmente são construídas pessoas para passarem, sem suspeita, sob a vigília dos aeroportos. Talvez pessoas fossem construídas todos os dias, para as mais diferentes situações. A mulher apenas não esperava que no aeroporto, todos os imigrantes sumissem. Anda na rua sem destino. Atordoada, estava com problemas, mas ainda tentava manter a calma, a frieza. A pose de femme-fatale.
Me tornei uma pessoa cautelosa. Sempre uso óculos escuros e capa de chuva. Nunca se sabe quando vai chover ou fazer sol.

Por sua ex-namorada gostar de abacaxi enlatado, o número 223 decide passar um mês apenas comendo tal alimento. Terminado esse prazo desistiria do retorno para sempre. Um dia para o fim dos dias, continuava a comprar enlatados com data de expiração para o dia seguinte. Mostra-se uma obsessão do personagem por validades. Tudo vence. Sardinha vence, molho vence; até papel de embrulho vence. Teme que seus sentimentos sigam essa mesma lógica, que os seres humanos tão envolvidos com o mercado se deixassem por ele dominar. May não voltaria o relacionamento e o rapaz decide sair com alguém. Liga para uma menina que dorme no meio da ligação, liga para uma outra que se casara. A última sentava perto dele na terceira série. Ela não lembra e ele sente o quão distantes dormem seus amigos, o quão mortos estavam seus abraços. Termina entrando num bar qualquer. Promete se apaixonar pela primeira mulher que aparecer. Promete se desligar do passado que o consome. O passado imutável. Sua história começaria ali. [Pode soar óbvio demais falar sobre a solidão dos personagens. Mas ainda assim, acho necessário por não ser uma solidão qualquer e por ela ser tão retratada em seus filmes. Wong Kar-wai a re-significa (ou melhor, a mostra por um outro ângulo) através de personagens atípicos e micro-histórias singulares – eles não choram a todo o momento, ficam em silêncio, sentem o sofrimento por cada uma de suas veias ou transferem sua dor para o mundo que os cerca. Talvez, concentrem ainda mais a dor dentro deles, contaminando seus viveres, a ponto de perderem o controle sobre seus atos. É quase teatral no sentindo mais poético possível. São pessoas abandonadas, traídas, sozinhas. Aparentemente, sem objetivos nenhum. Talvez a melhor característica dos homens e mulheres de suas películas, esteja na construção delas em si. Às vezes existe um confronto do que os personagens dizem sobre eles mesmos e a nossa opinião sobre. Wong Kar-wai dá a luz a personagens complexos sob a fantasia de vazios]. A loira-postiça-traficante inicia uma busca para se vingar dos que a traíram. Mata alguns. Depois é perseguida numa cena mais rápida que a primeira do filme e nossos olhos já não se chocam tanto. Vai para o bar e encontra o número 223. Qi-wu acha que ela gostou dele. Decide perguntar. Será que ela gosta de abacaxi. Sem resposta. Talvez não entenda a língua. Fala em cantônes, em inglês e apenas em mandarim, ela responde. Não quer conversar e ele só quer companhia. Terminam bêbados e ele a levando para casa dela. Não realizam nada. Ela simplesmente manda uma mensagem de parabéns para ele no outro dia. O rapaz não a esqueceria por isso. A loira volta ao bar e mata um americano que minutos antes transava com uma japonesa só depois que ela colocara uma peruca na cabeça. Joga, por fim, a própria peruca no chão. As morenas também sabem ser fatais.

“Se lembrança puder ser enlatada, que venha sem data de validade”

He Qi-wu volta ao ‘Midnight Express’, quando o gerente diz para ele investir na Faye – uma empregada nova na lanchonete. Aparece um homem e ele diz ser heterossexual. Então uma garota que vem arrastando um balde esbarra nele.

“No momento de maior intimidade, ficamos 0,01 centímetro de distância. 6 horas depois, ela se apaixonou por outro.


