domingo, 20 de março de 2005

Amores Expressos

"Esta vida é uma viagem, pena eu estar só de passagem"
Paulo Leminski

Da superfície da pele encostada por acaso em uma estranha ao mais profundo e fugaz dos sentimentos entre desconhecidos, dos encontros repetitivos e anônimos do cotidiano aos apartamentos abandonados no vazio. Um dia, todos os indivíduos presos na distância de apenas um centímetro de seus corpos poderiam se tornar bons amigos, bons companheiros de momento. Ou talvez nunca chegassem a se conhecer, a se tocar mais conscientemente do que para pedir licença. São novamente os mais tristes e solitários dos seres que se encontram, que se cruzam e não se percebem. Horas depois poderiam estar apaixonados uns pelos outros. Horas depois poderiam estar sumidos da história – dos pequenos retratos civis, dos minuciosos recortes do viver contemporâneo. Da fragmentação narrativa dos amores expressos (expressos no sentido de rápidos, passageiros, efêmeros) aos formalismos audiovisuais do diretor. Somos novamente nós, os anjos, dentro dos pensamentos embalados num aparente silêncio, num aparente conforto. Somos os ouvidos e olhos que eternamente acompanham esses personagens sem nome, mas que relatam seus íntimos desejos. Estão ainda mais anônimos, mais solitários; mais excêntricos e exóticos. Cada pequeno hábito não convencional, cada pequeno questionamento os faz diferentes dos enlatados produzidos em massa que os próprios personagens consomem sem restrição – Honk Kong é o coração capitalista dentro de uma China meio aberta, a região de orientais híbridos, filhos da cultura chinesa e da cultura Pop ocidental. Não aparecem com data de validade precisa – nem sozinhos, nem juntos, nem os sentimentos. O videoclipe na tv trata de dar o ritmo do passo, tudo está num permanente estado de transformação; calmo e intenso dentro da individualidade de cada um. Nem as amizades, nem os amores estão seguros. São histórias demais, sentimentos confusos e tensões desnecessárias. São desconfianças infantis; cinismos excessivos e ligações não profundas. Estamos sempre na beirada das relações, olhando para baixo e com o medo estampado em nossa face. Nunca estamos prontos para cair. Essa é uma narrativa que traz policiais, funcionárias de lanchonetes e traficantes. Mas não é uma narrativa comum de perseguições. Na verdade, é sobre a fuga e o reconforto dos sentimentos, sobre pessoas que não se conhecem, mas que por um momento compartilham suas vidas. Trata-se de duas histórias inacabadas de solidão – dois contos interligados por menos de um centímetro de distância. Ou separados em mundos paralelos. Primeiro a noite, depois o dia; um à violência e o outro a magia. Primeiro os labirintos urbanos, as artimanhas, o submundo; depois o mercado, as escadas rolantes, as lanchonetes. Primeiro o whiskey com abacaxi enlatado, depois a salada junto ao café. Primeiro uma jukebox em algum bar decadente, depois ‘California Dreamin’ tocando intensamente. Há um contraste, mas também há confluências. A tristeza, a solidão, o abandono – a própria estética fugaz e estranha parece se repetir, ainda que no segundo momento mais voltada para um novo estágio. São seres da síndrome do vazio, da falta que nunca é saciada e do destino incerto. São seres românticos e desencontrados. A velocidade parece aumentar, aumentar, aumentar. Os personagens estão prontos para correr, prontos para seguir o ritmo alucinado dos novos tempos. Informações, imagens, idéias, emoções. Tudo lançado como bombas sobre as cidades, tudo produzido como encomenda num ‘fast-food’. É um filme sobre o amor, sobre as paixões que vêm e vão como aviões nos aeroportos distantes e não distantes. É sobre contatos intensos e fugazes a tal ponto de não se realizarem. Nem sequer um beijo e o sentimento já passou. Fica a lembrança. E talvez haja um problema. Nós não a entregamos em domicílio.

He Qi-wu ou número 223 é um policial que quando apaixonado, gosta de correr para que as lágrimas não cheguem aos olhos, para que elas sejam expelidas por seu corpo antes de tomarem sua face. Está sempre a correr, a esbarrar em desconhecidos que um dia viria a conhecer. Ou que nem isso. O mundo em sua volta se desfoca – literalmente se desfoca. [A sensação de velocidade sob os pés apressados em meio à multidão causa náusea num primeiro momento, a visão parece rascunhada, carregada sem jeito. A cena é ‘videoclíptica’ demais, até violenta por isso. A própria câmera se perde no caminho para se achar em seguida e se perder novamente. Há uma estranha sensação entre um trabalho rebuscado e uma obra rasurada. Algo parecido com o início do filme ‘Irreversível’, de Garpard Noé. Mas a violência aqui fica só na montagem, não se torna gratuita]. O número 223 corre entre milhares de sem face, engolidos numa massa única e disforme que anda, anda – o que me remete a homogeneização do homem e ao seu futuro ‘robótico’. O rapaz termina se chocando com uma estranha. A câmera para – literalmente para. O contraste visual já está criado.

"No momento de maior intimidade, ficamos 0,01 centímetro de distância. 57 horas depois, eu me apaixonei por ela".

