quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Papo-cabeça

- Nadadisso!

- Tudodisso!

- Nada disso!

- Tudodisso!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

∫∂∫∂∫

Já levei cusparada, cervejada e muito tapa na cara.
...
...
Ao menos, roubei beijos de um monte de bocas.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Sobre os Velhos

Desde que cheguei no Rio, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a quantidade de velhinhos, velhinhos mesmo, andando de um lado para o outro sem qualquer tipo de acompanhante, afirmando dia-a-dia, noite-a-noite, passo-a-passo a sua autonomia. Pelo que tenho notado, a maioria deles são cariocas da gema, moram nos mesmos bairros da infância e parecem acordar dispostos a descobrir uma nova atividade a ser fazer: jogar futebol em Copabana, almoçar em algum restaurante, visitar algum amigo, tomar banho de mar, surfar, buscar os netos no colégio ao anoitecer, caminhar na Lagoa, cair na farra sem pudor. Se tem uma coisa que o Rio de Janeiro tem me ensinado é lidar com meu medo de envelhecer, estou diminuindo a melancolia que depositei nesse processo, a aposentadoria pode, de fato, ser o melhor momento para usufruir do tempo livre. Há uma maturidade diante das 24 horas que só depois dos cinquenta iremos descobrir. A cidade, por sua vez, parece dar sua contrapartida desde que se deu conta do poder aquisitivo desta parcela da população, de modo que é super comum encontrar todo tipo de serviço especializado para a terceira idade: dos bares aos bailes, da yoga ao turismo, do curso de teatro à porra a quatro. Até o sotaque deles é diferente: tem um swing malandro a modo antiga e não abarca o vocabulário baladas-nights-parceiro-cumpadi. Tenho pensado todos os dias nos velhos safados que encontram seus amigos de 40 anos no mesmo boteco que se conheceram.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Regras

Hoje descobri que os integrantes do Comando Vermelho falam "é nois", os do Terceiro Comando "a gente" e que se alguém quebra essa regra básica - regra estúpida - pode terminar em pedaços num lixeiro público de Copacabana. Descobri também que dentro do óbvio envolvimento da polícia no tráfico, não um envolvimento micro, mas num sentido macro, rola uma rede de troca de favores, onde os traficantes pagam mensalidades para que seus morros não sejam visados em ações, ações midiáticas, inclusive, e que seus clientes não levem baculejo após efetuarem suas compras. O mais importante, entretanto, é se dar conta que os policiais não recebem um salário alto o suficiente pra morarem nos prédios do asfalto, na maioria dos casos, terminada a jornada de trabalho, quando tiram o uniforme, guardam os fuzis, desamarram os sapatos, voltam ao aspecto civil de ser, é para o velho morro que precisam voltar.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Compensação 2

Se no primeiro e-mail que mandei para vocês procurei me focar no impacto que a presença dos militares de Realengo me causaram, na agressividade emanada por toda aquela estrutura arcaica, realmente o escrevi sem ter contato algum com a fama que a polícia urbana tem por aqui. Estou com a impressão que simplesmente todos os cariocas têm medo da polícia e, por incrível que pareça, nesse quesito, não importa a cor, a religião, a orientação sexual ou a classe social. Sequer importa a culpa que cada um carrega. De vez em quando escuto falar de alguém que pirou por conta da pressão constante e, de fato, não é muito difícil desenvolver uma síndrome do pânico por aqui. Ariadne até me deu a recomendação de só fumar maconha no morro ou em casa, falou que 'a coisa aqui não é brincadeira', dei pouca importância, admito, também nem estou fumando muito, mas depois que vi várias pessoas comentando no mesmo tom, abaixando a cabeça ao passar de qualquer viatura, entendi a dimensão da coisa. No início, fiquei meio assustado com esse clima velho oeste, mas agora é muito sério, estou de saco cheio desse medo instituído.

Pra vocês terem uma ideia, dia desses, fumando no carro de um dos playboys de Botafogo, passamos numa área militar na Urca e, do nada, um dos caras dentro do carro praticamente começou a chorar. Seu nome é Felipe, ele era instrutor do Detran e nas horas vagas fazia doideiras no trânsito, pega e afins, como metade dos motoristas daqui. Pelo que entendi, ele bateu com o carro duas vezes e em ambas, a conta deu perda total. Ele está passando seus últimos dias na cidade, a família vai mandá-lo para Boston na próxima semana para trabalhar como peão numa obra. Conversamos bastante: ele sempre meio choroso, cabisbaixo, ansioso e eu tocado, por um lado, e afim de escutar boas histórias pelo outro. Desde o último acidente, tenho sérias dúvidas se alguém morreu, ele tem trabalhado insistentemente para mudar seu ritmo de vida e sua personalidade, deixar de ser a figura mais louca da turma, quase um desespero por se tornar careta e conseguir levar uma vida correta. Ele é um cara bom, simpatizei, queria mesmo que se arrumasse nos Estados Unidos, porque se tudo der errado e ele voltar pra cá, o Rio de Janeiro vai devorar ele vivo.

Quanto ao medo no uso de drogas, terminei colocando o assunto com a playboyzada, fazendo uma espécie de comparativo, e a primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato deles desconhecerem a lei do usuário ou, se conheciam, tomavam-na como lenda urbana. O segundo momento foi o choque: eles ficaram boquiabertos quando contei que em Recife, os usuários costumam pegar 50 gramas de uma só vez, que geralmente compram o que vão consumir no mês, que fumam na rua em vários pontos da cidade, que andam com maconha no bolso. Por aqui, alegaram que independentemente da quantidade, um baseado que seja, precisam enfiar na cueca. Calma: tudo bem que o que eles fumam é merda de boi com amônia, mas ao menos arrumaram um jeito de não fumarem pentelho, pois o bagulho vem dentro de um saquinho plástico, daí podem até enfiar no cu de acordo com o grau da mania de perseguição. O fato da polícia tocar terror criou um pânico intensivo em todos os usuários, um número bastante alto diga-se de passagem, e internalizou uma condição de criminoso numa grande parcela da população.

Outro ponto importante é como o uso de drogas está muito distante do consumo sadio, fazendo jus ao retrato de problema de saúde pública que tantas ongs insistem em dar. Não sei se é pela ausência de maconha solta, mas acredito que a junção de 1. opções diversas de drogas + 2. poder aquisitivo bem maior que o nosso resultou numa incógnita trágica-réquiem-para-um-sonho-trainspotting. Fui numa rua que fica na subida do morro, num barzinho que de tarde é mó legal, sinuca, playtime, mas que à noite perde toda sua graça . Quando me dei conta, a rua estava tomada por um bando de viciadões, gente rica, pobre, estudante, executivo, todos com olhos esbugalhados, rondando de um lado para o outro como zumbis, fumando maconha, crack, cheirando cocaína, loló, clorofôrmio, injetando, a porra a quatro. Entre eles, notei uns vendedores e bateu uma raiva do caralho dada a decadência dos clientes. George Romero choraria de prazer se fosse um filme e alguns recifenses não durariam dois dias se entrassem no oba-oba. Desde então, dei um tempo na maconha: tenho a sensação que aqui qualquer besteirinha bonitinha pode virar uma coisa perigosa.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Compensação 1

Pode soar muito maniqueísta, mas preciso correr o risco, porque tenho acreditado cada vez mais que no Rio tudo funciona sob uma política de compensação: para cada coisa bonita que vejo, sinto que há uma uma horrível para descobrir. Posso passar muito tempo olhando o Pão de Açúcar, horas sentado no Arpoador, honestamente me emocionar com a beleza dessa cidade e com a valorização dos espaços culturais, mas já não me sinto o turista que goza seus espaços, talha sua redoma estrangeira e ignora todo resto. São 6 horas da manhã e, me desculpem, estou delirando de sono. Vamos lá, no último e-mail que enviei - e esse começo é muito 'e como vimos na última aula' - me centrei apenas na primeira noite por aqui, agora já passaram alguns dias, quase uma semana, e muita coisa aconteceu. Resultado: como nos filmes e livros que tanto gostamos, saltarei no tempo ao bel prazer da hierarquia de minha sonolenta memória.

Pra começar, voltei ao Santa Marta. Depois de todas as visitinhas aos museus, belezas naturais e cinemas tradicionais, marquei de tomar umas cervejas com a minha amiga Ariadne para fugir um pouco do circuito mais-do-mesmo, afinal vou passar um mês por aqui, preciso entrar no ritmo do lugar. Como era esperado, ela queria fumar, eu também, fomos na boca, compramos umas dolinhas e ficamos na pracinha super bonitinha que tinha comentado no e-mail anterior. Então, a boca nada mais é que um mercadinho de drogas, pra chegar lá nem precisa perguntar a ninguém, é só seguir o caminho dos homens-boyzinhos-surfistas-formiguinhas que vai da entrada do morro até a entrada da boca. Lá em cima, você entra na fila, espera a sua vez, diz o que quer, paga e vai embora. É simples, mas não recomendo para os noiados com armas porque fuzil ali é bóia, na linha de frente tem até uma metralhadora que só tinha visto no filme do Rambo.

Mais do que algo pontual como a boca, as milícias ou um assalto aqui e outro ali, o que me incomoda no Rio de Janeiro é como a cidade está excessivamente armada por todos os lados, tenho pensado no impacto de quando acabar a 'paz-armada-guerra-fria' que rege por aqui. Espero estar bem longe. Sim, estávamos na pracinha tomando uma cerveja quando surgiu o rapaz-informante que tinha comentado e fiquei noiando como nos morros há um temor para com as pessoas de fora, possíveis olheiros, os chamados X9 ou 171, nunca lembro qual é qual. Minutos depois, apareceram os comandantes do morro, uns seis ou sete caras, todos sem camisa, alguns com tatuagens por todo corpo, todos com no mínimo dois fuzis e vários revolveres. Sei que era para lembrar de algum filme de máfia, mas terminei lembrando dos toscos de Steven Seagal, apesar de particularmente achar os descamisados super charmosos. Definitivamente não é só por drogas que as bacanas da zona sul vão pagar boquete por ali.