A partir daqui, os personagens principais da primeira história não aparecem mais. O encontro anônimo entre Qi-wu e Faye dá a ligação ao resto do enredo, ao segundo conto sobre a busca por um rumo, se possível ao lado de alguém. Entra em cena o policial número 633 (não confundir com o número 233), que vive junto com uma aeromoça. Todo dia vai ao ‘Midnight Express’, onde Faye trabalha, comprar uma salada para sua namorada. Numa dessas, o gerente sugere que ele leve peixe e salada, para que ela possa escolher. No outro dia, visivelmente abatido ele pede um peixe. A namorada gostara. O gerente sugere que ele leve um peixe e uma pizza para que ela possa escolher novamente. Na vez seguinte, ele pede apenas uma xícara de café. Sua namorada fora embora. Disse que precisava conhecer mais coisas do mundo e o rapaz acha que ela deveria ter ficado mesmo na salada. [Uma outra característica do diretor é desenrolar a história, a partir de pequenas fábulas urbanas, inserindo ou não lendas populares orientais para dar um tom mais delicado – o processo de criação da poesia em estado fílmico. Em ‘Amor à flor da pele’, o diretor fala sobre segredos que não podem ser contados a ninguém. Enquanto um personagem diz que vai a um bordel para relaxar, o outro expõe uma história: antigamente se contava esse segredo dentro de um buraco de uma árvore e a cobria de lama, para que de lá não saísse. Termina o filme com esse personagem contando um segredo dentro de um buraco, em ruínas do Camboja. Minutos e minutos e minutos de silêncio. O segredo está guardado. Até mesmo de nossos ouvidos]. Faye é uma jovem moça que passa o dia trabalhando e escutando ‘California dreamin’. Ao ver o policial número 633, termina se apaixonando ainda que só trocassem, no máximo, as palavras que separam uma vendedora de um cliente. Ela é uma jovem despreocupada, que vai vivendo sem pensar muito em possíveis conseqüências. De todos mergulhados na complexidade, ela parece ser a mais simples. Pois é realmente aquilo que nós vemos, ela é o ser ‘presente’ que parece ser.

“Depois que ela foi embora, a casa ficou mais triste. Todas as noites eu tinha de colocá-los para dormir”

O número 633 sempre volta para casa e inicia uma série de monólogos com os objetos dentro dela. Em relação ao sabonete, se choca por ele estar tão magro, por ele estar se entregando a tristeza; para o pano de chão velho e molhado, afirma que ele não pode chorar tanto, que a depressão não poder tomar conta de sua vida. E o ajuda, espremendo-o. Fala para o urso de pelúcia que ele está sujo, que ele precisava se cuidar. Já à camisa, pergunta se ela está com frio. E passa ferro, em seguida. [Novamente aparece à questão da pequena fábula urbana. Os filmes de Wong Kar-Wai não podem ser encaixados em um gênero específico por passear como um flâneur, pelos vários existentes. Até em filmes como “Cinzas do passado”, que trata da história de samurais, o diretor enxerta uma linguagem não tradicional, fragmentada, além de diversos formalismos típicos de outros gêneros (e típico do seu modo de fazer cinema). Na verdade, ele segue a tendência cinematográfica do dito pós-modernismo que bebe um pouco de cada diretor, de cada gênero, de cada tradição e de si próprio criando uma película híbrida. Talvez o cinema feito por Wong Kar-Wai pudesse ser divido pelo tempo onde passasse as narrativas: entre contemporâneo (o tempo onde não se sabe direito que tempo é) ou os filmes datados (passados em épocas de samurais, década de 60 ou até futurista). Porém , essa divisão soa inútil quando percebemos que o seu trabalho, indiferentemente da época que se passa, segue uma linha temática (o lado introspectivo do ser) e até estrutural ( a desconstrução, fragmentação, fotografia minuciosamente trabalhada, filtros de imagem)]. Um dia qualquer a aeromoça aparece no ‘Midnight Express’ e deixa uma carta com o gerente. Todos do local lêem sem pudor algum. Inclusive Faye. Tudo está acabado e a aeromoça devolve as chaves do apartamento. Quando o número 633 aparece na lanchonete, ao saber da carta, diz que a moça pode entrega-lo outro dia. Preferia fugir por um tempo, evitar o teor óbvio daquelas palavras. Faye pega o endereço dele para enviar pelo correio. Mas não o faz. Passa então a ir até a casa do policial todos os dias e fazer pequenas modificações dentro dela, enquanto ele não está presente. O rapaz nada percebe. Faye visita a casa dele sozinha, constantemente. É como um grande devaneio, a partir do momento que ela passa pela porta. Redecora, dança, sonha. Possivelmente nunca acordaria. Um dia o policial sente que a aeromoça havia voltado, chega correndo, mais cedo, em casa e tudo está inundado. Questiona se havia mesmo deixado uma torneira ligada ou se o apartamento estava tendo uma crise sentimental. Para uma pessoa poderia dar um pano e algumas palavras. Para o apartamento era um pouco mais complicado. Faye aparece no local um pouco depois e se assusta com a presença do rapaz. Ele a convida para entrar e coloca um cd. Toca ‘California Dreaming’. Ela pergunta se ele gostava daquela música. Ele diz que não se importa, que na verdade, era sua namorada que gostava. E eu me questiono se ele realmente gostava dela ou se simplesmente queria gostar.