A namorada de Qi-wu (223) acabara o relacionamento de cinco anos, pois ele não a entendia. Uma coisa estranha de se dizer depois de tanto tempo. Inconformado, o rapaz tenta manter um contato com as pessoas em volta dela, desejando provar para si mesmo e para os outros que na verdade é a moça que quer o reencontro. Tenta demonstrar uma situação que não existe. Mantêm uma espécie de orgulho melancólico, enquanto a amada sequer o liga, sequer aparece dentro do filme. Antigamente, May ia ao ‘Midnight Express’ porque o gerente dizia que ela lembrava a Demi Moore. E depois que eles se separaram, ela diz que Qi-wu está cada vez mais diferente do Bruce Willis. [O cinema de Wong Kar-Wai é bastante referencial (e em alguns momentos até auto-referencial – segue esse tendência deixada por Wim Wenders e re-significada por Tarantino). Há um trabalho interessante com a música – ora funcionando como delineador de ambiente (bar decadente - música decadente), ora como delineador de situação emocional (melancolia no personagem, melancolia na música). Porém, ao mesmo tempo, ela não segue diretamente esses padrões, assim como encontra outras conotações dentro da película. É a personagem que escuta música alta e tem que se aproximar de um outro personagem para que possam conversar; é o rapaz que coloca a ficha e sempre a mesma música na jukebox estilo retrô, é a incerteza para o futuro enquanto escuta ‘happy together’. A música pode vir associada à imagem de várias maneiras – interferindo diretamente nela, retificando um clima do mostrado ou sendo irônica para com. Chang, em ‘Felizes Juntos’, parece nos chamar a atenção para trilha sonora da película, aparece como metáfora dos olhos presos a questão plástica e dos ouvidos esquecidos do trabalho estilístico da música (ou da falta de). Na verdade, essas são apenas algumas facetas que o diretor trabalha. Suas referências vão de Wim. Wenders, Antonioni, Godard, o kitsch e o cult até a geração fast-food, coca-cola, Mc Donalds e o cinema extremamente mercantil americano. E tudo está num grande bolo fermentado pela cultura oriental]. A desconhecida é apresentada no filme sem nome. É apenas uma oriental loira, que fala inglês, bebe whiskey e é traficante. Em teoria não passa disso. Ela contrata/constrói imigrantes para que eles transportem drogas (constrói no sentido de forjar mulheres grávidas, crianças inocentes, pais vestidos em roupas feitas em casa, enquanto que insere cocaína dentro dos sapatos, da barriga ou até do ursinho de pelúcia). Literalmente são construídas pessoas para passarem, sem suspeita, sob a vigília dos aeroportos. Talvez pessoas fossem construídas todos os dias, para as mais diferentes situações. A mulher apenas não esperava que no aeroporto, todos os imigrantes sumissem. Anda na rua sem destino. Atordoada, estava com problemas, mas ainda tentava manter a calma, a frieza. A pose de femme-fatale.
Me tornei uma pessoa cautelosa. Sempre uso óculos escuros e capa de chuva. Nunca se sabe quando vai chover ou fazer sol.

Por sua ex-namorada gostar de abacaxi enlatado, o número 223 decide passar um mês apenas comendo tal alimento. Terminado esse prazo desistiria do retorno para sempre. Um dia para o fim dos dias, continuava a comprar enlatados com data de expiração para o dia seguinte. Mostra-se uma obsessão do personagem por validades. Tudo vence. Sardinha vence, molho vence; até papel de embrulho vence. Teme que seus sentimentos sigam essa mesma lógica, que os seres humanos tão envolvidos com o mercado se deixassem por ele dominar. May não voltaria o relacionamento e o rapaz decide sair com alguém. Liga para uma menina que dorme no meio da ligação, liga para uma outra que se casara. A última sentava perto dele na terceira série. Ela não lembra e ele sente o quão distantes dormem seus amigos, o quão mortos estavam seus abraços. Termina entrando num bar qualquer. Promete se apaixonar pela primeira mulher que aparecer. Promete se desligar do passado que o consome. O passado imutável. Sua história começaria ali. [Pode soar óbvio demais falar sobre a solidão dos personagens. Mas ainda assim, acho necessário por não ser uma solidão qualquer e por ela ser tão retratada em seus filmes. Wong Kar-wai a re-significa (ou melhor, a mostra por um outro ângulo) através de personagens atípicos e micro-histórias singulares – eles não choram a todo o momento, ficam em silêncio, sentem o sofrimento por cada uma de suas veias ou transferem sua dor para o mundo que os cerca. Talvez, concentrem ainda mais a dor dentro deles, contaminando seus viveres, a ponto de perderem o controle sobre seus atos. É quase teatral no sentindo mais poético possível. São pessoas abandonadas, traídas, sozinhas. Aparentemente, sem objetivos nenhum. Talvez a melhor característica dos homens e mulheres de suas películas, esteja na construção delas em si. Às vezes existe um confronto do que os personagens dizem sobre eles mesmos e a nossa opinião sobre. Wong Kar-wai dá a luz a personagens complexos sob a fantasia de vazios]. A loira-postiça-traficante inicia uma busca para se vingar dos que a traíram. Mata alguns. Depois é perseguida numa cena mais rápida que a primeira do filme e nossos olhos já não se chocam tanto. Vai para o bar e encontra o número 223. Qi-wu acha que ela gostou dele. Decide perguntar. Será que ela gosta de abacaxi. Sem resposta. Talvez não entenda a língua. Fala em cantônes, em inglês e apenas em mandarim, ela responde. Não quer conversar e ele só quer companhia. Terminam bêbados e ele a levando para casa dela. Não realizam nada. Ela simplesmente manda uma mensagem de parabéns para ele no outro dia. O rapaz não a esqueceria por isso. A loira volta ao bar e mata um americano que minutos antes transava com uma japonesa só depois que ela colocara uma peruca na cabeça. Joga, por fim, a própria peruca no chão. As morenas também sabem ser fatais.

“Se lembrança puder ser enlatada, que venha sem data de validade”

He Qi-wu volta ao ‘Midnight Express’, quando o gerente diz para ele investir na Faye – uma empregada nova na lanchonete. Aparece um homem e ele diz ser heterossexual. Então uma garota que vem arrastando um balde esbarra nele.

“No momento de maior intimidade, ficamos 0,01 centímetro de distância. 6 horas depois, ela se apaixonou por outro.