No mais, apesar de ter se criado uma tensão, havia por todos os lados uma compensação: crianças brincando de bola na rua, uns velhinhos jogando gamão, outros tocando samba, uma galera fumando, aquela maresia boa de se ver. Nem acho que seja o modo mais correto, mas querendo ou não, esse pessoal do morro criou uma espécie de contrasociedade, o tal estado paralelo que a mídia tanto alarma, que sobrevive do vício dos clientes ricos, que arranja seus próprios modelos sociais e que se tornou um esquema tão poderoso (ou mais) que qualquer instituição carioca estabilizada. Enxergo esse movimento como uma resposta à desigualdade da cidade, porque se em Recife a gravidade do desigual é imensa, especialmente em bairros como Boa Viagem, no Rio me parece ser oito vezes mais. Não que tenha muita gente fudida fudida, mas é que tem uns ricos muito ricos e toda uma estrutura que os servem, os protegem, os retificam e os adulam. A riqueza em excesso é, para mim, tão agressiva quanto a pobreza em excesso.

Não nos demoramos muito e logo descemos o morro, mas antes rolou o momento figurante-de-cidade-de-deus, quando os traficantes vieram sentar perto da gente, pois tive certeza que a polícia ia subir o morro e só ia dar eu na mira deles. A questão é que terror por terror, por aqui não faz diferença se você está na mira dos supostos mocinhos ou dos supostos ladrões, o bicho pega, como eles costumam dizer por aqui. Ariadne me disse que o chefão que não pode ser nomeado era tímido, que provavelmente ele tinha descido só para vê-la, não trocaram uma palavra, só olhares, uma vibe meio poética e fiquei encantado com o misticismo que criamos diante de tudo que nos é distante. O cara mais temido da região estava ali do meu lado e, olha só, ele era tímido. Desde então, passei dias pensando em como se poderia resolver o problema dessa cidade, como humanizar a marginália sem censurar suas características marcantes, mas mesmo me centrando completamente, não cheguei a conclusão alguma. De fato, minha vontade não passava de uma pretensão barata.

(Continua...)

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Avenida Brasil - Niterói - Morro da Santa Marta

Minha primeira noite no Rio mereceria o espaço de uma semana no diário, no entanto, como preciso correr para as próximas aventuras, serei o mais breve possível dentro da prolixidade que me seduz, ciente de que não conseguirei transmitir, pseudopoético que seja, um décimo do desbunde pelo qual passei. No início tudo ia ser morgado e triste, a programação número 1 consistia em ir para o aniversário de um zé alguém que não conheço numa boate pomposa em Ipanema, Leblon, algo Manoel Carlos companhia ilimitada. Meu nome estava na portaria, a entrada ia ser free, adoro um agrado, mas fiquei me sentindo o playboy-mor quando soube mais ou menos do naipe do lugar e mais ainda quando vi no outro dia na capa do jornalzinho de 50 centavos daqui, que a filha da Glória Pires - o nome me escapou agora - tinha armado um barraco por lá na semana passada. Sempre acreditei que o plus dessas boates era oferecer um pegapacapá entre subcelebridades. Saímos de casa, eu, Carol e Leca. Carol e Leca são garotas zona sul e aqui rola a maior divisão: zona sul, zona sul; zona norte, zona norte; zona oeste, zona oeste. Uma segregação falada, defendida com orgulho e que tem mais a ver com comportamento, acessórios e cabelos tingindos do que necessariamente com ocupação espacial.

A segregação por região comporta uma enorme gama de valores, estereótipos e naturalmente reverbera na predileção por drogas em cada uma das trupes, ou seja, a galerinha que toma ecstasy e drogas sintéticas são zona sul, filhos do asfalto, não perdem uma rave, carregam o sotaque dos mais irritantes e é só tocar no assunto 'baseado', 'lombra' e derivados que começam o maior discurso anti-maconheiros. No mais, constituem a elite afrescalhada que encaixa ou inventa um novo preconceito onde tiver espaço. Da mesma maneira, a galera que só fuma, vive denegrindo a imagem burguesa dos que tomam drogas artificiais, citam alguma matéria do Fantástico sobre tráfico na classe média alta, eventualmente soltam até aquele velho papo da natureza, que fumar maconha é do bem e tal - que bora combinar não faz o menor sentido, porque a maconha daqui é prensada, cheia de amônia e eles sequer sabem o que é uma belota. Quem só cheira não sei o que fala, nem sei que zona ocupa, mas quem usa todo tipo de droga, costuma ficar tão travado que termina por não falar coisa alguma. Obviamente todos os grupos anteriores evitam este último. O apartheid dos usuários não tem nexo algum, é um mela cueca hipócrita dos brabos, porque falando sério, o cara tomar dois ecstasys numa noite e chamar o outro de maconheiro drogado-filho-da-puta-escroto-du-caralho é coisa de gente muito da estúpida. Coisa de carioca zé mané.

Enfim, decidimos passar na casa de uma amiga em comum chamada Ariadne, em Botafogo, antes de irmos pra tal boate em Ipanema. O nome da boate também me escapa e agora pouco importa. Saímos de Realengo e pegamos a famosa Avenida Brasil: pista enorme acometida pelo medo geral dos motoristas que corta boa parte da periferia do Rio de Janeiro. Pode parecer exagero, mas a paranóia carioca se aproxima um pouco da paranóia recifense, essa coisa de ficar olhando para os lados, sempre a espreita que alguém esteja a espreita, tomando providências para a morte não chegar - uma sensação que lembra o protagonista daquele filme, que eu sei que é ruim, mas que simpatizo, chamado Premonição. De fato, a caxangá parece brincadeira perto da Avenida brasil e seus 100 km/h como velocidade mínima. Não existem sinais - é via expressa - e ainda que existissem, aqui no Rio, ninguém liga muito pra sinal não, a maioria dos motoristas ainda não aprendeu o que significa a palavra pedestre e vive no mundo do daltonismo. Atravessar a rua é uma aventura diária. No caminho, no quilômetro sei lá quanto da avenida Brasil, vimos uma moto caída no canto e dois corpos desmaiados (mortos?) distantes um do outro. Ninguém se atrevia a parar pra ajudar pelo medo de serem assaltados. Uma das meninas zona sul sugeriu que poderia ser só fingimento para roubarem o carro. Era impossível. Fiquei com medinho dela.

No final das contas, as pessoas, além do medo óbvio, não param porque ninguém pára, há um sentimento internalizado a partir de uma coletividade, ou melhor, uma negação da coletividade pela falta de atitude generalizada. Pior é que todos andam tão depressa, tão centrados em sair dali o mais rápido possível, que se um parar, provavelmente o que iria acontecer era um acidente. Pouco antes da moto, passamos por um engavetamento de dois caminhões e uns sete/oito carros. Coisa assustadora, cosmopolita demais, me fez sentir um pouquinho caipira que pegou o pau de arara para o sul do país. Seja como for, fiquei incomodado com a indiferença, como aquela moto parecia desimportante até que obtive uma segunda resposta: Carol e Leca alegaram que acidentes de todo tipo ali eram normais, que quando acontecia algo do tipo só as ambulâncias poderiam intervir "e de todo modo eles já deviam estar mortos, pra que se arriscar?". Terminado o veredicto, cantaram juntas a próxima música do CD: me senti a pessoa mais solitária do mundo imaginando os dois corpos sendo atropelados dezenas e dezenas de vezes. Já no final da Avenida, lá pelo quilômetro não sei quanto vezes dois, ao invés de pegar a faixa da direita, Carol ficou na da esquerda e, por não conseguir fazer a transição, terminou tendo de seguir pelo caminho errado, indo em direção a ponte Rio-Niterói.

Fiquei meio boquiaberto com a falta de habilidade automobilística e ainda mais com a famosa construção que liga as cidades vizinhas, nunca tinha me sentindo tão pequeno diante da monstruosidade de uma construção tão ambígua: sentia um peso da história que não interferia na modernidade do aglomerado de concreto e ossos. Fomos até Niterói e voltamos, não cheguei a conhecer a outra cidade, realmente só fomos porque a ponte não tem retorno, quem entra nela tem de seguir até o fim e ainda pagar um pedágio. Fiquei deslumbrado: achei a ponte genial, monstruosa mesmo, o Rio visto dela é lindo. Já perto de Niterói surgem uns estaleiros, umas plataformas, uns navios enormes que em conjunto me lembraram aquelas cenas de filmes de ficção científica quando o diretor quer mostrar todos os efeitos especiais de uma só vez. Achei feio, mas ainda assim conseguiu me deslumbrar ao seu modo, nada perto do Rio de Janeiro: se olhássemos além, víamos os morros na penumbra e iluminados, e ainda mais além, o Cristo sozinho. Entendi melhor a imponência, tanto que senti vontade de filmar a vista da ponte e se não me engano, a lua estava cheia. Ou quase. Ainda bem que eu não tinha uma câmera: esse seria o meu maior clichê, sem dúvida. Tomamos uma cerveja em Niterói, Leca aproveitou para pegar roupa na casa de uma avó e voltamos em seguida. Mais 13km de ponte. Quando finalmente estávamos indo pra Botagofo pelo caminho certo, passamos por uma blitz (é assim, que se escreve?) e esqueci de comentar: minha amiga da direção, além de não saber dirigir muito bem, simplesmente estava sem carteira de motorista. Ok, bateu o medo extremo.

Quando estávamos na frente da viatura, o carro morreu, o farol estava apagado, seguramos o cu, conseguimos passar, de fato se aprende rapidinho a ter muito medo da polícia por aqui. Finalmente chegamos em Botafogo 1 hora e meia depois de ter saído de Realengo. Vontade de escrever um 'UFA' do tamanho do mundo. Carol me deixou na casa de Ariadne, uma amiga olindense, e foi na outra casa dela, em Botafogo mesmo, pra trocar de roupa. Filha de tenente, capitão, coronel, comandante, sei lá, ela nunca poderia sair da casa dos pais com a roupa decotada da 'night', daí sempre saía com uma roupa comportada e depois fazia a transformação da xuxa no caminho. Esse mundo é muito estranho e sendo assim, ela voltaria em alguns minutos. Fiquei lá no apartamento de bobeira. Fumamos um, dois, a maconha daqui tem gosto de merda, resolvemos tomar uma cerveja. Carol ligaria para o celular de Ariadne quando chegasse, daí eu voltaria e seguiria com ela. Tomamos uma. Duas. Três. Quatro. Nada de Carol. Estavámos num boteco de frente pro morro da Santa Marta e até então, foi a visão mais bonita que tive do Rio de Janeiro. Pois é, superou a ponte: o morro lhe suga, todas aquelas luzes emparelhadas com as luzes dos prédios, a verticalidade num modus operandi peculiar, tudo. É difícil de explicar, mas me senti diretamente conectado. Deve ser coisa de nordestino zé mané.