“Sei que a namorada dele não gostava dessa música. O disco era meu, eu o deixei aqui. Sonhos não são contagiosos”

Finalmente, o número 633 percebe cada pequena mudança. Para o sabonete novo diz que ele não poderia engordar tão de repente. Que ele não podia se entregar e precisava fazer um regime. Ao pano de chão novo e seco fica chocado. Como podia ter mudado tanto em tão pouco tempo. Escondido, o polical vê o pano na chuva, quando ele começa a pingar. Estava mudado, mas continuava a ser um pano afetivo. Ao urso de pelúcia – que agora é um tigre comprado por Faye – pergunta se ele andou brigando. Terminado o monólogo sobre si mesmo e as diferenças em dentro dele, poderia, enfim, dormir. A garota não mudara apenas sua casa. Outro dia ele chega na residência e encontra Faye dentro. Há o choque mais por parte dela, do que por parte dele. Ela foge sem mais explicações. O número 633 vai ao Midnight Express pede a carta e a convida para sair. Hoje, restaurante California, 20:00. Ela demora. O policial se afunda dentro de suas decepções. O gerente da lanchonete aparece para dizer que a moça não viria. Entrega uma carta e diz que ela viajou para Califórnia. Estão em Californias diferentes. O número 633 não é bom com cartas e a joga fora. Depois de um tempo a pega onde havia jogado. Levara chuva. Estava borrada a passagem, com data de um ano depois. Não dava para ver o destino. Nunca daria. [ “Para mostrar a mudança deve-se utilizar as coisas imortais. O tempo passa, as pessoas mudam, mas há muitas coisas que não mudam” é o que diz o diretor sobre algumas repetições inseridas em seus filmes. E realmente algumas estruturas soam similares, uma espécie de tratado sobre as coincidências, ou melhor, sobre a singularidade que faz dos fatos coincidentes, singulares entre si. Nesse filme, a duplicidade chega ao ápice. Existem duas moças chamadas May, duas mulheres em perucas louras, duas aeromoças, dois policiais abandonados por suas namoradas. Ainda assim, os detalhes as fazem diferentes. E é nesses detalhes que o diretor passa a focar sua lente]. Um ano se fora, Faye, vestida de aeromoça, aparece na lanchonete que agora pertencia ao número 633 – que só por acaso, estava escutando ‘Califormia Dreaming’. O antigo gerente tornara-se dono de karaokê. Ele diz que ela fica melhor de uniforme. E ela diz que ele fica melhor sem. Estava no dia da viagem. Pergunta qual o destino. Ela pergunta qual o destino que ele quer. Ele pede que ela escolha qualquer lugar, desde que vá junto. Os revezes não são para sempre ou talvez esse seja apenas o começo de mais uma relação momentânea.

quinta-feira, 17 de março de 2005

diálogo do passado com amigo distante

- Estou escrevendo um conto e te encarnei em um dos personagens principais.

- Ah, é? Como assim?

- Peguei uma história bem trash tua e coloquei dentro do conto.

- Ah, é? Então, quer dizer que agora eu posso te processar oficialmente?

- É, pode. Só que se tu processar, todo mundo vai saber que aconteceu contigo.

- o_O

- ...

- Isso é uma ameaça?