A partir daqui, os personagens principais da primeira história não aparecem mais. O encontro anônimo entre Qi-wu e Faye dá a ligação ao resto do enredo, ao segundo conto sobre a busca por um rumo, se possível ao lado de alguém. Entra em cena o policial número 633 (não confundir com o número 233), que vive junto com uma aeromoça. Todo dia vai ao ‘Midnight Express’, onde Faye trabalha, comprar uma salada para sua namorada. Numa dessas, o gerente sugere que ele leve peixe e salada, para que ela possa escolher. No outro dia, visivelmente abatido ele pede um peixe. A namorada gostara. O gerente sugere que ele leve um peixe e uma pizza para que ela possa escolher novamente. Na vez seguinte, ele pede apenas uma xícara de café. Sua namorada fora embora. Disse que precisava conhecer mais coisas do mundo e o rapaz acha que ela deveria ter ficado mesmo na salada. [Uma outra característica do diretor é desenrolar a história, a partir de pequenas fábulas urbanas, inserindo ou não lendas populares orientais para dar um tom mais delicado – o processo de criação da poesia em estado fílmico. Em ‘Amor à flor da pele’, o diretor fala sobre segredos que não podem ser contados a ninguém. Enquanto um personagem diz que vai a um bordel para relaxar, o outro expõe uma história: antigamente se contava esse segredo dentro de um buraco de uma árvore e a cobria de lama, para que de lá não saísse. Termina o filme com esse personagem contando um segredo dentro de um buraco, em ruínas do Camboja. Minutos e minutos e minutos de silêncio. O segredo está guardado. Até mesmo de nossos ouvidos]. Faye é uma jovem moça que passa o dia trabalhando e escutando ‘California dreamin’. Ao ver o policial número 633, termina se apaixonando ainda que só trocassem, no máximo, as palavras que separam uma vendedora de um cliente. Ela é uma jovem despreocupada, que vai vivendo sem pensar muito em possíveis conseqüências. De todos mergulhados na complexidade, ela parece ser a mais simples. Pois é realmente aquilo que nós vemos, ela é o ser ‘presente’ que parece ser.

“Depois que ela foi embora, a casa ficou mais triste. Todas as noites eu tinha de colocá-los para dormir”

O número 633 sempre volta para casa e inicia uma série de monólogos com os objetos dentro dela. Em relação ao sabonete, se choca por ele estar tão magro, por ele estar se entregando a tristeza; para o pano de chão velho e molhado, afirma que ele não pode chorar tanto, que a depressão não poder tomar conta de sua vida. E o ajuda, espremendo-o. Fala para o urso de pelúcia que ele está sujo, que ele precisava se cuidar. Já à camisa, pergunta se ela está com frio. E passa ferro, em seguida. [Novamente aparece à questão da pequena fábula urbana. Os filmes de Wong Kar-Wai não podem ser encaixados em um gênero específico por passear como um flâneur, pelos vários existentes. Até em filmes como “Cinzas do passado”, que trata da história de samurais, o diretor enxerta uma linguagem não tradicional, fragmentada, além de diversos formalismos típicos de outros gêneros (e típico do seu modo de fazer cinema). Na verdade, ele segue a tendência cinematográfica do dito pós-modernismo que bebe um pouco de cada diretor, de cada gênero, de cada tradição e de si próprio criando uma película híbrida. Talvez o cinema feito por Wong Kar-Wai pudesse ser divido pelo tempo onde passasse as narrativas: entre contemporâneo (o tempo onde não se sabe direito que tempo é) ou os filmes datados (passados em épocas de samurais, década de 60 ou até futurista). Porém , essa divisão soa inútil quando percebemos que o seu trabalho, indiferentemente da época que se passa, segue uma linha temática (o lado introspectivo do ser) e até estrutural ( a desconstrução, fragmentação, fotografia minuciosamente trabalhada, filtros de imagem)]. Um dia qualquer a aeromoça aparece no ‘Midnight Express’ e deixa uma carta com o gerente. Todos do local lêem sem pudor algum. Inclusive Faye. Tudo está acabado e a aeromoça devolve as chaves do apartamento. Quando o número 633 aparece na lanchonete, ao saber da carta, diz que a moça pode entrega-lo outro dia. Preferia fugir por um tempo, evitar o teor óbvio daquelas palavras. Faye pega o endereço dele para enviar pelo correio. Mas não o faz. Passa então a ir até a casa do policial todos os dias e fazer pequenas modificações dentro dela, enquanto ele não está presente. O rapaz nada percebe. Faye visita a casa dele sozinha, constantemente. É como um grande devaneio, a partir do momento que ela passa pela porta. Redecora, dança, sonha. Possivelmente nunca acordaria. Um dia o policial sente que a aeromoça havia voltado, chega correndo, mais cedo, em casa e tudo está inundado. Questiona se havia mesmo deixado uma torneira ligada ou se o apartamento estava tendo uma crise sentimental. Para uma pessoa poderia dar um pano e algumas palavras. Para o apartamento era um pouco mais complicado. Faye aparece no local um pouco depois e se assusta com a presença do rapaz. Ele a convida para entrar e coloca um cd. Toca ‘California Dreaming’. Ela pergunta se ele gostava daquela música. Ele diz que não se importa, que na verdade, era sua namorada que gostava. E eu me questiono se ele realmente gostava dela ou se simplesmente queria gostar.

“Sei que a namorada dele não gostava dessa música. O disco era meu, eu o deixei aqui. Sonhos não são contagiosos”

