domingo, 24 de abril de 2005

Entrevistado

Por que jornalismo?

Um ano antes de fazer vestibular, decidi que meu interesse por literatura não deveria necessariamente influenciar a escolha da minha profissão. No começo ia fazer direito, ou melhor, quando criança sonhava em ser paleontólogo, mas para o bem da entrevista é preferível não voltarmos tanto. Durante o ano que queria fazer direito, comecei a escrever muito, desenvolvi uma espécie de diário poético e aos poucos me libertei de algumas amarras estilísticas. À medida que conhecia novos autores investia nas pequenas ousadias. Todos meus cadernos de colégio tinham mais poesias, contos ou frases soltas que anotações escolares. Nesse mesmo período, se não me falha a memória, passei a participar de um mundo diferente do que eu estava acostumado, passei a viver e ter experiências de vida que até então só tinha intimidade através dos filmes. Depois disso, pisei na jaca da ânsia ‘ícone-porra-louca-rebelde-adolescente’ que para muitos ainda é a camada mais vistosa da minha aparência. Daí rolou aquela inundação de coisa nova. Naturalmente, como um bom leitor de Rimbaud, a inspiração só aumentava, usava do estranho para alcançar um auto-conhecimento, despi-me dos puderes simultaneamente no campo da experiência e da estética.

Toda as minhas sextas ou sábados terminavam na rua da Moeda, durante a semana saía com os amigos depois do colégio, chega uma hora que é preciso desvendar a cidade por si mesmo: percorri os cantos sujos da noite, tive minhas primeiras experiências com drogas, descobri pesadamente o sexo, tomei os primeiros porres, vomitei por aí. Tal movimento se concretizou no ano seguinte, ano de conclusão do ensino médio, com minha viagem para a Chapada da Diamantina, depois sozinho e sem dinheiro para o interior do estado, depois ainda numa Bienal realizada por aqui. Foi então que percebi a impossibilidade de trabalhar com uma coisa e ter a minha realização profissional em outra, que não agüentaria deixar essas duas esferas em lugares distintos. Nesse processo de assimilação terminei desistindo de direito. O mundo me pedia frieza e sensatez quando estava encharcado de instinto e sentimento. Durante o segundo ano, fiz vestibular por experiência para jornalismo, justifiquei para minha família dizendo que era uma prova mais fácil, mas só estava preparando o terreno. A decisão já estava tomada e jornalismo apareceu como única opção. É bom lembrar sempre a inconsequência de assinalar o resto da vida aos 16.

De qualque forma, para você ter uma ideia, fiz o vestibular animado, feliz da vida, tendo certeza que era aquilo: sonhava com a possibilidade de ‘sobreviver’ e me sentir realizado com uma mesma profissão. Óbvio que isso era uma loucura utópica, sem sentindo algum: jornalismo não me daria nem dinheiro, nem realização. Mas acho que nessa época eu estava mais propenso a esse tipo de precipitação e também não tinha algumas informações/reflexões básicas só adquiridas quando você entra na universidade. Ainda assim, sinto que não vou enfrentar mais grandes crises dentro do curso, sequer me arrependo de ter escolhido jornalismo, agora que estou aqui, quero nem saber, vou até o fim. Também sei que nesse tempo irei passar por transformações – ora a base de decepções, ora a base de orgasmos – que - assim espero - me tornarão uma pessoa mais madura, pelo bem ou mal do peso que essa palavra pode carregar. Continuo acreditando no imenso potencial da universidade, especialmente da universidade pública e digo isso não apenas pelas salas de aula ou bibliotecas, mas especialmente - e talvez principalmente - pelas pessoas que você conhece lá dentro. Sua dura perspectiva dá um rodopio e esvanece no ar.


Depois que tu entrou na universidade, o que mudou na tua visão sobre a escrita?

Em termos de escrita jornalística, simplesmente me situei dentro da realidade acadêmica e mercadológica, porque não tinha um discernimento crítico aprofundado, era um espectador desinteressado dos tramites pragmáticos. E, pra falar sério, gosto disso desde que não se transforme em alienação. Hoje tenho plena consciência da escrita jornalística e ainda assim, me mantenho meio distante, digamos que há uma leve distancia ética entre nossos corpos. Não costumo deixá-la me tocar muito, embora os trabalhos exijam uma cada vez maior aproximação carnal. Assumo um certo preconceito. No que toca a minha escrita, fico num impulso pendular de mudar de opinião a todo momento ao mesmo tempo que pareço não mudar muito. Sinto que as minhas palavras se transformam, se modelam, são fluidas o suficiente para acompanhar as eferverscências ou calmarias do momento. No entanto, existe uma essência consciente que geralmente chamamos de estilo, mas também acredito na possível mutabilidade dessa essência. Ok, cansei dessa masturbação mental. Próxima pergunta.


Qual o papel da palavra?