- Não, claro que não, estou apenas tentando defender a literatura.

segunda-feira, 14 de março de 2005

Felizes Juntos

Farto de ver. A visão que se reencontra em toda parte.
Farto de ter. O ruído das cidades, à noite, e ao sol, e sempre.
Farto de saber. As paradas da vida – ó ruídos e visões!
Partir para afetos e rumores novos”.
Arthur Rimbaud, ‘Partida’

Parece ser tempo de recomeçar dentro da existência de um casal onde o recomeço parece recorrente, repetitivo. Até mesmo forçado. Onde o recomeço toma uma face sonsa, cínica e desanda para o mesmo fim da história anterior. E não estamos falando de um derradeiro segundo feliz. Estamos falando de alguns socos e pontapés, de algumas ironias e insultos, de alguns gritos ou da falta de palavras tão iminente. Estamos falando do contexto de uma relação conflituosa, do clima existente entre dois rapazes afundados num círculo vicioso de seus corpos para seus corpos, de suas vidas para suas vidas – estamos falando dos beijos e do nojo, dos orgasmos e do vômito – da lama, da lama. São dois rapazes que se consomem e se desgastam na mesma velocidade que tragam a fumaça do tabaco – carteiras e carteiras e carteiras de cigarro. Dois rapazes inseridos no nada e no tango argentino; de Caetano Veloso, de Frank Zappa a música americana tocada em Taiwan – onde o som (ou a falta de) embala o lado introspectivo, reflexivo, solitário das personagens. Embala os anônimos na multidão; os guetos, as tribos cosmopolitas e isoladas. Embala toda tristeza, toda melancolia – o extremo da distância, o último soluço de saudade. Trata-se de um amor sadomasoquista. Fazem-se mal, mas estão enfraquecidos sem a companhia mútua. Nada de felizes juntos, apenas piores separados. Até se amam e desfrutam de um sexo aparentemente prazeroso, até se necessitam e constroem sonhos similares. E isso não significa nada. A convivência os destrói, os tornam detestáveis – deixa claro o quão ligados e odiosos são entre si, o quão nocivos são seus beijos. Esse não é um filme que levanta questões ou polêmicas sobre a homossexualidade, é um filme que traz uma estética da decadência, da sujeira, da poesia incrustada no lixo e no silêncio. Um apartamento apertado, sufocante – da cozinha coletiva aos rebocos caídos. Uma cidade caótica, delirante – de muitas luzes, de muito barulho, de muitos lugares. De segredos e tormentas, de encontros e acolhidas. Não é um filme de personagens transparentes, decifráveis; é um filme que traz rapazes inseguros, escondidos – essencialmente metropolitanos e apaixonados pela urbe – rapazes que se completam e não se suportam, que seguem caminhos inusitados, destinos imprevisíveis – ora entrelaçados, ora independentes. São jovens de atitudes contraditórias, de sentimentos confusos deles com eles mesmos – de iras e fraquezas, de tempos e vontades. Não são cartesianos. São pensadores, andarilhos ou viajantes – subjetivos, marginalizados, desregulares. São tristes e soam como loucos em seus gestos desencontrados, em seus momentos mais solitários. O contexto apenas não entende. Podemos ouvir seus devaneios, suas pequenas poesias íntimas. Podemos saber suas verdades, deitar sobre seus colos. Somos, nós, os anjos desses seres; seus observadores tão singelos. Os dois rapazes estão à procura de uma sensação de conforto ou fugindo de seus problemas, estão encolhidos dentro de si mesmos – amparados na parede, por trás de uma cortina de fumaça. Falta coragem. Não conseguem dizer que sem amam e se engasgam, se sufocam por seus próprios sentimentos, por seus próprios medos. É a estética do não-dito. São as lágrimas seguradas até o último momento, são as cenas de construção delicada. É a obsessão pela razão, pelo preciso, pelo exato perdendo espaço para a sensibilidade, para a utopia, para o idealismo tão sutil e vago. E tão bem representado na imagem. São jovens e estão – quase sempre – prontos para recomeçar. Seja esse recomeço como for, onde for. E por um segundo não há nem resquícios de tempos passados, nem lembranças de vidas anteriores. Tudo, em seus olhos, se resume a um sonho ainda não iniciado. Os passaportes já estão carimbados.

E a película começa em preto e branco.