Finalmente, o número 633 percebe cada pequena mudança. Para o sabonete novo diz que ele não poderia engordar tão de repente. Que ele não podia se entregar e precisava fazer um regime. Ao pano de chão novo e seco fica chocado. Como podia ter mudado tanto em tão pouco tempo. Escondido, o polical vê o pano na chuva, quando ele começa a pingar. Estava mudado, mas continuava a ser um pano afetivo. Ao urso de pelúcia – que agora é um tigre comprado por Faye – pergunta se ele andou brigando. Terminado o monólogo sobre si mesmo e as diferenças em dentro dele, poderia, enfim, dormir. A garota não mudara apenas sua casa. Outro dia ele chega na residência e encontra Faye dentro. Há o choque mais por parte dela, do que por parte dele. Ela foge sem mais explicações. O número 633 vai ao Midnight Express pede a carta e a convida para sair. Hoje, restaurante California, 20:00. Ela demora. O policial se afunda dentro de suas decepções. O gerente da lanchonete aparece para dizer que a moça não viria. Entrega uma carta e diz que ela viajou para Califórnia. Estão em Californias diferentes. O número 633 não é bom com cartas e a joga fora. Depois de um tempo a pega onde havia jogado. Levara chuva. Estava borrada a passagem, com data de um ano depois. Não dava para ver o destino. Nunca daria. [ “Para mostrar a mudança deve-se utilizar as coisas imortais. O tempo passa, as pessoas mudam, mas há muitas coisas que não mudam” é o que diz o diretor sobre algumas repetições inseridas em seus filmes. E realmente algumas estruturas soam similares, uma espécie de tratado sobre as coincidências, ou melhor, sobre a singularidade que faz dos fatos coincidentes, singulares entre si. Nesse filme, a duplicidade chega ao ápice. Existem duas moças chamadas May, duas mulheres em perucas louras, duas aeromoças, dois policiais abandonados por suas namoradas. Ainda assim, os detalhes as fazem diferentes. E é nesses detalhes que o diretor passa a focar sua lente]. Um ano se fora, Faye, vestida de aeromoça, aparece na lanchonete que agora pertencia ao número 633 – que só por acaso, estava escutando ‘Califormia Dreaming’. O antigo gerente tornara-se dono de karaokê. Ele diz que ela fica melhor de uniforme. E ela diz que ele fica melhor sem. Estava no dia da viagem. Pergunta qual o destino. Ela pergunta qual o destino que ele quer. Ele pede que ela escolha qualquer lugar, desde que vá junto. Os revezes não são para sempre ou talvez esse seja apenas o começo de mais uma relação momentânea.

quinta-feira, 17 de março de 2005

diálogo do passado com amigo distante

- Estou escrevendo um conto e te encarnei em um dos personagens principais.

- Ah, é? Como assim?

- Peguei uma história bem trash tua e coloquei dentro do conto.

- Ah, é? Então, quer dizer que agora eu posso te processar oficialmente?

- É, pode. Só que se tu processar, todo mundo vai saber que aconteceu contigo.

- o_O

- ...

- Isso é uma ameaça?

- Não, claro que não, estou apenas tentando defender a literatura.

segunda-feira, 14 de março de 2005

Felizes Juntos

Farto de ver. A visão que se reencontra em toda parte.
Farto de ter. O ruído das cidades, à noite, e ao sol, e sempre.
Farto de saber. As paradas da vida – ó ruídos e visões!
Partir para afetos e rumores novos”.
Arthur Rimbaud, ‘Partida’

Parece ser tempo de recomeçar dentro da existência de um casal onde o recomeço parece recorrente, repetitivo. Até mesmo forçado. Onde o recomeço toma uma face sonsa, cínica e desanda para o mesmo fim da história anterior. E não estamos falando de um derradeiro segundo feliz. Estamos falando de alguns socos e pontapés, de algumas ironias e insultos, de alguns gritos ou da falta de palavras tão iminente. Estamos falando do contexto de uma relação conflituosa, do clima existente entre dois rapazes afundados num círculo vicioso de seus corpos para seus corpos, de suas vidas para suas vidas – estamos falando dos beijos e do nojo, dos orgasmos e do vômito – da lama, da lama. São dois rapazes que se consomem e se desgastam na mesma velocidade que tragam a fumaça do tabaco – carteiras e carteiras e carteiras de cigarro. Dois rapazes inseridos no nada e no tango argentino; de Caetano Veloso, de Frank Zappa a música americana tocada em Taiwan – onde o som (ou a falta de) embala o lado introspectivo, reflexivo, solitário das personagens. Embala os anônimos na multidão; os guetos, as tribos cosmopolitas e isoladas. Embala toda tristeza, toda melancolia – o extremo da distância, o último soluço de saudade. Trata-se de um amor sadomasoquista. Fazem-se mal, mas estão enfraquecidos sem a companhia mútua. Nada de felizes juntos, apenas piores separados. Até se amam e desfrutam de um sexo aparentemente prazeroso, até se necessitam e constroem sonhos similares. E isso não significa nada. A convivência os destrói, os tornam detestáveis – deixa claro o quão ligados e odiosos são entre si, o quão nocivos são seus beijos. Esse não é um filme que levanta questões ou polêmicas sobre a homossexualidade, é um filme que traz uma estética da decadência, da sujeira, da poesia incrustada no lixo e no silêncio. Um apartamento apertado, sufocante – da cozinha coletiva aos rebocos caídos. Uma cidade caótica, delirante – de muitas luzes, de muito barulho, de muitos lugares. De segredos e tormentas, de encontros e acolhidas. Não é um filme de personagens transparentes, decifráveis; é um filme que traz rapazes inseguros, escondidos – essencialmente metropolitanos e apaixonados pela urbe – rapazes que se completam e não se suportam, que seguem caminhos inusitados, destinos imprevisíveis – ora entrelaçados, ora independentes. São jovens de atitudes contraditórias, de sentimentos confusos deles com eles mesmos – de iras e fraquezas, de tempos e vontades. Não são cartesianos. São pensadores, andarilhos ou viajantes – subjetivos, marginalizados, desregulares. São tristes e soam como loucos em seus gestos desencontrados, em seus momentos mais solitários. O contexto apenas não entende. Podemos ouvir seus devaneios, suas pequenas poesias íntimas. Podemos saber suas verdades, deitar sobre seus colos. Somos, nós, os anjos desses seres; seus observadores tão singelos. Os dois rapazes estão à procura de uma sensação de conforto ou fugindo de seus problemas, estão encolhidos dentro de si mesmos – amparados na parede, por trás de uma cortina de fumaça. Falta coragem. Não conseguem dizer que sem amam e se engasgam, se sufocam por seus próprios sentimentos, por seus próprios medos. É a estética do não-dito. São as lágrimas seguradas até o último momento, são as cenas de construção delicada. É a obsessão pela razão, pelo preciso, pelo exato perdendo espaço para a sensibilidade, para a utopia, para o idealismo tão sutil e vago. E tão bem representado na imagem. São jovens e estão – quase sempre – prontos para recomeçar. Seja esse recomeço como for, onde for. E por um segundo não há nem resquícios de tempos passados, nem lembranças de vidas anteriores. Tudo, em seus olhos, se resume a um sonho ainda não iniciado. Os passaportes já estão carimbados.