Ariadne ficou insistindo para que eu abandonasse a ideia da boate e fosse com ela subir o morro: era dia do evento maior da região, o Baile Funk. Ela notou que ganhou força no convencimento depois de contar tin tin por tin tin uma dezena de histórias na linha 'minhas-aventuras-sem-noção', um papinho barra pesada da garota de classe média que começa a conviver nos morros do Rio de Janeiro. Só sei que no meio dessas histórias, ela disse que teve um caso recentemente (o mais recente) com um rapaz do Santa Marta. Depois de uns dias, foi presa e descobriu que o tal cara era o chefão-mor do lugar. Ele faz o tipo que não pode ser nomeado que nem Voldemort de Harry Potter. Soube por Ariadne que muita gente envolvida no tráfico nunca desce pro asfalto, alguns só foram na praia quando criança e que isso, serve de motivação para que o Baile seja um evento referência pra todo mundo da cidade. Pareceu-me de uma melancolia enorme, mas pensando no harém que esse chefão e seus comparsas devem ter, a melancolia passou rápido rápido. Nada de Carol. Resolvi tentar ligar pra ela de um orelhão, usando um cartão de Recife, daí não tocou nem duas vezes, ela atendeu puta dizendo que já estava em Ipanema, que tinha ido na casa e esperado um tempão, que tinha ligado e Ariadne não tinha atendido. Por fim, mandou eu pegar um táxi ou estar na casa de Ariadne às 5 horas. Resolvo estar na casa de Ariadne no horário marcado, decido ceder aos convites, saquei que a própria não tinha atendido os telefonemas de propósito e me senti renovado por me deixar levar pelo sentimento forte que tinha batido de cara com o Santa Marta. Logicamente tomei uma lapadinha de cana antes.

Vou ter que resumir porque tenho que sair. O morro é lindo e sei que isso parece papo de antropólogo que vem da Europa estudar os índios. Perdoem-me se for o caso. Logo na subida é cheio de táxis, eles sobem até uma certa altura e trazem a high society carioca que gosta de funk-orige. Depois deste ponto, todos, jogadores de futebol ou não, sobem a pé. Não existem policiais, a segurança é feita pela galera do próprio morro, mas pelo que vi, nem precisava de segurança, foi tudo muito light nesse sentido. Sei que algumas pessoas gelariam ao ver um fuzil, não há esse costume por aí, mas, assim, aqui no rio se você não vê fuzil no morro, vai ver na rua, porque nas viaturas, os policiais andam com as suas armas para fora das janelas. Os seguranças do morro usam umas motos super bonitinhas, meio lambreta, que combinam muito bem com os capacetes meio Hell Angels. Achei bem charmoso. Chegando lá em cima, há uma espécie de praça na frente do galpão do evento, o uso de drogas é completamente liberado, fumei todos, tomei todas, cheirei um pouquinho de loló. Isso tudo com os amigos playboys de Botafogo de Ariadne. Ela conhece gente de todo canto, de toda classe, é do time que usa tudo e não é de zona alguma e o baile funk é muito isso. O espaço é enorme, a galera não pára, a música é safada, vibe funk proibido, tem uma vibração de espírito muito forte. Fiquei meio emocionado de estar ali em alguns momentos. Não é a toa que o morro virou a vedete do audiovisual carioca.

Só sei que, em dado momento, comecei a noiar quando estava dando uma volta dentro do baile, um galpão sem divisória alguma, com Ariadne, pois ela estava super tensa, daí segurou na minha mão e tive certeza que o chefão podia vir aloprar com a minha cara. Ok, sou de áries e o mundo gira em torno do meu umbigo. Obviamente não aconteceu nadica de nada ou não estaria escrevendo aqui. Ele é meio invisível nesses eventos, procura não se expor muito, depois soube que ela só queria saber se o cabra estava vivo e me desculpa, mas essa história de que ela não sabia que ele era O cara é muito princesa da periferia. Totalmente acho que ela sabia. Ainda descobri que por pouco não fui apresentado diretamente a ele, pois um dos caras com quem estávamos, era uma espécie de informante preliminar, fica sacando quem é novo no baile e se chega, tem vários desses, daí ele repassou que eu não era nada de Ariadne, só um amigo de Recife, e de repente tudo melhorou e virei convidado vip. Parece que a avó do que não pode ser nomeado era pernambucana e um dos sonhos dele era visitar Porto de Galinhas. Pois é, muito doido. Só sei que foi bom porque minha nóia passou bonito e me joguei no batidão, comecei a achar que todo mundo estava mais simpático e é isso que o álcool faz com as pessoas. Só fiquei triste quando percebi que os playboys que estavam no morro e moravam em Botafogo não gostavam do morro, algum deles, o que repassa drogas no asfalto, chegou a comentar na descida que era bom aproveitarmos porque o morro ia acabar, a polícia um dia ia invadir e colocar fogo em tudo. Falava com um ar sonhador.

No final das contas, por forças maiores e mesmo eu lembrando da hora marcada, não consegui chegar antes das 6 e meia onde tinha marcado com Carol. A culpa foi de Ariadne, ela mandou eu descer sozinho, não tive coragem, mas isso não vale a pena ser dito porque saí com a certeza de que tinha vivenciado a melhor vibe do Rio de Janeiro. Alguém poderia alegar que passei boa parte da noite com um monte de gente que nunca vi na vida, mas por favor né, eu vim sozinho pro Rio, esse é o tipo de coisa que tem que acontecer e sempre que foi preciso, soube muito bem obrigado me virar na lábia. Liguei pra Carol, que estava na Avenida Brasil, voltando pra Realengo p-u-t-a-d-a-v-i-d-a. Tava muito puta e com toda razão. Decidimos que eu iria pegar o metrô pra Central do Brasil e o trem pra Realengo. Foi o que fiz. Passei numa padaria, comprei uns pães quentes delícia e, antes de ir embora, tenho que dizer que terminar a noite, às 8 da manhã, chegando na Central do Brasil inundada de murmúrios, pra pegar um trem, me deixou relaxado, numa tranquilidade sem igual. Voltei num vagão com poucas pessoas, olhando o cristo e os morros, pensando na vidinha nossa de cada dia e guardando cada segundo no meu baú de memórias. Eventualmente me acometia a noia que quando chegasse em Realengo, alô alô Realengo, Carol ia me por pra fora de casa bonito. Imaginei até minha malas na calçada e todo drama novelesco. Vai saber, melhor cogitar o pior, afinal Carol é garota-zonasul e deve assistir muita novela.

domingo, 3 de dezembro de 2006

Realengo e a Vila Militar

Estou em Realengo. Realengo fica depois da Vila Militar e um pouco antes de Bangu. Foi onde Gil e Caetano estiveram presos no final da década de 60 antes de saírem do país. A Vila Militar é um bairro do tamanho da Boa Vista, uma avenida principal e várias ramificações, onde se amontoam quartéis de todas as instâncias e casarões enormes que servem de residência aos funcionários do exército. Realengo é a extensão disso. Todas as construções datam do século XIX e são uma herança pesada da época em que o Rio era a capital do país. É algo muito, muito gigantesco (e sinceramente, muito bonito), mas pelo que percebi já há algum tempo, o exército não está conseguindo manter o próprio patrimônio que possui, dado o alto custo de preservação que tais construções demandam. Eu não entendo na prática qual a necessidade dessa falsa ostentação, qual a necessidade de se manter vivo todo esse esquema patético. É uma imponência-fake misturada a um orgulho desmedido. Uma decadência tão exposta e uma tentativa tão frustrada de escondê-la. No final das contas, fico martelando na cuca que é tudo dinheiro público e não me venham falar em caso de segurança nacional, por favor. Sem exageros, não é muito difícil se sentir num sombrio 1964 por aqui. Parece muito distante, mas é meio assustador mesmo: vamos na padaria e só vemos fardas e mais fardas, é milico andando armado até os dentes para tudo que é lado. Um bafo de ditadura pode facilmente ser sentido. Parece que uma guerra há de estourar a qualquer momento quando você sabe que não. E sinceramente, eles não estariam preparados. Ainda assim, sentem a necessidade doentia de 'parecer' que 'estariam'. Fiquei esperando a hora de soar o sinal da simulação de ataque aéreo. A maior parábola da vila militar me foi contada por um comandante: na sala da sua casa tinha uma goteira insistente que ele não conseguia vencer, tinha trocado a telha, pintado com tinta especial, mas em poucos meses, a infiltração voltava. Revelou que fazia anos que estava nessa luta e agora tentava se convencer de que era uma batalha perdida. É essa a situação, os milicos não estão ganhando nem das goteiras. Alô, alô Realengo, aquele abraço.

Foi da Vila Militar que roubaram os fuzis que causou todo aquele rebuliço no Rio há uns meses. Foi na Vila Militar que anteontem, por pouco, não roubaram todo o dinheiro destinado ao pagamento dos funcionários (referente ao mês de dezembro + décimo terceiro). Qualquer um que passa por aqui sente algum receio, alguma opressão (e não me falem sobre o uso de arrobas e questão de gênero, por favor). São muitas armas espalhadas em muitas mãos e sempre fico com a pulga atrás da orelha de que as mão são despreparadas e efusivas. Seja como for, qualquer um que passe alguns dias por aqui nota toda vulnerabilidade estrutural que esse sistema possui e o quão hipócrita ele é, especialmente porque se tratando também de um espaço familiar, os filhos dos soldados, tenentes e capitães funcionam um pouco como ruído do estilo de vida que seus pais parecem empreender. O exército está pagando mais do que pode pra esconder que a sua verdadeira batalha é possuir legitimidade de subsistência. Os prédios na Vila Militar estão quase todos muito velhos, acabados, não passam por uma reforma faz tempo. Vários e vários e vários batalhões foram reduzidos, transferidos ou extinguidos. O número de pessoas está diminuindo rapidamente, mas o número de construções continua o mesmo. A cada dia, fica mais difícil eles preservarem a grandiosidade de outrora e naturalmente tornaram-se neuróticos. Pra intensificar a histeria, o entorno da Vila Militar foi tomado nos últimos anos por algumas favelas, chamadas de 'problema' por aqui. Resultado: entupiram vários pontos com Blitz exageradas, correram de lados para lados, temem que os prédios sejam invadidos. Tudo isso não porque a tensão está no ar, mas sim, porque sabem que se isso acontecer, não estarão preparados pra nada. Estão prontos pra guerra invisível que eles próprios criaram e que não podem ganhar. E o medo que eles causam não é nada, perto do medo que eles sentem. E a hipocrisia fica por conta da filha que fala que não vai ao morro, porque não se sente bem cercada por aquelas armas, enquanto o seu pai tira um revolver do bolso e dá dois tiros para cima no dia do seu aniversário. Eu gosto de fumar um cigarro andando pela Vila Militar.