Dois jovens saem da Honk Kong, das escadas rolantes e dos prédios luminosos para a Argentina, dos velhos carros alugados e das boates de tango. Iriam até o outro lado do mundo em mais uma tentativa de recomeçarem sua relação, de redefinirem seus papéis. Uma espécie de férias distante de tudo que não dera certo anteriormente. Distante de todos os estigmas, de todos ressentimentos – de todos os erros. Pretendiam passar um tempo juntos para descobrirem o quanto se precisam. Descobrem o quanto se detestam, dentro de uma convivência permeada pela culpa. Não a velha culpa clichê de serem homossexuais, uma culpa sustentada na inversão constante de posições dentro da relação. Ora um vítima dos ciúmes do outro, ora o outro vítima do parasitismo de um. Outrora o contrário nas duas situações. [Cria-se o juízo contraditório de que eles se amam, mas que não podem ficar juntos de jeito nenhum. Que a relação nunca terminaria bem. Entretanto, isso não se deve pela presença de terceiros ou acasos dentro da história, como comumente é apresentado no cinema. Isso se deve graças à existência deles mesmos, de suas personalidades, seus medos e anseios. Os próprios personagens presos nesse dilema têm consciência dessa condição, ainda que tentem sempre quebrá-la inutilmente. Inutilmente no sentido de não expressarem, em palavras, suas vontades, seus desejos. O termo ‘amor’ carrega um peso que suas bocas não sabem suportar. Permanece um silencio incômodo, um olhar desconfiado. E o amor, o sofrimento e a distância soam como única solução plausível. E partir disso (ou talvez não), lançam-se em caminhos opostos, ora degradantes e ao consumo desenfreado de cigarros e fumaça. Não existem maiores fumantes compulsivo-obsessivos, não existe maior desgaste do que o de um para o outro. Por fim, resta apenas a fumaça negra se dispersando sob um fundo branco]. A ideia de visitarem as cataratas do Iguaçu não dá certo. Perdem-se no caminho físico e começam a se perder um do outro. Compram uma luminária simulacro das cataratas como metáfora da própria relação dos dois, como metáfora da vertigem, como esperança de um dia estarem juntos sob as águas e a luz. A situação já está definida. Os dias dentro do carro foram o bastante para eles. Já não se agüentam mais; não há outra saída. E mais uma vez terminam e tomam rumos diferentes.

Um lapso de cor: as cataratas são azuis.

Lai-Yiu-Fai volta para Buenos Aires e passa a trabalhar como porteiro numa boate de tango. Odeia sua função. Passa tempos e tempos encostado na parede, de acordo com apenas seu cigarro. Um dia qualquer Ho Po-Wing aparece acompanhado de alguns argentinos na boate, depois de meses sumido. Tornara-se garoto de programa e nem notara a presença quase descartável de Fai. As diferenças pareciam se acentuar. Ou talvez não. Po-Wing mantinha uma pose de indiferença dentro do carro, mas discretamente olhava para trás, olhava para Fai. As saudades já marcavam sua face – o jovem estava triste. Os dois estavam. [Cria-se o paradoxo dos rapazes se beijando, dentro de um tradicional clube de tango, freqüentado essencialmente por velhos e turistas. Ao invés da sensação de choque, há uma estranha aura de normalidade, de lugar comum. O rito habitual continua a ser habitual e essa realidade parece inexistente, soa como uma projeção utópica. Eles não se passariam por anônimos. Não ali. Não naquela ocasião. O contraste chega ao cume no cenário e na imagem. Ainda assim, a cena é construída de tal maneira a deixar claro que aquilo é ‘fake’, que aquela reação é ‘fake’. Sabemos que o que se vê não passa de um filme e que aquele momento é apenas figurativo. O diretor não se sente na obrigação de mostrar o real a todo o momento. Naquele instante, o que vale é o sentimento refletido pelos olhos das personagens. Por fim, resta apenas a fumaça branca se dispersando sob um fundo negro]. Todos os fantasmas continuavam vivos. Um por um. Estão a ecoar a falta de palavras; a falta de coragem. A falta. Simplesmente a falta. E o silêncio tornara-se mais presente, os lamentos mais profundos. Os dois rapazes voltam a se encontrar. Algumas brigas, embriaguez, falsas tentativas de reconciliação – encontros marcados por cobranças e mentiras. Mantêm uma distância ética entre seus corpos. E a ética logo se torna pó. O michê e sua vida instável na prostituição desmoronam. Não lentamente. Algo de um golpe. Havia sido espancado por algum cliente ou em um outro negócio qualquer que se envolvera – seus dedos foram friamente quebrados, seu rosto sangrava. Lai-Yiu-Fai o encontra caído na porta de seu apartamento e não consegue ignorar o fato a sua frente. Leva-o para o hospital como se carregasse o maior de seus fardos. Po-Wing diz que eles poderiam recomeçar.