E a película começa em preto e branco.

Dois jovens saem da Honk Kong, das escadas rolantes e dos prédios luminosos para a Argentina, dos velhos carros alugados e das boates de tango. Iriam até o outro lado do mundo em mais uma tentativa de recomeçarem sua relação, de redefinirem seus papéis. Uma espécie de férias distante de tudo que não dera certo anteriormente. Distante de todos os estigmas, de todos ressentimentos – de todos os erros. Pretendiam passar um tempo juntos para descobrirem o quanto se precisam. Descobrem o quanto se detestam, dentro de uma convivência permeada pela culpa. Não a velha culpa clichê de serem homossexuais, uma culpa sustentada na inversão constante de posições dentro da relação. Ora um vítima dos ciúmes do outro, ora o outro vítima do parasitismo de um. Outrora o contrário nas duas situações. [Cria-se o juízo contraditório de que eles se amam, mas que não podem ficar juntos de jeito nenhum. Que a relação nunca terminaria bem. Entretanto, isso não se deve pela presença de terceiros ou acasos dentro da história, como comumente é apresentado no cinema. Isso se deve graças à existência deles mesmos, de suas personalidades, seus medos e anseios. Os próprios personagens presos nesse dilema têm consciência dessa condição, ainda que tentem sempre quebrá-la inutilmente. Inutilmente no sentido de não expressarem, em palavras, suas vontades, seus desejos. O termo ‘amor’ carrega um peso que suas bocas não sabem suportar. Permanece um silencio incômodo, um olhar desconfiado. E o amor, o sofrimento e a distância soam como única solução plausível. E partir disso (ou talvez não), lançam-se em caminhos opostos, ora degradantes e ao consumo desenfreado de cigarros e fumaça. Não existem maiores fumantes compulsivo-obsessivos, não existe maior desgaste do que o de um para o outro. Por fim, resta apenas a fumaça negra se dispersando sob um fundo branco]. A ideia de visitarem as cataratas do Iguaçu não dá certo. Perdem-se no caminho físico e começam a se perder um do outro. Compram uma luminária simulacro das cataratas como metáfora da própria relação dos dois, como metáfora da vertigem, como esperança de um dia estarem juntos sob as águas e a luz. A situação já está definida. Os dias dentro do carro foram o bastante para eles. Já não se agüentam mais; não há outra saída. E mais uma vez terminam e tomam rumos diferentes.

Um lapso de cor: as cataratas são azuis.

Lai-Yiu-Fai volta para Buenos Aires e passa a trabalhar como porteiro numa boate de tango. Odeia sua função. Passa tempos e tempos encostado na parede, de acordo com apenas seu cigarro. Um dia qualquer Ho Po-Wing aparece acompanhado de alguns argentinos na boate, depois de meses sumido. Tornara-se garoto de programa e nem notara a presença quase descartável de Fai. As diferenças pareciam se acentuar. Ou talvez não. Po-Wing mantinha uma pose de indiferença dentro do carro, mas discretamente olhava para trás, olhava para Fai. As saudades já marcavam sua face – o jovem estava triste. Os dois estavam. [Cria-se o paradoxo dos rapazes se beijando, dentro de um tradicional clube de tango, freqüentado essencialmente por velhos e turistas. Ao invés da sensação de choque, há uma estranha aura de normalidade, de lugar comum. O rito habitual continua a ser habitual e essa realidade parece inexistente, soa como uma projeção utópica. Eles não se passariam por anônimos. Não ali. Não naquela ocasião. O contraste chega ao cume no cenário e na imagem. Ainda assim, a cena é construída de tal maneira a deixar claro que aquilo é ‘fake’, que aquela reação é ‘fake’. Sabemos que o que se vê não passa de um filme e que aquele momento é apenas figurativo. O diretor não se sente na obrigação de mostrar o real a todo o momento. Naquele instante, o que vale é o sentimento refletido pelos olhos das personagens. Por fim, resta apenas a fumaça branca se dispersando sob um fundo negro]. Todos os fantasmas continuavam vivos. Um por um. Estão a ecoar a falta de palavras; a falta de coragem. A falta. Simplesmente a falta. E o silêncio tornara-se mais presente, os lamentos mais profundos. Os dois rapazes voltam a se encontrar. Algumas brigas, embriaguez, falsas tentativas de reconciliação – encontros marcados por cobranças e mentiras. Mantêm uma distância ética entre seus corpos. E a ética logo se torna pó. O michê e sua vida instável na prostituição desmoronam. Não lentamente. Algo de um golpe. Havia sido espancado por algum cliente ou em um outro negócio qualquer que se envolvera – seus dedos foram friamente quebrados, seu rosto sangrava. Lai-Yiu-Fai o encontra caído na porta de seu apartamento e não consegue ignorar o fato a sua frente. Leva-o para o hospital como se carregasse o maior de seus fardos. Po-Wing diz que eles poderiam recomeçar.

Um lapso de cor: o céu está vermelho.