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

Violeta Blues

FADE IN

CENA 1 – EXT. BOTECO NO CENTRO DO RECIFE – FIM DE TARDE
A câmera passeia pelo centro do Recife, com vários relances de travellings cortados para travellings, revelando o cenário caótico, com vendedores de DVDs piratas, bares lotados, mendigos, meninos de rua, pessoas apressadas. Sobreposto a essas imagens, inicia-se o diálogo entre duas mulheres [ANA E CLARA]. Suas vozes são marcadas essencialmente por um ritmo lento, cheio de pausas e respirações; um ritmo melancólico que se torna mais brando no decorrer da cena. Ainda que inicialmente ocultas, as personagens conseguem construir, através de suas vozes e de seus ruídos (tragos em cigarro, goles em alguma bebida), uma imagem de extremo charme e tristeza. Imagem essa que ao final aparece como apenas mais uma das imagens do centro do Recife. 

CLARA 
Provavelmente, a altura da conversa, isso pouco importa, Ana. Você mesma diria que pouco importa, mas eu sempre me pego pensando em como ninguém soube brincar com o amor e o ódio tão bem como a gente fez. (pausa) A gente nunca perdeu o encanto primeiro que nos unia. Nunca e nem mesmo agora eu sinto falta de um encanto. (pausa) Nem mesmo agora, porra. 

ANA (irônica) 
Você fala como se todo esse encanto, toda essa sinceridade, como se toda nossa intimidade fosse uma coisa maravilhosa (pausa) Fala como se fosse uma coisa que me fizesse muito bem. Só que não fez e continua não fazendo. (pausa) Pois, sendo bem sincera, eu sempre me pego pensando em como nossa relação poderia ser mais rasa, mais descartável mesmo, sabe? (pausa) E se fosse assim, seria bem mais fácil esquecer. (pausa) E esquecer (pausa) E esquecer. Seria bem mais fácil deixar de lado nossas palavras, nossas histórias, tudo. Ia ser como já fiz outras vezes com outras pessoas (pausa) Ia ser como a gente faz o tempo todo. (pausa) Porra, as pessoas entram e saem das nossas vidas o tempo todo, Clara. É um ciclo e você sabe bem disso, afinal você sempre brincou tanto. (pausa) E tanto. (pausa) E tanto (Pausa) Às vezes fica alguma coisa, às vezes não fica porra nenhuma. (pausa) Isso é o tipo de situação que ta sempre acontecendo e o tipo de situação que não faço questão nenhuma de evitar. 

CLARA (cortando) 
É o tipo de situação que não se aplica a nós duas. (pausa) Podemos daqui a trinta anos ignorar tanto nossa história que vai parecer esquecimento. (pausa) Eu acho que só vai parecer, na linha de preferir não pensar, só que também não deixar totalmente de lado. 

ANA (retomando) 
Ô, sua idiota, eu não to dizendo que eu queria que fosse assim com a gente, só to dizendo que seria mais fácil. 

CLARA 
Eu não quero que seja fácil, Ana. (pausa) Eu não quero que seja e você também não. (pausa) Nós tínhamos uma coisa diferente e isso deve ter algum valor pra você. (pausa) Um valor ‘histórico’ que seja (pausa). Não tente tornar as coisas mais fáceis, deixe de ser preguiçosa. Você vai terminar estragando tudo. 

ANA (irônica) 
Estragando tudo? Estragando o que minha senhora? Tudo já tá mais que fudido, querida (pausa) Hoje deve fazer um ano que não nos víamos e sejamos sinceras, não há mais AQUELA saudade. Resta apenas, uma curiosidade estética. O meu cabelo cresceu. Você esta mais feia. (Pausa) Só isso. 

Nesse momento aparece a imagem de várias pessoas sentadas numa mesa de bar, dentre elas ANA e CLARA estão no fundo sem grande destaque. 

CLARA 
Você sabe porque eu me afastei. 

ANA 
Às vezes você fala de você mesma como se fosse uma terceira pessoa, como se as coisas estivessem fora do seu controle.

CLARA 
E estavam

ANA (tédio) 
Não, Clara, não estavam não, porra. (Pausa) Aquele só foi mais um dos momentos que você não soube lidar. 

Ana afasta o rosto, quando Clara tenta tocá-la carinhosamente na face. 

CLARA 
Eu só não entendo essa sua resistência. 

ANA (calma / cínica) 
Não existe disputa alguma, portanto não existe resistência alguma, minha querida. (pausa) Na verdade, o que mais me incomoda é ver você falando como se tivesse dormido com um telefonema meu e acordado nua do meu lado na cama. (pausa) Clara, do mesmo jeito que eu não posso apelar para o esquecimento, também não posso criar uma naturalidade que não existe mais. (pausa) Não posso. (pausa) Eu não consigo viver com alguém que pode me abandonar a qualquer momento. Desculpa, mas não é do meu feitio. Entre amar e viver receosa e não-amar e viver segura, eu prefiro viver segura, sem dúvida. (Pausa) Eu não suportaria outro abandono, outros motivos, outras palavras. Nada. 

CLARA 
Você não pode impor uma mediocridade entre a gente. (pausa) Por favor, não me force a isso. 

ANA (irônica) 
Não deixe o teu ego te enganar, Clara. (pausa) Não há mediocridade alguma. (pausa) Isso que você está sentindo não é saudade de mim, é solidão sua. Simplesmente isso. Assuma de vez sua egolatria. (Pausa) É só porque você está se sentindo solitária ou anda com a estima meio baixa. Não é muito além disso. 

No meio da última fala de Ana, a imagem está mais próxima. CLARA e ANA estão sentadas, frente a frente, em uma mesa de bar. CLARA [vinte e quatro anos, morena, cabelos médios castanhos claros] está apoiada com as duas mãos na mesa, enquanto Ana [vinte e dois anos, branca, cabelos longos e pretos] está completamente recuada, fumando um cigarro, encostada na cadeira, observando a amiga com um olhar blasé. Há uma garrafa de vinho barato e dois copos entre elas. 

CLARA 
E como sempre aconteceu com a gente, você primeiro me manda embora, depois se arrepende e se desculpa. (pausa) Tenho certeza que você vai se arrepender. Certeza, certeza. Eu te conheço, putinha, como a palma da minha mão. (pausa) E um dia, se alguém tivesse que desistir por nós duas, desculpa Ana, mas essa pessoa seria eu. 

ANA 
Sinceramente, se seria você ou eu pouco me importa. Você ultimamente só anda falando merda, eu particularmente tenho outra teoria sobre nós duas (pausa – sussurrando no ouvido a partir desse ponto – não dá para ouvir). 

Ana termina de sussurrar no ouvido de Clara, encosta vagarosamente seus lábios na bochecha dela, termina de beber o seu copo, apaga o cigarro, se levanta, ajeita sua bolsa e o pano enrolado no pescoço e sai andando em direção a saída. Clara permanece parada. 

FADE OUT 

“VIOLETA BLUES” 

FADE IN 

CENA 2 – EXT. BOTECO NO CENTRO DO RECIFE – FIM DE TARDE 
Continua a cena de Ana andando para saída do estabelecimento, que fica por trás de um antigo casarão. Seus passos são contidos e frios. Ela entra em um corredor no sentindo contrário ao da mesa onde Clara permanece sentada. 

CENA 3 – INT. CORREDOR NO FUNDO DO BOTECO – FIM DE TARDE 
Trata-se de um longo corredor de paredes vermelhas. Em toda sua extensão existe cerca de seis pequenas mesas, cada qual com um abajur em cima ligado ou um jarro de flores. Ana anda com certa indiferença no rosto. Há alguns quadros quaisquer no início. Ana cruza com cinco hare krsnas, homens e mulheres, pulando e dançando no sentido contrário ao que ela caminha. Alguns estão de mãos dadas, rindo bastante, seguindo um que vai à frente tocando uma flauta. Há um clima surreal no lugar. Logo em seguida, ela nota algumas pessoas nuas encostadas na parede, de maneiras completamente diferentes, algumas de frente, outras de costas, de cabeça para baixo, como se estivessem grudadas, enquanto ao lado passa um anão batendo dois pratos de bateria. Ana continua andando, mantendo total indiferença e entra numa porta no final do corredor. 

CENA 4 – INT. BANHEIRO - FIM DE TARDE 
Ana entra no banheiro e se olha no espelho com certa expressão blasé. Porém, sua face muda lentamente até ela sufocar o choro, mantendo uma de suas mãos contra a boca. Em seguida, Ana pega uma tesoura e corta, bem curtinhos, seus longos cabelos pretos num só corte. Ela pega os cabelos cortados e arremessa no lixo com certa raiva. Lava o rosto, tirando a maquiagem e abre um sorriso quase infantil. Despe-se na seqüência e pega uma camisola branca jogada no chão e novamente se olha no espelho. Já não parece a mesma. Alguém bate na porta. 

ANA 
Já tô saindo, já tô saindo. 

Ana abre a porta e sai. 

CENA 5 – INT SALA DE APARTAMENTO / BANHEIRO – NOITE 
Ana entra no aposento apenas de camisola. Clara está sentada num sofá fumando um cigarro. Por trás delas existe uma parede, onde estão pregados vários sapatos altos que servem de jarro para plantas e flores. Ana se aproxima de Clara, cheira o pescoço da amiga num gesto carinhoso e lhe toma o cigarro. Dá dois tragos e o devolve diretamente na boca, alisando o seu rosto na seqüência. As duas dividem o cigarro e trocam algumas carícias fraternais, quase sexuais. 