Um lapso de cor: o céu está vermelho.

E dessa vez não fora apenas um lapso. A película se tornara colorida – e não apenas colorida. A iluminação mais estourada, os sentidos distorcidos. O apartamento de Lai-Yiu-Fai, acomoda Po-Wing. O primeiro passa a cuidar do segundo e sua existência vegetal, parasita, dependente. Entretanto, insiste na importância de continuarem a manter uma distância ética entre seus corpos, entre seus sexos. Mesmo dentro de um ambiente sufocante, de um clima quase erótico – de uma atração nata. Queria e não queria recomeçar. [Moram em um apartamento que não passa de um quarto, inserido num prédio velho, decadente. Um espaço que causa uma sensação de desconforto – de claustrofobia mesclada com sujeira. Um apartamento que poderia estar em qualquer periferia de qualquer lugar do mundo; habitado por imigrantes, marginalizados, excluídos. Uma torre de babel em plena Buenos Aires. Essa aura de compressão do espaço também é trabalhada pelo diretor em “Amor a Flor da Pele”. Com a câmera em suas mãos parada, a nossa visão parece presa, por trás de entulhos ou janelas, enquanto os personagens se movimentam sem mostrar as suas faces. Seus destinos. Trocam palavras, olhares, sensações e continuamos distantes, sem pudermos nos envolver por completo. Nesse mesmo filme, famílias inteiras moram dentro de um mesmo apartamento, condensam diversos mundos em um só – metáfora da própria época. A China estava passando por sua revolução cultural. E Hong Kong fora o destino para muitos]. Um no sofá e o outro na cama – separados, distantes. A menos de dois metros. Um observa o outro dormir. O outro observa o um antes de acordar. Estavam ligados mesmo que quisessem (ou tivessem de) se detestar. Po-Wing insiste em reatar as linhas perdidas e torna-se cada vez mais e mais dependente de Lai-Yiu-Fai. Não cozinha, não compra cigarros, apenas pede e pede e pede e pede. Cobra e cobra e cobra. Até mesmo quando Fai está doente de cama, resfriado pelos dois tentarem ir juntos as cataratas não visitadas. Desistiram no caminho. Estava frio demais para eles. A cidade parece agitada, tremulante, ainda mais distorcida. Talvez não esteja conformada com alguma situação.

Um tango em preto e branco. Apenas poucos beijos, por enquanto.

A dança profundamente triste viria para reconfortá-los dentro dos braços um do outro. A distância ética tornara-se pó e o sofrimento um pouco menor. Poderiam achar que aquele era o início da felicidade. Mas não, ali era a felicidade. Aquele momento. Naquele exato momento. Teriam os personagens se apercebido disso? [A cena dura minutos em silêncio, em poesia. O tempo não passa, se acumula. Os passos são sutis, o contato delicado, cuidadoso. Haviam caído de seus postos mantidos pelos pulsos. Haviam se entregue a seus desejos, à sinceridade momentânea. Ao contato de um com o outro. Trata-se de uma mistura de medo e conforto. Tudo era novo e velho, um quase conhecido. Tudo era presente, momento e logo se esvairia. Wong Kar-Wai “utiliza um grande número de formalismos visuais, no que diz respeito à velocidade da imagem, seja em slow-motion ou acelerada, procurando ilustrar momentos fugazes ou que se deseja prolongar o tempo” (Canau, Luís. 1998.), procurando mostrar as emoções das personagens sem ter que dizer exatamente o que ela estaria sentindo. É nesse espaço entre o que não é dito, mas sugerido pela imagem que reside um dos principais charmes do diretor]. Fai passa a trabalhar num restaurante. Po-Wing continua inerte, vegetal, parasita. O momento do tango já se fora e não demora muito para as brigas retornarem ao caminho. Passam a questionar o tempo em que estiveram separados – as pessoas com quem se envolveram, os mundos o qual visitaram. Tornam-se neuróticos e neuróticos – obsessivos, violentos um com o outro. Fai rouba e esconde o passaporte de Po-Wing, para mantê-lo, depois de curado, preso a seu apartamento, a sua vida. Sabia da índole ‘andarilha’ do amante. O medo de o outro sumir o invadia. O corroia a cada saída para comprar cigarros. E estava certo. As mãos estavam saudáveis, buscavam seu passaporte. Queriam ir embora, destruíam o apartamento em acessos de raiva cada vez mais constantes. Nem os cigarros escapavam. Brigas, socos, pontapés. Insultos, ironias, sangue. Sadomasoquismo em alta, posições invertidas – culpa. Fai estava finalmente pronto para recomeçar, justamente pronto quando Po-Wing saía pela porta.