E dessa vez não fora apenas um lapso. A película se tornara colorida – e não apenas colorida. A iluminação mais estourada, os sentidos distorcidos. O apartamento de Lai-Yiu-Fai, acomoda Po-Wing. O primeiro passa a cuidar do segundo e sua existência vegetal, parasita, dependente. Entretanto, insiste na importância de continuarem a manter uma distância ética entre seus corpos, entre seus sexos. Mesmo dentro de um ambiente sufocante, de um clima quase erótico – de uma atração nata. Queria e não queria recomeçar. [Moram em um apartamento que não passa de um quarto, inserido num prédio velho, decadente. Um espaço que causa uma sensação de desconforto – de claustrofobia mesclada com sujeira. Um apartamento que poderia estar em qualquer periferia de qualquer lugar do mundo; habitado por imigrantes, marginalizados, excluídos. Uma torre de babel em plena Buenos Aires. Essa aura de compressão do espaço também é trabalhada pelo diretor em “Amor a Flor da Pele”. Com a câmera em suas mãos parada, a nossa visão parece presa, por trás de entulhos ou janelas, enquanto os personagens se movimentam sem mostrar as suas faces. Seus destinos. Trocam palavras, olhares, sensações e continuamos distantes, sem pudermos nos envolver por completo. Nesse mesmo filme, famílias inteiras moram dentro de um mesmo apartamento, condensam diversos mundos em um só – metáfora da própria época. A China estava passando por sua revolução cultural. E Hong Kong fora o destino para muitos]. Um no sofá e o outro na cama – separados, distantes. A menos de dois metros. Um observa o outro dormir. O outro observa o um antes de acordar. Estavam ligados mesmo que quisessem (ou tivessem de) se detestar. Po-Wing insiste em reatar as linhas perdidas e torna-se cada vez mais e mais dependente de Lai-Yiu-Fai. Não cozinha, não compra cigarros, apenas pede e pede e pede e pede. Cobra e cobra e cobra. Até mesmo quando Fai está doente de cama, resfriado pelos dois tentarem ir juntos as cataratas não visitadas. Desistiram no caminho. Estava frio demais para eles. A cidade parece agitada, tremulante, ainda mais distorcida. Talvez não esteja conformada com alguma situação.

Um tango em preto e branco. Apenas poucos beijos, por enquanto.

A dança profundamente triste viria para reconfortá-los dentro dos braços um do outro. A distância ética tornara-se pó e o sofrimento um pouco menor. Poderiam achar que aquele era o início da felicidade. Mas não, ali era a felicidade. Aquele momento. Naquele exato momento. Teriam os personagens se apercebido disso? [A cena dura minutos em silêncio, em poesia. O tempo não passa, se acumula. Os passos são sutis, o contato delicado, cuidadoso. Haviam caído de seus postos mantidos pelos pulsos. Haviam se entregue a seus desejos, à sinceridade momentânea. Ao contato de um com o outro. Trata-se de uma mistura de medo e conforto. Tudo era novo e velho, um quase conhecido. Tudo era presente, momento e logo se esvairia. Wong Kar-Wai “utiliza um grande número de formalismos visuais, no que diz respeito à velocidade da imagem, seja em slow-motion ou acelerada, procurando ilustrar momentos fugazes ou que se deseja prolongar o tempo” (Canau, Luís. 1998.), procurando mostrar as emoções das personagens sem ter que dizer exatamente o que ela estaria sentindo. É nesse espaço entre o que não é dito, mas sugerido pela imagem que reside um dos principais charmes do diretor]. Fai passa a trabalhar num restaurante. Po-Wing continua inerte, vegetal, parasita. O momento do tango já se fora e não demora muito para as brigas retornarem ao caminho. Passam a questionar o tempo em que estiveram separados – as pessoas com quem se envolveram, os mundos o qual visitaram. Tornam-se neuróticos e neuróticos – obsessivos, violentos um com o outro. Fai rouba e esconde o passaporte de Po-Wing, para mantê-lo, depois de curado, preso a seu apartamento, a sua vida. Sabia da índole ‘andarilha’ do amante. O medo de o outro sumir o invadia. O corroia a cada saída para comprar cigarros. E estava certo. As mãos estavam saudáveis, buscavam seu passaporte. Queriam ir embora, destruíam o apartamento em acessos de raiva cada vez mais constantes. Nem os cigarros escapavam. Brigas, socos, pontapés. Insultos, ironias, sangue. Sadomasoquismo em alta, posições invertidas – culpa. Fai estava finalmente pronto para recomeçar, justamente pronto quando Po-Wing saía pela porta.

Um terceiro personagem. Não os olhos, os ouvidos.

Lai-Yiu-Fai está triste e mesmo que não demonstre, sua voz o denuncia. Quem aparece para dizer isso é Chang, um turista de Taiwan que ficara sem dinheiro para manter seu nomadismo. Fugira dos problemas, de um passado em sua terra natal e terminara trabalhando ao lado de Fai – pretendia novas viagens a sua frente. Chang, era um rapaz que quando criança tinha problemas de visão e desenvolvera seus ouvidos – além da imagem, os sons. Fai e Chang tornam-se amigos, amigos sinceros – cúmplices contra a solidão mútua, de origens diversas. Passam a beber algumas cervejas, juntos. E Fai sempre vomita, sempre termina carregado até em casa. Claramente algo está errado dentro dele. Chang conta o dinheiro e já está de viagem novamente. Pretende ir a Ushuaia (a Terra do Fogo), o lugar conhecido como o fim do mundo. O lugar onde existe um farol que acolhe os problemas dos viajantes. Chang quer uma lembrança de Fai, mas não gosta de fotos. Entrega um gravador e pede que o amigo deixe um relato o mais sincero para que o liberte no farol. Enquanto o outro dança, Fai fica em silêncio, chora. Apenas chora. Termina a noite, vomitando novamente. Em casa, se despede do amigo num abraço tão poético e profundo, quanto o tango dançado com o amante. O silêncio, o tempo, a nossa inveja. Chang se vai como representação da liberdade triste, da sensibilidade reservada. Se vai como prova, das relações cada vez mais efêmeras. E ainda assim, muito profundas.

Beatniks de momento!