CLARA 
Vai, eu começo. 

ANA 
E o que vai ser? 

CLARA 
Eu quero ver você tomando banho. 

Ana abre um sorriso ainda infantil, levanta-se e caminha até a porta do banheiro. Entra, deixa a porta aberta, tira a camisola e liga o chuveiro. Clara senta na porta do banheiro, também de camisola branca, observando a amiga enquanto fuma um cigarro. Permanece assim por algum tempo. A campainha toca. Clara se levanta e atende a porta. Ana entra de cabelos não tão curtos e com roupas normais empurra agressivamente Clara até a parede. 

ANA 
Se você quer me deixar louca, você vai conseguir, ta entendendo? Vai conseguir. 

Ana empurra Clara na parede com toda força possível e sai do apartamento. Clara a segue apenas de camisola

CENA 6 – CORREDOR – FIM DE TARDE 
Novamente o corredor vermelho com abajures sobre as mesas. Ana sumiu. Clara anda até a metade do aposento e encontra uma mulher nua. Outra mulher aparece atrás dela e tira sua camisola lentamente. Ela vira para trás, mas permanece indiferente. A mulher que estava na frente (e agora está atrás) começa ajudá-la a colocar um vestido, enquanto a outra ajuda na maquiagem. Uma terceira mulher aparece com uma bolsa, tira um cigarro dela, coloca na boca de Clara e o acende. Em seguida, entrega a bolsa à mulher. Todos os atos são acompanhados de gestos sensuais. Clara está pronta. Ela anda até o fim do corredor e abre uma porta. 

CENA 7 – BAR UNDERGROUND - NOITE 
Trata-se de um bar pequeno e fechado, quase que completamente escuro. No fundo apenas uma luz vermelha sobre uma mulher, que canta CABARET, tango interpretado por Elis Regina. Há algumas mesas com abajures em meia luz. Clara senta na mesa em que Ana já estava sentada. As duas se olham com certa frieza. As pessoas conversam, mas as duas permanecem sem interagir muito. Apenas se olham. Aos poucos as pessoas se levantam e vão saindo da mesa, se despedindo de todos (na verdade, apenas Clara, Ana e a cantora ficam focadas nessa cena. Todos os outros personagens ficam borrados, como vultos). Restam, por fim, apenas as duas mulheres. Clara se levanta anda até Ana e lhe dá um lento beijo na bochecha (igual ao que Ana deu ao se despedir na primeira cena). 

ANA (voz falhando) 
Porque você me deixou? 

CLARA 
Não, Ana, eu só me atrasei um pouquinho. 

Clara leva a mão até o ouvido da outra mulher, sussurra algo e sai. Ana fica sozinha, ouvindo a música, desolada e bebendo em seu copo. Ao terminar sua bebida, se dirige até a porta. 

CENA 8 – INT. QUARTO DE ANA - NOITE 
Ana entra no quarto, tira a roupa, coloca uma camisola e se deita na cama de casal. Clara está deitada ao seu lado. Ficam deitadas se encarando. Não trocam nenhuma palavra, nem se tocam. Apenas olham por um bom tempo. 

ANA 
É uma pena que você NÃO esteja aqui comigo. 

Ana tenta colocar a mão vagarosamente no rosto de Clara, mas essa balança a cabeça negativamente, ainda que mantenha uma expressão graciosa. Permanecem se encarando. 

ANA 
É uma pena. 

Clara se levanta e sai do quarto. 

CENA 9 - INT. SALA DO APTO / BANHEIRO – NOITE. 
Clara entra no aposento apenas de camisola, acende um cigarro, bate na porta do banheiro e senta no sofá. 

ANA (off) 
Já to saindo, já to saindo. 

Ana entra no aposento apenas de camisola. Clara acabara de sentar no sofá fumando um cigarro. Por trás delas existe uma parede, onde estão pregados vários sapatos que servem de jarro para plantas e flores. Ana se aproxima de Clara, cheira o pescoço da amiga num gesto carinhoso e lhe toma o cigarro. Dá dois tragos e o devolve diretamente na boca, alisando o seu rosto na seqüência. As duas dividem o cigarro e trocam alguns carinhos fraternais, quase que sexuais. 

CLARA 
Vai, eu começo. 

ANA 
E o que vai ser? 

CLARA 
Eu quero ver você tomando banho. 


Ana abre um sorriso ainda infantil, levanta-se e caminha até a porta do banheiro. Entra, deixa a porta aberta, tira a camisola e liga o chuveiro. Clara senta na porta do banheiro, também de camisola branca, observando a amiga enquanto fuma um cigarro. Permanece assim por algum tempo. 

ANA 
Eu também quero pedir. 

CLARA 
E o que vai ser? 

ANA 
Eu quero ver você se masturbando para mim daí. 

Clara sorri. Ana continua debaixo do chuveiro ligado, olhando com uma expressão de desejo para a amiga. Ela desliga o chuveiro e então se pode ouvir os gemidos de Clara. Ana anda até a porta e bate com força. Olha-se no espelho e sufoca o choro novamente. Tira a camisola, coloca a mesma roupa que estava na primeira cena, se maquia e sai novamente no corredor. 

CENA 10 – INT. CORREDOR BOTECO NO CENTRO - FIM DE TARDE 
Trata-se de um longo corredor de paredes vermelhas. Em toda sua extensão existe cerca de seis pequenas mesas, cada qual com um abajur em cima ligado e um jarro de flores ao lado. Ana anda normalmente ate o fim do corredor em direção a mesa onde estava sentada. 

CENA 12 – EXT. BOTECO NO CENTRO DO RECIFE – FIM DE TARDE 
Ana volta ao bar e senta na mesma mesa onde estava sentada na primeira cena. Ela olha em volta e não vê Clara. Encosta lentamente a cabeça na mesa e estica o braço. 

ANA (VOZ EM OFF) 
Você deveria saber que eu iria voltar.

Ela continua sentada na mesa sozinha.

FADE OUT

CRÉDITOS

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Absurdo

Hoje uma pessoa me parou na rua do lazer para me perguntar se eu fazia engenharia civil.

Que?

A cada dia fico mais chocado com o que as pessoas pensam de mim.

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Cotidiano

Não suporto os rotineiros cumprimentos sem significado, apesar de tolerar a condição de podermos conhecer mil pessoas, nos tornarmos amigos dessas mil, vivermos um tempo maravilhoso com todas elas e depois querermos simplesmente que sumam da nossa frente. O problema reside no fato de ser impossível 'desconhecer' mil pessoas, não seria tanto apagá-las como em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembrança (EUA, 2004), de Michel Gondry, mas fazê-las sair de seu círculo de convivência, mandá-las para o leste europeu no inverno, afinal a presença pela presença nos deixa no incômodo dilema de fingir simpatia ou indiferença. Se rolar um momento nostalgia aí é que fode tudo. O resultado é que termina por ser patético na maioria das vezes. Não sei como ficariam os encontros casuais no meio da rua ou naqueles lugares que costumavam frequentar juntos, mas sei menos ainda como ficaria a relação com os amigos em comum. A cautela com as pessoas que deixamos para trás às vezes me parece um fardo daqueles que fazem questão de lhe lembrar que a sua vida não é, nem nunca será só sua, que mesmo que você lute para assumir todas a lacunas dos rumos, não necessariamente irá fazer de seu veredicto a determinação para continuar em frente. No mais, tenho pânico de semi-conhecidos: dos que sempre o foram e sempre serão e dos que lentamente submergem nesse patamar.

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

A Banda Tropicalista do Duprat, 1968


(Publicado originalmente no Overmundo)

"Não é de uma hora para outra que vai surgir um movimento como a Tropicália, que jogou merda no ventilador. Aquilo era tão ousado que não durou muito – mandaram Caetano e Gil embora do país".

Rogério Duprat em entrevista recente.

Sobre o Álbum

Duprat sempre foi um integrante do movimento tropicalista que me chamou bastante a atenção por algum motivo que aparentemente desconheço. Eu mantinha certo respeito perante ele, provavelmente por não saber bulhufas sobre seu trabalho com maestro e arranjador até então. Ou talvez, fosse pelo simples fato dele ser o mais velho dentre as crias do tropicalismo. Por sinal, eu só fui descobrir que ele tinha um disco próprio, tropicalista, há uns três ou quatro meses atrás, pouco antes de pensar em fazer a resenha sobre o disco de Caetano. Até então, Duprat só era o rapaz intelectual que segurava o penico, simulando uma xícara bem chá das cinco, na capa de “Tropicália ou Panis et Circenses”. E mal passado algum tempo, já estou eu aqui, escrevendo uma pseudo-resenha sobre. Quanta pretensão, meu Deus. De qualquer forma, procurei fincar uma base teórica e histórica quase sólida, através de uma rápida pesquisa, que me ocupou por alguns dias. Vale ressaltar o quão pouco se escreve sobre certas figuras da música brasileira. E não digo só o Duprat, mas até conjuntos que eu considerava um tanto “conhecidos” (e até reverenciados) como o “Ave Sangria” ou Walter Franco. Minha mãe, por exemplo, nunca tinha escutado falar neles, mesmo que estivesse iniciando a sua vida adulta quando a banda lançou seu disco em 1974. Vai saber o que ela estava fazendo naquele ano. Espero que isso não tenha nada a ver com o fato de minha irmã ter nascido em 75. Enfim, após peneirar informações e informações me tornei pseudo-apto a falar sobre Duprat, podendo dar uma opinião crítica sem soar tão hipócrita, podendo eventualmente falar mal e me satisfazer sem grandes pesos na consciência. E vale (vale?) ainda ressaltar que estudar o passado é, invariavelmente, estudar a história a partir do ponto de vista de alguém. É perigoso e infelizmente pessoas como eu não têm opção. Não demorou muito até eu descobrir algumas coisas bem importantes (e não sei se tão interessantes).