Um terceiro personagem. Não os olhos, os ouvidos.

Lai-Yiu-Fai está triste e mesmo que não demonstre, sua voz o denuncia. Quem aparece para dizer isso é Chang, um turista de Taiwan que ficara sem dinheiro para manter seu nomadismo. Fugira dos problemas, de um passado em sua terra natal e terminara trabalhando ao lado de Fai – pretendia novas viagens a sua frente. Chang, era um rapaz que quando criança tinha problemas de visão e desenvolvera seus ouvidos – além da imagem, os sons. Fai e Chang tornam-se amigos, amigos sinceros – cúmplices contra a solidão mútua, de origens diversas. Passam a beber algumas cervejas, juntos. E Fai sempre vomita, sempre termina carregado até em casa. Claramente algo está errado dentro dele. Chang conta o dinheiro e já está de viagem novamente. Pretende ir a Ushuaia (a Terra do Fogo), o lugar conhecido como o fim do mundo. O lugar onde existe um farol que acolhe os problemas dos viajantes. Chang quer uma lembrança de Fai, mas não gosta de fotos. Entrega um gravador e pede que o amigo deixe um relato o mais sincero para que o liberte no farol. Enquanto o outro dança, Fai fica em silêncio, chora. Apenas chora. Termina a noite, vomitando novamente. Em casa, se despede do amigo num abraço tão poético e profundo, quanto o tango dançado com o amante. O silêncio, o tempo, a nossa inveja. Chang se vai como representação da liberdade triste, da sensibilidade reservada. Se vai como prova, das relações cada vez mais efêmeras. E ainda assim, muito profundas.

Beatniks de momento!

Fai fica sozinho dentro daquela imensa cidade em terra estrangeira. Sem nenhum apoio, sem nada para fazer. Acaba se entregando a uma vida parecida com a de Po-Wing. Freqüenta o submundo, as ruas escuras, os guetos, as tribos estereotipadas ou não, o sexo casual – fumaças e fumaças. Perambula pela cidade sem um rumo certo, sem um destino traçado. Ao menos, abandonara o fantasma de conviver com alguém que poderia sumir a qualquer momento, alguém que ia comprar cigarro e que poderia não mais voltar. Fai não desejava que Po-Wing se curasse, estava contente com os pequenos momentos de sorriso. [A influência de Godard se faz presente. Ora a câmera é subjetiva e nos dá os olhos de Fai aos locais, ora se perde do protagonista, o coloca como mais um dentro de uma multidão de anônimos. Câmera para um lado, personagem para o outro ou câmera para um lado e personagem em lado algum. Filma Buenos Aires, o consumo em cores cada vez mais estouradas. Wong Kar-Wai leva algumas lições de ‘Acossado’ ao extremo]. O personagem termina nos locais de prazer. Cinemas pornôs, banheiros públicos sem compromisso, finge ser um andarilho qualquer em busca de algo casual. Porém, sabe que não é. Transa até com Po-Wing dentro de um Box qualquer. Crise de existência na seqüência; não estava preparado para tamanha casualidade. Achava ser diferente do outro até ter certeza que as pessoas solitárias eram todas iguais. Po-Wing é o verdadeiro Flâneur Beatnik da película – excessos, perambulações, drogas, álcool, sexo por sexo, prostituição, sem rota, loucura, falta de dinheiro, sem trabalho, violência. E depois de tudo, saudades do conforto dos braços do amante, para novamente querer se entregar à vida decadente. Um eterno círculo vicioso até a quebra de um dos lados.

