terça-feira, 1 de março de 2005

Viridiana (Espanha / México, 1961), de Luís Buñuel


Não é incomum encontrar alguns comentários que usam da palavra ‘excêntrico’ para descrever Viridiana e toda conturbada trajetória cinematográfica de Luís Buñuel e, ainda que limitador, este uso não é de todo equivocado, afinal 'excêntrico', neste caso, significar dizer, senso comum que seja, que suas criações procuram se desviar da forma clássica de representação. Os espectadores diante do cinema do diretor espanhol embarcam na experiência estética como num enigma, abandonando o mastigado e redundante espetáculo pelo uso de imagens reerguidas sob um forte viés simbólico. O resultado gera uma subversão dos pressupostos de sentido e livre-associação, um sarcasmo e um humor negro para com a realidade e a ficção, algo que se consolida a partir do próprio flerte com o surrealismo. Há quem diga que os traços mais marcantes da face moderna sejam delineados, junto ao abstracionismo e dadaísmo, pela escola de inquietações inaugurada originalmente por André Breton. A política de Buñuel se funda no deslocamento dos elementos de discurso, enxertando em seus planos sugestões pervertidas que estremecem o estatuto do proibido. Sem nunca perder a ternura, aliás.

Dos filmes mais extremados ou no calor das vanguardas (‘O cão andaluz’) até os tidos pela crítica como mais convencionais (‘A bela da tarde’), o diretor espanhol esculpe imageticamente a sua transgressão e reinventa sua relação com o subversivo, mesmo que não explique bem suas intenções. Viridiana não pertence nem ao lado mais extremado, nem ao lado mais convencional, funciona como um ensaio crítico sobre o princípio da inocência cristã, esboçando um testamento de suas referências pessoais desde a sua formação em colégio jesuíta até seu abandono para se tornar um militante ateu. Com um controle maestral sobre o encadeamento e enquadramento de planos, Viridiana parece reverenciar as vanguardas modernas, soando como uma afirmação da própria formação intelectual de Buñuel, intensificada ainda na década de 20, quando fundou o primeiro cineclube espanhol e frequentou a boemia de Madrid e Paris, trôpego entre cafés e bordéis, ao lado de Federico Lorca e Salvador Dali. O nome que intitula a película vem de uma santa que viveu alguns séculos antes.

Assim, se por um lado, o filme tece uma crítica não apenas ao catolicismo, mas a toda lógica dogmática do cristianismo enquanto doutrina rígida da culpa, punição, piedade e perdão, como um anacronismo podre em pleno século XX, por outro, encontra uma fonte de renovação ao apontar ruídos de formalismo, expressionismo e especialmente surrealismo: seja na seqüência em que o rapaz segura a governanta, enquanto um gato avança sobre um rato; seja pela sombra que torna sutil - e quase condescendente - o suicídio de um homem estraçalhado pelo desejo. Buñuel não hesita em brincar com a inocência e a perversidade como dois momentos ontológicos do desenvolvimento humano nas sociedades tradicionais, fazendo do primeiro estágio, momento essencial para conseguir, sem equívocos, parodiar o sagrado por meio da assunção da dignidade do profano. Viridiana se mostra ora ingênuo, ora sarcástico, fazendo de sua ingenuidade uma grande ironia e até a cena da morte do tio, o diretor espanhol constrói uma atmosfera erótica de embate, envolvendo o amor unilateral proibido, incestuoso, confrontado com todo um fanatismo religioso.

O diretor não se entrega a didática, apenas sugere transversalmente: um close no joelho de Viridiana, uma troca de roupas sem maldade, olhares maliciosos corrompidos, um diálogo incompleto. A opção de Buñuel expande e alonga a tensão iminente entre os personagens, os lançando num ardor neurótico e obcecado, que termina por propor ao espectador um breve rompimento com suas próprias verdades. O trabalho com quase-acontecimentos se torna muito mais sedutor e sensual que o acontecimento em si e mesmo que, narrativamente, a sexualidade da personagem-título seja sufocada, é justamente através desta posição que se adensa toda atmosfera de perversão. Enquanto a noviça é posta de frente em relação ao amor do tio e de frente com seus próprios momentos exóticos - acessórios como a coroa de espinhos que carrega na bolsa para o momento da oração; o sonambulismo mórbido; a indumentária casta - a câmera sustenta uma tara própria, perseguindo as pernas da mulher com uma vocação quase maníaca. Buñuel é famoso por sustentar e defender seu machismo ao longo de todos os anos de sua vida. Nem todas as quimeras da modernidade, afinal, o agradava.

O amor do tio é negado e repugnado até o fim, o que resulta no suicídio, na renúncia por completo. Viridiana desiste dos votos, se sente suja, desamparada por supostamente ter tido sua virgindade roubada. Retorna a casa, encontra o filho do tio num misto de ecstasy e culpa, se afundando na piedade para com os pobres. A atmosfera de tensão familiar chegava ao fim. O erotismo não. A segunda parte do filme abre espaço para uma temática social mais evidente: a noviça, como uma boa cristã, acolhe na casa do tio – sua nova residência – diversos mendigos e passa ajudá-los em suas necessidades. Espera-se em nossas mentes que os pedintes devolvam a Viridiana na mesma moeda, espera-se como quem espera pelo correto, vibe direitos humanos, e Buñuel faz questão de ser errado. A ressurreição não vinga, deixa de lado o clichê de colocar os mendigos como os coitados completos, constrói suas personalidades enchendo-os de astúcia e ambição. O maniqueísmo se reinventa até desvanecer e alfinetar de maneira perspicaz toda lógica de assistencialismo burguês que rege os movimentos sociais gerenciados pela elite assustada. Lidar com a culpa é um melodrama ridículo que atravessa os séculos.

Por fim, vale ainda ressaltar que a cena da Santa Ceia dos mendigos – uma releitura da pintura de Leonardo Da Vinci que urge como uma atualização imprescindível – é o momento mais emblemático e metafórico de todo o filme e provavelmente uma das cenas mais importantes do cinema. Temos mendigos beberrões sentados a mesa representando os apóstolos, comendo coimo animais, o cego tarado e violento no lugar de Jesus. Viridiana chega como a virgem Maria, chega como a luz que iria resgatar e dar o exemplo a todos os presentes. Arma-se o clima de ritual, mas Viridiana termina quase estuprada em cima da mesa. A história da igreja Católica não poderia ser melhor representada em apenas dois segundos: Buñuel se arma simbolicamente e faz com que cada um dos pecados cristãos estejam presentes. Nos últimos minutos, diante do abandono das utopias religiosas, Viridiana, o filho do tio e a governanta terminam se entregando a jogatina, com o baralho entre eles numa disputa sem sentido. Viridiana desiste do vínculo entre cristianismo e liberdade se entregando de vez aos seus maiores repúdios: a secularização religiosa se entrega nua à devoção pela modernidade.

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