Resumindo: Duprat possui uma formação erudita, que a partir da segunda metade da década de 60, se aproximou da música popular, criando um produto híbrido. O maestro estava cansado de compor obras que terminavam destinadas a uma pequena elite e passou a praticar a fundo todo seu conhecimento musical, o que resultou na fusão de diversos estilos, muitas vezes, em um só arranjo. É o que dizem por aí, pelo menos. Duprat foi o arranjador de diversas canções tropicalistas, de discos inteiros, inclusive assina os carros-chefes do movimento: “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria” de Gilberto Gil e Caetano Veloso respectivamente. Além disso, o arranjador trabalhou em muitos dos discos dos Mutantes e foi decisivo nas experimentações usadas pela banda. Ficou conhecido como o George Martin da Tropicália (só não sei se durante a própria Tropicália, já que essas definições-comparações só aparecem depois). Na década de 70 gravou com Walter Franco e Chico Buarque, mas com a perda gradativa de sua audição, se afastou do meio musical. É de uma tristeza imensa, mas a imagem de um maestro e arranjador perdendo a audição, gradativamente, também pode ser extremamente poética. Melancólica, mas poética. Na década de 90, abriu uma exceção para fazer alguns arranjos para Rita Lee e Lulu Santos. E realmente podia ter morrido sem essa (não, ele ainda não morreu; essa só foi mais uma das minhas piadas sarcásticas e sem graça). Segundo Tom Zé, que conviveu de perto com o maestro, um arranjo de Duprat era algo como escutar "Jackson do Pandeiro manejando uma orquestra de Beethoven". No mínimo sugestivo, mas um tanto exagerado. Entretanto, talvez nada disso importe e o tal do resumindo tenha se estendido por demais.

Para falar a verdade, eu tenho uma opinião engraçada sobre “A Banda Tropicalista do Duprat”. Antes de tudo, é bom deixar claro que eu não consigo desvincular essa produção fonográfica do “Yellow Submarine”, dos Beatles lançado no mesmo ano de 1968. Parece nonsense, não há como negar. A obra quase que totalmente experimentalista do quarteto de Liverpool (e chamá-los de quarteto de Liverpool é o super clichê eu sei), possui no Lado B apenas músicas instrumentais compostas e arranjadas por George Martin. Grande merda o resultado final. Mas a questão aqui é outra: George Martin arranjou diversas músicas dos Beatles e as tornou geniais, desde as mais clássicas dos yeh yeh yeh (nem tão geniais, bora combinar) até os arranjos experimentais a partir do disco “Revolver”, mas em um trabalho próprio terminou por produzir uma obra bem abaixo do esperado. Para mim, o mesmo acontece com Duprat. Afinal o maestro brasileiro é responsável pelo arranjo de diversas músicas geniais, de diversos artistas envolvidos no tropicalismo. E outros além disso. Mas no seu próprio disco não há nada de muito genial, há muito clichê para falar a verdade, ainda que tenha seus momentos de qualidade inegável. Imagino que esse disco não tenha sido recebido com bons olhos na época em que foi lançado, pelo tom (pseudo?) experimental / instrumental dele e por estar vinculado a um processo contracultural. Com certeza foi um fracasso comercial. Até na contracultura (ha-ha-ha). "A Banda Tropicalista do Duprat" é um daqueles discos bastante comentado no meio pseudo-cult-musical, mas pouco ouvido de verdade e, na verdade, o pseudo-cult é justamente o comentário feito por outros comentários sem relação direta com a obra. E voltando à minha opinião engraçada, os Mutantes participam de quatro músicas e mesmo que produzam alguns bons momentos, não conseguem torná-los geniais. Duprat depois viria afirmar que não gosta muito desse disco, que o processo de formatação gráfica da capa foi cretino (ainda que eu ache essa capa muito bem composta) e que ele sofreu pressões na hora de compor o repertório. Sabe-se lá o quão isso é verdade. Simplesmente ele pode estar se ausentando da culpa. Não importa. Para mim o disco saiu próximo do que ele disse. É uma obra que grita na capa “EU SOU TROPICALISTA” e que no final nem é tanto assim. Não é um disco ruim, apenas tem um claro problema de repertório que distancia um pouco o resultado da proposta do movimento. Sem querer Duprat terminou soando meio careta, terminou sem se despir e jogar merda no ventilador.

Sobre as Músicas

1. Judy in Disguise (Bernard, John Fred, Wessle)

2. Honey (Bob Russel) / Summer Rain (J. Hendricks)

3. Canção para Inglês Ver (Lamartine Babo) / Chiquita Bacana (Alberto ribeiro, João de Barro).

4. Flying (Lennon, McCartney)

5. The Rain, The Park And Other Things (Duboff, Kornfeld)

6. Canto Chorado (Billy Blanco) / Bom Tempo (Chico Buarque) / Lapinha (Baden Powell, Paulo Cesar Pinheiro).

7. Chega de Saudade (Tom Jobim, Vinícius de Moraes).

8. Baby (Caetano Veloso)

9. Cinderella-Rockfella (M. Williams)

10. Ele Falava Nisso Todo Dia (Gilberto Gil) / Bat Macumba (Caetano Veloso, Gilberto Gil) / Frevo Rasgado (Bruno Ferreira, Gilberto Gil).

11. Lady Madonna (Lennon, McCartney).

12. Quem Será (Evaldo Gouveia, Jair Amorim).


Numa rápida olhada no repertório, notamos logo o primeiro equívoco do disco. Claramente essas músicas não representam como conjunto, a proposta do tropicalismo. De jeito algum. E porque chamar então de “A banda tropicalista do Duprat”????? Eu não entendo. E nesse sentido, é que eu passo a gostar mais do disco de Caetano antes resenhado, pois ainda que tenha alguns escorregões, o disco é o que se propõe a ser. A obra de Duprat não. E mesmo com um pé atrás, imagino que as releituras dele podiam transformar minha opinião. Nem se enganem, não transformou. Ainda assim (e isso pode soar contraditório com o que eu disse até então), o disco começa muito, muito bem mesmo e por acaso, com uma música ‘gringa’. “Judy in Disguise” só me remete a algum musical bem escandaloso ou alguém andando na Broadway com um guarda-chuva. Aquela coisa com muito néon, pessoas na rua, dançando em passos sincronizados, com direito a toda parafernália Hollywoodiana. O detalhe é que, na minha cabeça, toda essa seqüência de imagens passa numa televisão, posta por acaso no meio de uma rodinha de samba. Não, eu não tomei ácido antes de começar a escrever, mas é que por mais internacional que seja, há um enorme clima tropical no compasso. É Interessante e instrumentalmente magnífica. Continuando na trilha da gringolândia, temos “Honey” e “Summer Rain”. E definitivamente, se isso for tropicalismo, eu sou Alain Delon. Parece simplesmente uma trilha sonora de algum filme, mas nada Cinema Novo e sim “E o Vento Levou...” para baixo. Nessa linha. Se algumas músicas foram realmente forçadas no repertório, essas são as ‘mais mais’ de todas. Tem aquela suavidade que muitos devem gostar, mas que inserida nesse contexto só pode me causar náuseas (em outra situação eu até gostaria de parte delas). Ainda nesse parágrafo queria fazer uma ressalva sobre os dois covers dos Beatles, presentes nesse disco. Os dois completamente desnecessários ao meu ver. A instrumental “Flying” ficou muito parecida, na verdade. Apenas não está tão agradável de escutar e acredito que não tem o mesmo rebuscamento da original por mais que, a versão de Duprat pareça, numa primeira audição, mais complexa. Não se enganem. "Lady Madonna" é uma música que já não gosto com os Beatles. Cover então, não funciona mesmo. E não tem Mutantes que salve.

Sim, mas prosseguindo encontramos “Canto Chorado / Bom Tempo / Lapinha” um meddley que lembra arranjos de Chico Buarque (até porque Bom Tempo é uma canção dele) e não tem nada de vanguardista, mas é uma coisa boa de escutar. Rende vários momentos ótimos, para ser justo, mas não é tropicalista e não recebe uma roupagem diferenciada. É aquele lugar comum que também atinge “Chega de Saudade”, composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Uma Bossa Nova meio recauchutada, mas ainda assim Bossa Nova. Tropicalismo que é bom, nada. Outra música que segue quase os mesmos caminhos das duas anteriores é a última do disco: “Quem Será”. A única diferença é que essa nem agradável consegue ser. É apenas sem graça e as poucas intervenções dão um ar que o tropicalismo pode ser raso e pseudo como qualquer outro movimento. Achar que alguns sons de pessoas conversando, carros buzinando e afins vão tornar uma música vanguardista é subestimar demais quem está ouvindo, desculpa. Parece-me mais falta de respeito com toda concepção do movimento.

Ok, para não ser tão chato e Lellye não brigar comigo, vamos falar de Mutantes. Mas antes, preciso deixar claro que já comentei a infelicidade em "Lady Madonna", então nem vou mais abrir o bico em relação a essa. A participação começa em “Canção para Inglês Ver / Chiquita Bacana”. É aquela coisa bem parodia, bem mutantes. Mas parodia de qualidade e tropical ao modo que eles sempre fizeram. Tem a marca bem clara, tanto numa como na outra. Mas enquanto que, na primeira, parece uma parodia mais moldada, a segunda é o escracho total. E elas se complementam de um modo incrível, inclusive “Canção para Inglês Ver”, parece pegar a deixa de “Judy in Disguise”, deixa interrompida por “Honey / Summer Rain”. Enfim, em seguida, surge o que, para mim, é um dos melhores momentos do disco: “The Rain, The Park & Other”. Li em algum lugar sem importância que era uma daquelas músicas ‘one hit’ de uma banda “the” alguma coisa desconhecida (The Cowsills). Ela tem um estilo sessentista que me remete a algumas bandas meio desconhecidas da década em questão, tipo Love e Jefferson Airplane, em seus discos de 1967, “Forever changes” e “Surrealistic Pillow” respectivamente. Muito bom. Assumo que alguns me chamariam de paradoxal, por todo discurso “mas não é tropicalista e tal, tal, tal”. Mas nem adianta dizer, a contradição me persegue. “Cinderella Rockfella”, outra canção com participação dos Mutantes, só me remete a Pica-Pau e afins. Depois disso, essa resenha perde todo o respeito, eu sei. Mas em vários desenhos antigos, vez ou outra, tocava umas músicas legais, tipo uns jazz com vozes estranhíssimas. Essa música podia ser incluída num desses desenhos sem problemas. Adoro.