De volta ao outro lado do mundo

Antes de ir para Argentina, Fai roubara dinheiro do trabalho onde seu chefe era amigo de seu pai. Liga para Honk Kong, tenta falar com a voz paterna. Tenta se desculpar. É renegado. Manda um bilhete de natal, uma longa carta. Lembra que não conversavam muito e que agora tinha tanto a dizer; acha estranho. No final, afirma que eles poderiam recomeçar. E talvez não fosse tão diferente de seu ex-amante. Passa a trabalhar num frigorífico. Trabalha de noite, dorme de dia. Vive no mesmo horário de sua terra natal. Ainda que no outro lado do mundo. [Wong Kar-Wai não evita em filmar Hong Kong de cabeça para baixo por uns minutos. A sensação de enjôo e tontura parece certa. Inclusive o diretor costuma intercalar, em todos os seus filmes, cenas de sua terra natal vibrante. Com cores fortes. A urbe, a sua urbe em extremo ponto de excitação. Wong Kar-Wai desenvolve uma relação profunda com o cenário em seus filmes, desde elementos figurativos/metafóricos até o pano de fundo onde se passa a história (em especial, Hong Kong). A metrópole é mostrada através de suas veias abertas e suas luzes, do seu estilo retrô até o seu visual mais futurista. Da identidade (os bares de tango, os mercados populares, as escadas rolantes na rua) até a universalidade dos não-lugares, conceito de Marc Augé, que se refere a espaços independentes do contexto em que estão inseridos e sobre os quais se debruçam (Aeroportos, Mc Donald’s, estradas...). No próprio filme há uma sensação de suspensão do tempo e espaço, características básicas desse conceito]. Pó-Wing o liga, o procura. Quer o passaporte e Fai não importa em devolve-lo, só não quer reviver um encontro. Muda-se de apartamento, foge da tentação de um novo recomeço. Antes de voltar para Hong Kong, visita sozinho as cataratas. Sente-se triste, até gostaria da presença do outro. Talvez devessem estar unidos. E não é preciso muito tempo para notar o quão piores estão distantes. Ainda que não estivessem necessariamente felizes juntos. Por alguns momentos até que estiveram. Apenas momentos. Enquanto Fai volta para o Oriente, Po-Wing termina dançando tango nos braços de um velho argentino, revivendo os passos de um tango peculiar em preto e branco. Termina chorando, bêbado, caído no chão já sem forças. Não foram as cataratas do Iguaçu juntos. E a luminária simulacro fora apagada.

E afinal, o fim do mundo.

Chang chega a terra do fogo, liga o gravador para deixar, dentro do farol, todos os problemas de Fai. Talvez o gravador estivesse quebrado. Não ouvia nada. Tratava-se de apenas um longo silêncio intercalado por alguns pequenos barulhos. Poderiam ser soluços. Não pensara nas lágrimas. Apenas nós, os anjos, entendemos. Chang ainda volta a Buenos Aires para encontrar o amigo, antes de uma nova viagem. Concentrava-se para escutar sua voz. Não conseguira. A música estava alta demais. Provavelmente nunca mais iriam se ver – seguiam o ritmo do mundo não duradouro, seguiam em frente. Fai acordara de tarde. Já estava do outro lado do mundo. Tinha a sensação de acordar de um longo sonho. Não encontrara Chang no mercado, apenas sua família e entendera porque o amigo conseguia andar tão livre pelo mundo. Porque ele sempre tem para onde voltar. [O ano era de 1997. Hong Kong voltava ao controle da China, depois de dezenas de anos de controle britânico. Havia uma sensação estranha para o futuro – incertezas perante a reconciliação de dois mundos diferentes. Poderiam as duas nações recomeçar uma nova relação?]. Fai não havia ainda se encontrado com o pai. Havia uma estranha sensação para o futuro – incertezas perante a reconciliação de dois mundos diferentes. Poderiam recomeçar?