Fai fica sozinho dentro daquela imensa cidade em terra estrangeira. Sem nenhum apoio, sem nada para fazer. Acaba se entregando a uma vida parecida com a de Po-Wing. Freqüenta o submundo, as ruas escuras, os guetos, as tribos estereotipadas ou não, o sexo casual – fumaças e fumaças. Perambula pela cidade sem um rumo certo, sem um destino traçado. Ao menos, abandonara o fantasma de conviver com alguém que poderia sumir a qualquer momento, alguém que ia comprar cigarro e que poderia não mais voltar. Fai não desejava que Po-Wing se curasse, estava contente com os pequenos momentos de sorriso. [A influência de Godard se faz presente. Ora a câmera é subjetiva e nos dá os olhos de Fai aos locais, ora se perde do protagonista, o coloca como mais um dentro de uma multidão de anônimos. Câmera para um lado, personagem para o outro ou câmera para um lado e personagem em lado algum. Filma Buenos Aires, o consumo em cores cada vez mais estouradas. Wong Kar-Wai leva algumas lições de ‘Acossado’ ao extremo]. O personagem termina nos locais de prazer. Cinemas pornôs, banheiros públicos sem compromisso, finge ser um andarilho qualquer em busca de algo casual. Porém, sabe que não é. Transa até com Po-Wing dentro de um Box qualquer. Crise de existência na seqüência; não estava preparado para tamanha casualidade. Achava ser diferente do outro até ter certeza que as pessoas solitárias eram todas iguais. Po-Wing é o verdadeiro Flâneur Beatnik da película – excessos, perambulações, drogas, álcool, sexo por sexo, prostituição, sem rota, loucura, falta de dinheiro, sem trabalho, violência. E depois de tudo, saudades do conforto dos braços do amante, para novamente querer se entregar à vida decadente. Um eterno círculo vicioso até a quebra de um dos lados.

De volta ao outro lado do mundo

Antes de ir para Argentina, Fai roubara dinheiro do trabalho onde seu chefe era amigo de seu pai. Liga para Honk Kong, tenta falar com a voz paterna. Tenta se desculpar. É renegado. Manda um bilhete de natal, uma longa carta. Lembra que não conversavam muito e que agora tinha tanto a dizer; acha estranho. No final, afirma que eles poderiam recomeçar. E talvez não fosse tão diferente de seu ex-amante. Passa a trabalhar num frigorífico. Trabalha de noite, dorme de dia. Vive no mesmo horário de sua terra natal. Ainda que no outro lado do mundo. [Wong Kar-Wai não evita em filmar Hong Kong de cabeça para baixo por uns minutos. A sensação de enjôo e tontura parece certa. Inclusive o diretor costuma intercalar, em todos os seus filmes, cenas de sua terra natal vibrante. Com cores fortes. A urbe, a sua urbe em extremo ponto de excitação. Wong Kar-Wai desenvolve uma relação profunda com o cenário em seus filmes, desde elementos figurativos/metafóricos até o pano de fundo onde se passa a história (em especial, Hong Kong). A metrópole é mostrada através de suas veias abertas e suas luzes, do seu estilo retrô até o seu visual mais futurista. Da identidade (os bares de tango, os mercados populares, as escadas rolantes na rua) até a universalidade dos não-lugares, conceito de Marc Augé, que se refere a espaços independentes do contexto em que estão inseridos e sobre os quais se debruçam (Aeroportos, Mc Donald’s, estradas...). No próprio filme há uma sensação de suspensão do tempo e espaço, características básicas desse conceito]. Pó-Wing o liga, o procura. Quer o passaporte e Fai não importa em devolve-lo, só não quer reviver um encontro. Muda-se de apartamento, foge da tentação de um novo recomeço. Antes de voltar para Hong Kong, visita sozinho as cataratas. Sente-se triste, até gostaria da presença do outro. Talvez devessem estar unidos. E não é preciso muito tempo para notar o quão piores estão distantes. Ainda que não estivessem necessariamente felizes juntos. Por alguns momentos até que estiveram. Apenas momentos. Enquanto Fai volta para o Oriente, Po-Wing termina dançando tango nos braços de um velho argentino, revivendo os passos de um tango peculiar em preto e branco. Termina chorando, bêbado, caído no chão já sem forças. Não foram as cataratas do Iguaçu juntos. E a luminária simulacro fora apagada.

E afinal, o fim do mundo.

Chang chega a terra do fogo, liga o gravador para deixar, dentro do farol, todos os problemas de Fai. Talvez o gravador estivesse quebrado. Não ouvia nada. Tratava-se de apenas um longo silêncio intercalado por alguns pequenos barulhos. Poderiam ser soluços. Não pensara nas lágrimas. Apenas nós, os anjos, entendemos. Chang ainda volta a Buenos Aires para encontrar o amigo, antes de uma nova viagem. Concentrava-se para escutar sua voz. Não conseguira. A música estava alta demais. Provavelmente nunca mais iriam se ver – seguiam o ritmo do mundo não duradouro, seguiam em frente. Fai acordara de tarde. Já estava do outro lado do mundo. Tinha a sensação de acordar de um longo sonho. Não encontrara Chang no mercado, apenas sua família e entendera porque o amigo conseguia andar tão livre pelo mundo. Porque ele sempre tem para onde voltar. [O ano era de 1997. Hong Kong voltava ao controle da China, depois de dezenas de anos de controle britânico. Havia uma sensação estranha para o futuro – incertezas perante a reconciliação de dois mundos diferentes. Poderiam as duas nações recomeçar uma nova relação?]. Fai não havia ainda se encontrado com o pai. Havia uma estranha sensação para o futuro – incertezas perante a reconciliação de dois mundos diferentes. Poderiam recomeçar?

terça-feira, 1 de março de 2005

Viridiana (Espanha / México, 1961), de Luís Buñuel


Não é incomum encontrar alguns comentários que usam da palavra ‘excêntrico’ para descrever Viridiana e toda conturbada trajetória cinematográfica de Luís Buñuel e, ainda que limitador, este uso não é de todo equivocado, afinal 'excêntrico', neste caso, significar dizer, senso comum que seja, que suas criações procuram se desviar da forma clássica de representação. Os espectadores diante do cinema do diretor espanhol embarcam na experiência estética como num enigma, abandonando o mastigado e redundante espetáculo pelo uso de imagens reerguidas sob um forte viés simbólico. O resultado gera uma subversão dos pressupostos de sentido e livre-associação, um sarcasmo e um humor negro para com a realidade e a ficção, algo que se consolida a partir do próprio flerte com o surrealismo. Há quem diga que os traços mais marcantes da face moderna sejam delineados, junto ao abstracionismo e dadaísmo, pela escola de inquietações inaugurada originalmente por André Breton. A política de Buñuel se funda no deslocamento dos elementos de discurso, enxertando em seus planos sugestões pervertidas que estremecem o estatuto do proibido. Sem nunca perder a ternura, aliás.