Enfim, depois de rodar e rodar e rodar, chegamos na parte realmente tropicalista do disco que surge em algumas músicas conhecidas, arranjadas sem os vocais. Se por um lado parece que está faltando uma parte da canção, por outro é possível se sensibilizar mais facilmente com o arranjo montado, afinal todos os holofotes ficam virados para esse ponto. E provavelmente essa era a intenção de Duprat. Na verdade, eu ainda não me decidi se isso é uma coisa que me incomoda ou não. Pois devia, né? Sinto a falta da voz de Gal em “Baby”, mas não sinto falta da de Gilberto Gil em “Ele falava sempre nisso / Batmacumba / Frevo rasgado”. É complicado. Talvez não seja bom generalizar, afinal um dos pontos positivos do disco é a capacidade dele de se transformar, de possuir um conceito (ou quase isso) fincado sobre diferentes facetas. E infelizmente, algumas das quais nada tropicalistas e nem por isso: nada interessantes. Acontece com todos arranjadores até com velhos que seguram penicos em capas de discos emblemáticos por aí.

domingo, 1 de outubro de 2006

Une Femme est Une Femme

Estou aprendendo inglês por música, espanhol por cursinho e francês por osmose.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Jornalista

ou a eterna busca por uma tragédia para chamar de sua.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Capas

I

"Tem certeza que vcs sabem fazer uma capa psicodélica?"
Sunshine Superman (1966)


"Pode crer que essa vibração vai pegar..."
Are you experienced? (1967)


"Cara, se o Hendrix fez, a gente tem que fazer também"
Safe as Milk (1967


"Vocês são tudinho uó"
Caetano Veloso (1968)


"Tô achando que vai ficar meio homossexual".
Perfeitamente, justamente quando cheguei (1972)


"Essa galera se passa: a gente faz cara de discreto e tu faz cara de quem ta gozando" Um passo a frente (1973)

II

A capa começou simples e cheia de estilo...
Surrealistic Pillow (1967)

...aí virou profundamente conceitual...
Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band (1967)

...naturalmente vieram as imitações baratas...
Their Satanic Majesties Resquest (1967)


...fizeram pastiche...
We're only in it for the Money (1968)

...não demorou muito até chegar ao terceiro mundo...
Tropicália ou Panis et Circencis (1968)

...e depois de rodar geral voltou pra casa com a maior cara de mundiça.
Preservation Act 1 (1973)

terça-feira, 29 de agosto de 2006

Eros Motel

Pai e filho seguiam no carro sem trocar grandes olhares. O filho dirigia. Quando passaram por um desses motéis enormes, com cara de Shopping Center e neon visível há dezenas e dezenas de metros de distância, o filho não se conteve e logo começou a contar vantagens:

- Fui uma vez aí, tem quarto com sauna, boate, espaço gourmet, banheira...

O pai interrompeu levemente desinteressado, usando da rispidez típica de quem fuma charutos cubanos:

- Para mim, motel só precisa ter uma cama.

terça-feira, 22 de agosto de 2006

Caetano Veloso, 1968


(Publicado originalmente no Overmundo)

"Você está por fora, Caetano. Veja o programa do Roberto Carlos. Ele é que é forte. O resto está ficando um negócio chato, tão chato que prefiro cantar músicas antigas. Largue esse violão e cante com uma guitarra. O violão é muito pouco para você! Escolha um instrumento que tenha o mesmo grito, que tenha o seu gesto".

De Maria Bethânia para seu irmão Caetano Veloso, ano de 1967 (CALADO, Carlos, Tropicália: A história de uma revolução musical, Editora 34). Citação encontrada na internet e obviamente de veracidade questionável. Não cabe a mim investigar nada e a preguiça também não colabora. Ficamos na boa dúvida, por fim.


Sobre o Álbum

Eu não sei bem o que Caetano pensa hoje sobre esse disco, com uma carreira tão extensa deve ser difícil se ater em particular a um único objeto antigo, nem sei direito o que ele pensava quando o lançou em janeiro de 1968. Já ouvi dizer ou li em algum lugar sem importância, que foi, para ele, o mais próximo que podia produzir a partir do que foi sugerido em “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha sem perder de vista todas as reverberações emitidas ao mundo da arte por Hélio Oiticica. Provavelmente também foi a condensação mais próxima, em termos de inventividade e postura, do que vinha sendo mostrado, entre outros, pelo “Sgt Peppers” (1967) e Revolver (1966), dos Beatles, pelo “Are you experienced?” (1967), de Jimi Hendrix, pelo “Piper at Gates of Dawn” (1967), do Pink Floyd, pelo "Sunshine Superman" (1966), do Donovan e pelo “Pet Sounds” (1966), dos Beach Boys. A aproximação entre distintos estilos musicais, colocando instrumentos orientais unidos a guitarras elétricas a todo vapor influenciaram naturalmente a nova estética adotada por Caetano e pelos tropicalistas (em especial Os Mutantes), se interligando e sentando ao lado, no campo das referências, da bandinha de pífano de Caruaru, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Vicente Celestino e toda cultura popular brasileira. As cabeças estavam realmente piradas, o rock se legitimava como arte, as vielas entre regionalismo e universalismo devoravam umas as outras: surgia a vontade de misturar tudo, de mesclar isso com aquilo, de se deixar melar pelas mais diversas influências. As idéias de Oswald de Andrade estavam mais atuantes do que nunca. Antropofagia era a palavra e a atitude da vez, mas os nomes eram outros: ao invés de Oswald, Mário de Andrade, Pagu ou Tarsila do Amaral, tínhamos Gilberto Gil, Torquato Neto, Gal Costa, Rogério Duprat e Tom Zé. Tínhamos Caetano e toda a caretice de “Domingo”, seu primeiro disco gravado juntamente com Gal Costa, podia agora ser esquecida. Aqui temos outro Caetano. Nada de violãozinho na mão brincando de João Gilberto e cantoria comportada, bem modada e retrógrada, onde todas as canções soam como uma só. Nada disso. Aqui temos a Tropicália, a brincadeira, o desbunde. Nada de Bossa Nova, nada de Jovem Guarda. Ou melhor, um pouco de cada coisa, tudo misturado num acorde dissonante. E como tudo que é realmente novo choca simplesmente pela falta de ferramentas para explicar, a Tropicália não precisa de adornos ou caraminguás, faz postura por ela mesma, não precisa de idiota algum para dizer isso.

Ainda assim, venho aqui para dizer e voltando ao que não sei, também não sei o que os críticos musicais da época escreveram e falaram sobre esse disco, afinal são poucos os detalhes históricos que conseguem perpassar os anos, sem serem esquecidos em algum dado momento. Provavelmente os mais conservadores devem ter criticado levando em conta o sentido negativo da palavra. Devem ter se chocado facilmente, acostumados a escrever dentro das expectativas do que era produzido no Brasil até então. Muitos dos jovens ditos engajados também não viram a Tropicália com bons olhos. Associavam o Rock and Roll com imperialismo e não aceitavam sua introdução na música popular brasileira. Quase armoriais de tão púdicos (levando em conta que Ariano Suassuna, em sua aula-espetáculo, sempre diz que os jovens que empunham guitarras elétricas podem passar pra metralhadoras sem nem se darem conta). Hoje ninguém se choca mais e os críticos terminam por ser excessivamente ufanistas e... apenas isso, o que é mais perigoso. Não os levem a sério e falo sobre mim também. Somos um bando de pretensiosos sem noção alguma. Mas, continuamos mesmo assim. Na verdade, a maioria das pessoas em 1968 não deve ter entendido nada. Nada do que fazia Caetano, nem Duprat, nem Os Mutantes, nem Tom Zé. Assim como não entendiam nada do que Glauber Rocha queria dizer. Até hoje, muitos não entendem. Manter um nível intelectual dentro de uma sociedade como a brasileira termina por se tornar elitista invariavelmente. Foram poucos os que conseguiram romper essa barreira e se tornar “cabeça” e popular ao mesmo tempo. Chico Buarque que o diga. Mas isso não importa. O artista não tem nada a ver com isso. Esse disco, intitulado só como “Caetano Veloso” mostra para o que veio desde a capa produzida pelo artista gráfico Rogério Duarte. Seria um quadro qualquer, extremamente colorido, de uma mulher seminua e um dragão, senão fosse pelo rosto de abuso de Caetano que surge quase como uma colagem em meio a isso, colagem que diante de nossos olhos para o vinil se comporta como espelho. É o primeiro registro tropicalista. Lançado meses antes do disco-manisfesto “Tropicália ou Panis et Circenses”. Meses antes de Gilberto Gil ou Tom Zé ou Duprat lançarem seus também discos tropicalistas. Caetano estava um passo a frente, estava com a cabeça afundada dentro da nova estética ainda que muitos digam que ele simplesmente aproveitou o momento histórico e que a Tropicália aconteceria do mesmo jeito com ou sem sua presença. Nunca iremos saber, nunca iremos chegar em um denominador comum partindo dessa discussão infundada e essa vibe morte do autor a gente pode discutir depois. Esse pode não ser o disco mais tropicalista, mas é o primeiro e isso deve ter algum valor histórico. É dele que emanam as sugestões e intervenções que viriam a se concretizar posteriormente nas mãos e vozes dos mais diversos artistas. É como se fosse a fonte brasileira que dá os primeiros suprimentos para o surgimento de uma floresta tropical. Depois a fonte pode até ser esquecida, afinal a floresta já tem vida própria e produz novas fontes muito mais interessantes. Sem dúvida, esse não é o melhor, nem o disco mais tropicalista, mas é o primeiro e isso deve ter algum valor histórico.