Isso é tão vago que poderia passar páginas e páginas respondendo tão vagarosamente e vagamente que tua ia dormir antes do fim. É o tipo de pergunta que cada pessoa pode responder uma coisa diferente e espero que elas o respondam diferente mesmo. Para mim, a palavra, e no meu caso a escrita, funciona não só como um meio de expressão, impressão e devaneio; funciona como um modo de adentrar minha subjetividade pela porta da frente sem ter que tocar a campainha. A conversa pode ser tão densa e intimista a ponto de tornar o resultado um texto cujo sentido original é exclusivo para mim. Na cabeça de outros, torna-se outro texto. Às vezes eu sou tão o cúmulo da subjetividade, das metáforas, da intimidade, da falta de rumo que posso me despir completamente sem que alguns notem a minha presença. Mas eu entendo que a palavra para algumas pessoas tem um valor social, pedagógico, politicamente correto. Sou egoísta e muito autoreferente nesse ponto. Vale dizer que o entendimento pleno do que eu escrevo não cabe a mim, vivo de esquecer antigas razões, permito minhas mãos psicografar meu inconsciente. Uma experiência quase lisérgica. Sempre penso nas pessoas que lêem e concedem outro significado, até mais rico que o meu. Essa polifonia é sensacional. Não gosto quando alguém me pergunta sobre o que trata um texto meu. Quem decide é quem lê, Barthes, Umberto Eco, todo mundo já dizia isso antes de mim. Essa coisa de inspiração como verdade tá super caída. Não me considero uma autoridade sobre as minhas palavras.


Palavra é realidade? E que realidade é essa?

Palavra é (odeio esses princípios de definição) uma re-significação do entendimento que temos de realidade. Para um terceiro que lê, é a re-re-significação. Você pode ter um apreço maior pela fantasia ou pelo realismo em suas descrições, pode ser mais ou menos denotativo, mas por um caminho ou outro não é o caso de hierarquizar uma legitimidade. Essa cobrança de refletir realidade é uma besteira, gosto de danificá-la irremediavelmente desde que o resultado estético me agrade. Identifico-me com Dorian Gray e sua admiração pelo belo em suas diversas instâncias. A parte de eu ser feinho só pode ser uma ironia.


O outro é alcançado mais facilmente pela literatura ou pelo jornalismo?

Depende do outro. Existem milhares de variáveis que estão entre um emissor e um receptor por mais que aprendamos isso de uma forma bem mecânica em Teoria da Comunicação. Seja como for, de forma geral, generalizando mesmo, acho que enquanto o jornalismo toca mais rápido e superficialmente, a literatura aparece para ser mais profunda. O primeiro é um beslicão, o segundo uma facada, desperta reflexões mais intensas, mais dolorosas. O jornalismo vale pelo momento, depois só resta como registro. A literatura tem lá sua transcendência. Claro que rola uma pose, um ‘quê’ de mais charmosa. Você lê Clarice e aquelas palavras lhe acompanham para onde você vai, você vê Clarice fumando seu cigarro e se deixar levar pelo encanto de sua fala. Você lê um jornal e no outro dia nem lembra quem escreveu a matéria, sobre o que se tratava, nada. Tenho a impressão que as pessoas ultimamente andam mais esquecidas do que nunca.


O discurso da verdade no jornalismo.

O discurso não. O mito. Pelo que falei da re-significação dá pra tirar. Essa coisa de verdade não me agrada e ao menos teoria não agrada muita gente, só que com o tempo as pessoas deixam pra lá, deixam pra lá qualquer coisa. Somos uma geração muito inerte e no curso os professores tentam colocar na nossa cabeça a extrema necessidade em ser objetivo, passar a verdade e tal. O pior é que alguns acreditam mesmo e seguem em frente.


Jornalismo é broxante? Literatura é tesão, é liberdade, são múltiplas verdades?

Jornalismo não me deu tesão, mas nem por isso é uma broxada. Assim, o princípio da função jornalística é bastante interessante, o problema são as regras e modelos instituídos, jornalismo também não é o fim do mundo como você está tentando me coagir a dizer. Sei que é intencional pra estampar a capa do seu trabalho. Na literatura, tenho uma história engraçada. Primeiro eu tentei compor letras de música, mas daí passei a achar que encaixar palavras numa melodia não me deixava dizer o que eu queria, daí parti para a poesia achando que ali estava a liberdade, mas depois de um tempo a abandonei quase por completo porque meus pensamentos estavam muito densos e confusos para serem colocados em versos. Daí passei a achar a prosa-poética o meio de conseguir utilizar minha liberdade em essência. Um dia vou achar que até a prosa poética me limita e das duas, uma: ou vou ficar só no mundo dos pensamentos ou irei virar funcionário público. Talvez as duas coisas.


O que a tua aproximação com a literatura soma ao jornalismo?