Dos filmes mais extremados ou no calor das vanguardas (‘O cão andaluz’) até os tidos pela crítica como mais convencionais (‘A bela da tarde’), o diretor espanhol esculpe imageticamente a sua transgressão e reinventa sua relação com o subversivo, mesmo que não explique bem suas intenções. Viridiana não pertence nem ao lado mais extremado, nem ao lado mais convencional, funciona como um ensaio crítico sobre o princípio da inocência cristã, esboçando um testamento de suas referências pessoais desde a sua formação em colégio jesuíta até seu abandono para se tornar um militante ateu. Com um controle maestral sobre o encadeamento e enquadramento de planos, Viridiana parece reverenciar as vanguardas modernas, soando como uma afirmação da própria formação intelectual de Buñuel, intensificada ainda na década de 20, quando fundou o primeiro cineclube espanhol e frequentou a boemia de Madrid e Paris, trôpego entre cafés e bordéis, ao lado de Federico Lorca e Salvador Dali. O nome que intitula a película vem de uma santa que viveu alguns séculos antes.

Assim, se por um lado, o filme tece uma crítica não apenas ao catolicismo, mas a toda lógica dogmática do cristianismo enquanto doutrina rígida da culpa, punição, piedade e perdão, como um anacronismo podre em pleno século XX, por outro, encontra uma fonte de renovação ao apontar ruídos de formalismo, expressionismo e especialmente surrealismo: seja na seqüência em que o rapaz segura a governanta, enquanto um gato avança sobre um rato; seja pela sombra que torna sutil - e quase condescendente - o suicídio de um homem estraçalhado pelo desejo. Buñuel não hesita em brincar com a inocência e a perversidade como dois momentos ontológicos do desenvolvimento humano nas sociedades tradicionais, fazendo do primeiro estágio, momento essencial para conseguir, sem equívocos, parodiar o sagrado por meio da assunção da dignidade do profano. Viridiana se mostra ora ingênuo, ora sarcástico, fazendo de sua ingenuidade uma grande ironia e até a cena da morte do tio, o diretor espanhol constrói uma atmosfera erótica de embate, envolvendo o amor unilateral proibido, incestuoso, confrontado com todo um fanatismo religioso.

O diretor não se entrega a didática, apenas sugere transversalmente: um close no joelho de Viridiana, uma troca de roupas sem maldade, olhares maliciosos corrompidos, um diálogo incompleto. A opção de Buñuel expande e alonga a tensão iminente entre os personagens, os lançando num ardor neurótico e obcecado, que termina por propor ao espectador um breve rompimento com suas próprias verdades. O trabalho com quase-acontecimentos se torna muito mais sedutor e sensual que o acontecimento em si e mesmo que, narrativamente, a sexualidade da personagem-título seja sufocada, é justamente através desta posição que se adensa toda atmosfera de perversão. Enquanto a noviça é posta de frente em relação ao amor do tio e de frente com seus próprios momentos exóticos - acessórios como a coroa de espinhos que carrega na bolsa para o momento da oração; o sonambulismo mórbido; a indumentária casta - a câmera sustenta uma tara própria, perseguindo as pernas da mulher com uma vocação quase maníaca. Buñuel é famoso por sustentar e defender seu machismo ao longo de todos os anos de sua vida. Nem todas as quimeras da modernidade, afinal, o agradava.

O amor do tio é negado e repugnado até o fim, o que resulta no suicídio, na renúncia por completo. Viridiana desiste dos votos, se sente suja, desamparada por supostamente ter tido sua virgindade roubada. Retorna a casa, encontra o filho do tio num misto de ecstasy e culpa, se afundando na piedade para com os pobres. A atmosfera de tensão familiar chegava ao fim. O erotismo não. A segunda parte do filme abre espaço para uma temática social mais evidente: a noviça, como uma boa cristã, acolhe na casa do tio – sua nova residência – diversos mendigos e passa ajudá-los em suas necessidades. Espera-se em nossas mentes que os pedintes devolvam a Viridiana na mesma moeda, espera-se como quem espera pelo correto, vibe direitos humanos, e Buñuel faz questão de ser errado. A ressurreição não vinga, deixa de lado o clichê de colocar os mendigos como os coitados completos, constrói suas personalidades enchendo-os de astúcia e ambição. O maniqueísmo se reinventa até desvanecer e alfinetar de maneira perspicaz toda lógica de assistencialismo burguês que rege os movimentos sociais gerenciados pela elite assustada. Lidar com a culpa é um melodrama ridículo que atravessa os séculos.

Por fim, vale ainda ressaltar que a cena da Santa Ceia dos mendigos – uma releitura da pintura de Leonardo Da Vinci que urge como uma atualização imprescindível – é o momento mais emblemático e metafórico de todo o filme e provavelmente uma das cenas mais importantes do cinema. Temos mendigos beberrões sentados a mesa representando os apóstolos, comendo coimo animais, o cego tarado e violento no lugar de Jesus. Viridiana chega como a virgem Maria, chega como a luz que iria resgatar e dar o exemplo a todos os presentes. Arma-se o clima de ritual, mas Viridiana termina quase estuprada em cima da mesa. A história da igreja Católica não poderia ser melhor representada em apenas dois segundos: Buñuel se arma simbolicamente e faz com que cada um dos pecados cristãos estejam presentes. Nos últimos minutos, diante do abandono das utopias religiosas, Viridiana, o filho do tio e a governanta terminam se entregando a jogatina, com o baralho entre eles numa disputa sem sentido. Viridiana desiste do vínculo entre cristianismo e liberdade se entregando de vez aos seus maiores repúdios: a secularização religiosa se entrega nua à devoção pela modernidade.