Sobre as músicas

1. Tropicália (Caetano Veloso)
2. Clarice (Caetano Veloso e Capinam)
3. No dia que eu vim-me embora (Caetano Veloso e Gilberto Gil)
4. Alegria, alegria (Caetano Veloso)
5. Onde andarás (Caetano Veloso e Ferreira Gullar)
6. Anunciação (Caetano Veloso e Rogério Duarte)
7. Superbacana (Caetano Veloso)
8. Paisagem útil (Caetano Veloso)
9. Clara (Caetano Veloso)
10. Soy loco por ti América (Gilberto Gil, Capinam e Torquato Neto)
11. Ave Maria (Caetano Veloso)
12. Eles (Caetano Veloso e Gilberto Gil)

Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis, escreveu uma carta ao rei: Tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce. E o Gaus da época gravou...” Tropicália (a música) começa com a improvisação do baterista Dirceu fazendo uma alusão à carta de Pero Vaz de Caminha e alguns sons bem estranhos acompanham sua jornada. E só para constar, ‘Gaus’ era o técnico de som do estúdio onde o disco estava sendo gravado. Essa música não poderia começar de outra maneira, afinal no jogo de referências a que se propõe, o ponto de partida só poderia ser este. E esse é um disco muito referencial. Sejam os heróis sob uma base de ironia em “Superbacana” ou a pseudo-imitação da pronúncia vocal de Nelson Gonçalves em “Onde Andarás”. Obviamente só sei disso porque li em algum lugar anteriormente, afinal eu nunca ia saber que Caetano estava fazendo referência à pronúncia vocal de Nelson Gonçalves em qualquer música que fosse. Faça-me favor. Eu só noto uma pronúncia vocal estranha de fato. Por sinal, uma música de Ferreira Gullar e Caetano Veloso, em teoria, só poderia chamar a atenção. Só em teoria mesmo, porque “Onde andarás” passa quase que despercebida. Quando não é passada de propósito. E sinceramente não sei o que é pior. A música tem algo de sujo que atrapalha o entendimento da letra e convenhamos que a letra não é lá essas coisas. Mesmo que fosse uma música limpa, não íamos ter muito o que escutar. Falemos de outras músicas então. “Superbacana”, por exemplo. Essa é uma canção divertida pacas, uma metralhadora referencial e imagética, que só tem como problema o fato de ser curta demais. É a mais curta de todo disco. Tudo bem que algumas más línguas dizem que enjoam fácil dela. Eu, particularmente, acho difícil de enjoar. E eu poderia cair naquele trocadilho péssimo e chamar a música de superbacana, mas eu resolvi me conter dessa vez. O humor refinado desses versos não merecem isso. Nem eu. Nem vocês. Vocês eu não sei.

Voltando a Tropicália, é importante dizer que essa canção, assim como Alegria, Alegria, possui uma nostalgia inerente a ela e maior do que podemos enxergar em um primeiro momento. Trata-se de uma nostalgia tão grande, e ao mesmo tempo tão melancólica, que atinge perfeitamente até os que não viveram a época em que tais músicas foram lançadas. É possível escutar os versos e sentir cada detalhe do final da década de sessenta; essas duas músicas, em especial, parecem conseguir recriar, reproduzir sozinhas todo o ano de 1968. E todo clima. Além de nos provocar uma saudade do que não vivemos, da geração o qual não fizemos parte, mas que ainda assim nos aproximamos naturalmente. Essas duas músicas não possuem todo teor político e dramático de Geraldo Vandré, ainda que possuam seu próprio tom quanto a posições políticas. Há uma leveza lançada através de imagens e idéias, uma atrás da outra, sem cessar. E talvez esse bombardeio não seja conseqüência apenas da estética das canções, mas sim do fato de sermos crias da Geração Videoclipe que transforma todos os sentidos em produtos imagéticos. Tropicália e Alegria, Alegria fazem uma incrível diferença no conceito (e na qualidade) do disco com um todo. Não só por serem os símbolos da estética recém nascida e já quase morta que Caetano buscava. Não só por isso. Essas duas músicas surgem como um desvio da esquerda presa a conservadorismos estéticos, ao mesmo tempo que se contrapõe à direita autoritária. Traça um caminho único, próprio. E talvez Caetano não tivesse noção disso até ser vaiado enquanto cantava “É Proibido Proibir” com Os Mutantes como banda de apoio, no III Festival Internacional da Canção.

Por outro lado, pra quem esperava que o disco tropicalista de Caetano fosse uma seqüência de músicas esteticamente coerentes às idéias do movimento e consequentemente sem coerência alguma, pode achar “Clarice” um pouco distante da proposta. Até Caetano achava para falar a verdade. Mas não se enganem. “Clarice” não é uma música despretensiosa como parece ser. A melodia carrega uma tristeza imensa, conta a história do recato, do pudor através da inocência de uma triste garota que termina por se despir. Tudo carrega uma melancolia e um mistério. A própria música brasileira estava se despindo naquele momento histórico. O Tropicalismo era isso, era a possibilidade de ficar nu. E foi o que Clarice fez. A outra mulher do disco é “Clara”. É uma música curta, que não me emociona, mas que obviamente reconheço o seu valor. Na verdade, gosto de alguns momentos, principalmente a troca vocal entre Gal e Caetano e algumas quebras de ritmo, mas a repetição de um mesmo nome várias vezes sempre me irritou. E com Claaaara, Claaaara, Claaaara não poderia ser diferente. Temos ainda Maria, em “Anunciação” e em “Ave Maria”. A primeira tem uma letra boa, realmente boa mas que terminou encaixada numa melodia de qualidade duvidosa. E novamente tem a repetição irritável várias e várias vezes: Maaariaaa, Maaariaaa. Já a segunda é o tipo de música que não muda a vida de ninguém, mas que tem uma melodia que me agrada por algum motivo o qual não saberia explicar direito. De qualquer maneira, não merece mais comentários. Vamos adiante. Falemos de “Soy loco por ti, América” agora. Não sei de onde surgiu meu abuso com essa música, provavelmente da abertura da novela, em especial porque fazia trilha de uma jovem que sonhava na América do norte. Só pode. É difícil uma música se tornar tema de novela e depois não se tornar amada e tocada por metade da nação e, consequentemente, odiada por mim. No meu mundo perfeito ninguém agüentaria escutá-la todo dia. E isso se aplica pra quem assiste e pra quem não assiste à novela. Porque invariavelmente alguém estará assistindo e invariavelmente você vai terminar escutando. E escutando. E escutando. E escutando. Caetano cantando não convence. Misturando espanhol com português fica mais tosco ainda. Essa música é brega. Brega. Brega até dizer basta e algumas pessoas ainda vêm dizer que é tropicalista pra burro, que é uma homenagem a Che Guevara que havia morrido no ano anterior, que proclama a revolução comunista na América Latina. Viva a América Latina, mas poupem-me. Está muito mais pra Carmem Miranda do que qualquer outra coisa. E que se dane Che Guevara, a pseudo-revolução e essa música. Não me importo, vamos adiante.

Na seqüência ilógica da minha cabeça surge “No dia em que eu vim-me embora”, uma canção meio autobiográfica que ultrapassa os limites da história pessoal de Caetano ou Gil. Da história pessoal do tal “eu-lírico” seja lá quem ele for. A autobiografia nesse caso é a biografia de meio mundo de pessoas. Não estou chamando de clichê, apenas de comum. É uma música que se sustenta no silêncio e no não-dito de seus personagens. A mãe, a irmã, o pai... o próprio Caetano que já não sabe o valor dos sonhos que sonha e não tem mais a certeza sobre os caminhos que escolhera a trilhar. E quantas vezes questionamos nossas atitudes enquanto as construíamos? Isso é o tipo de coisa que acontece o tempo todo. Vamos caminhando vagarosamente. “Paisagem Útil” é uma música interessante, parece dar todo tom de uma canção qualquer, até que mostra saídas criativas tanto na letra como no ritmo. No arame que os prende. É uma pintura impressionista e surrealista, pintada através de olhos incomuns, mas extremamente sensíveis. Há algo de surreal impresso numa realidade sugestiva, uma dança sem sentido de Monet com Salvador Dali. Por fim, temos a última música do disco: “Eles”. Trata-se do grande momento tropicalista. Não é tão famosa quanto às irmãs "Tropicália" e "Alegria, Alegria", mas segue a mesma estética e a leva ao ponto que precisa. Experimentação na medida. Crítica política na medida. Melodia na medida e Mutantes nos instrumentos pirando. E pirando. E pirando. Tem um clima sombrio, uma guitarra descompromissada e ótima; é um dos melhores momentos do disco e da estética tropicalista em si. Até na falta de rima a música se excede. Caetano não podia fechar melhor sua obra. E como ele mesmo diz: Os Mutantes são demais.

Documentação extra:

Contracapa do disco – Caetano Veloso

Que maravilhoso país o nosso, onde se pode contratar quarenta músicos para tocar ‘um’ uníssono.(Miles Davis, durante uma gravação).

Antes havia Orlando Silva & flautas e até mesmo no meio do meio dia. Antes havia os prados e os bosques na gravura dos meus olhos. Antes de ontem o céu estava muito azul e eu e ela passamos por baixo desse céu, ao mesmo tempo com medo dos cachorros e sem muita pressa de chegar do lado de lá.do lado de cá não resta quase ninguém. Apenas os sapatos polidos refletem os automóveis que, por sua vez, polidos, refletem os sapatos assim per omnia até que (por absoluta falta de vento) tudo sobe num redemoinho leve, me deixando entrever um resto de rosto ou outro, pedaços, amém. Marina sabe a história do pelicano etc. etc. o peito aberto e rasgado etc. etc. mas que nada: quando a gente não tem nenhuma necessidade de ir para os States não há mesmo mais esperança. Eu gostaria de fazer uma canção de protestos de estima e consideração, mas essa língua portuguesa me deixa rouco. Os acordes dissonantes já não bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez transatlântica. E, no entanto, Ele é um gênio: quem ousaria dedicar este disco a João Gilberto? Quantos anos você tem? Como é que você se chama, quando é que você me ama, onde é que vamos morar? Os automóveis parecem voar, os automóveis parecem voar por cima (mas mais alto que o Caravelle) dos telhados azuis de Lisboa, dos teus olhos, dos mais incríveis umbigos de todas as mulheres em transe, dos teus cabelos cortados mais curtos que os meus, meu amor, porque eu não quero, porque eu não devo explicar absolutamente nada.

P.S.: Gil, hoje não tem sopa na varanda de Maria.

Caetano Veloso, em 1968, no III Festival Internacional da Canção após ser vaiado, enquanto cantava "É Proibido Proibir":

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu!

Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso!

Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem... se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático, mas é incompetente.
Deus está solto!

Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver.

Chega!