Eu estou aprendendo a separar um pouco as intenções (estarei realizando os devaneio dos meus 15/16 anos?), porque até o vocabulário que me impulsiona é abominado pelas regrinhas castradoras do jornalismo. Quando tive minhas primeiras aulas de redação jornalística tive certeza da frigidez do professor. Nada era emoção, sabe? Mas ao mesmo tempo, dentro da universidade, há abertura para diversas formas de expressão, de modo que de uma maneira ou outra você encontrando o seu espaço de expressão. É preciso empurrar com força às vezes. Existem os momentos de maior ousadia e os de maior contenção. O pior é que estou me acostumando a isso e quando os professores não deixam claro se a gente pode brincar com as palavras ou não, tiro pela impressão que tenho dele. Um dia ainda me ferro. Será que em Paulo Cunha vou me ferrar?


A linguagem do jornalismo é pobre?

Sem querer generalizar novamente, mas na maioria dos casos é pobre e a desculpa falseia o fato de ser um meio popular para encobrir o mito da imparcialidade. Essa é uma hora que eu me acho super elitista, super nem aí para o social, porque se tem algo que me irrita é quando alguém pede para tornar o meu texto mais claro através da substituição de palavras por sinônimos populares. O problema é que sou doido: quando mudo uma palavra por um sinônimo, simplesmente não vejo o texto da mesma maneira. Nunca fui muito bom em seguir as regras dos outros, sou da turma que gosta de fazer as suas próprias regras. James Dean chora.


Há prazer na leitura do jornal diário?

Poxa, eu adorava ler jornal, sabia? Eu era realmente viciado. Sendo que com o tempo perdi o interesse, por diminuir dentro de mim a importância do presente enquanto tempo histórico. Isso tem muito a ver com a expansão da minha cultura para outros lados, principalmente através da universidade. Hoje quase não leio periódico, só folheio, gasto poucos minutos. É mais uma ironia, levando em conta que faço jornalismo. Sem dúvida, determinados cadernos dentro do jornal aceitam uma linguagem mais livre, contudo, me pergunto se há abertura para o aumento desse espaço. Não há. Você deveria perguntar isso a uma pessoa que trabalhe em jornal e não a mim. Na minha própria sala de aprendizes sou um dos mais distantes do jornalismo diário, por mais que tire notas boas em Marconi.


Uma escrita gostosa de ler é advinda de talento ou de técnica?
Não vou responder essa e... como assim gostosa? Tu só podes ser lésbica.


Na faculdade há uma reflexão sobre o texto ou há apenas uma reprodução das técnicas já estabelecidas?

Há espaço para as duas coisas, em medida diferentes, as técnicas são ensinadas em muitos períodos. Acho que o sistema acadêmico acredita que uma escrita literária provém de talento mesmo ou eles exercitariam melhor essa potencialidade. Gosto de acreditar que uma escrita boa vem de uma inspiração boa mesmo que seja uma inspiração falsa. Acontece. Eu acho que não sei de onde vem as coisas. Nunca fui bom em criogênesis.

quinta-feira, 21 de abril de 2005

1967

Sonhei que Paul McCartney me dizia que o mundo iria fazer de tudo para me enquadrar num Sgt. Peppers, mas que eu não podia passar pela vida sem alcançar o Lonely Hearts Club Band.

segunda-feira, 18 de abril de 2005

Torre de Pisa

Sempre que tem um conflito para estourar, desses temerosos que ameaçam suprimir uma cultura, me posiciono contra o grupo mais imperialista e penso no seguinte: se querem brigar, que briguem, se acabem, se danem para lá, mas aquela coisa, matem os italianos, mas não destruam a Itália. Sei que é bem ortodoxo, mas o homem nasce de novo, a humanidade continua sua caminhada, logo logo surgirão novos motivos para brigar e enquanto essa brincadeira não tem fim, a história se apaga, a beleza se perde. Sempre gostei mais de mármore que de ossos.

sexta-feira, 8 de abril de 2005

Nascimento / Morte

Depois de cansar da Escola de Frankfurt, especialmente do empenho ideológico de Adorno e Horkheimer, adentro o pensamento do "terceiro" e mais interessante autor alemão desse período com uma dúvida básica: não sei se a aura foi destruída pela ascensão da fotografia e pela posterior radicalização do cinema, afirmando o rompimento com a unicidade, a perda do elemento místico envoltório e uma percepção massificada próxima aos objetos ou se esse conceito só deixa de existir enquanto tal depois que Walter Benjamin escreve sobre ele e determina sua morte. É só uma dessas inquietações filosóficas de banheiro, se os conceitos estão no mundo, esperando serem cartografados e nomeados, ou se estão na cabeça do homem como explicação desse mesmo mundo, de forma que quando se trata de um conceito de fim, a morte da aura, o mesmo tempo em que nasce é o tempo em que deixa de existir.