quarta-feira, 16 de julho de 2008

1, 2, 3

1.

Desde muito jovem tomei a decisão de não ter filhos. Não por uma aversão simples a crianças, nem para controlar a natalidade do país, mas pelo simples fato de meus irmãos serem coelhos e se multiplicarem antes que eu pudesse ter alguma chance. Só para vocês terem uma idéia, aos quinze eu já tinha 3 sobrinhas e um sobrinho. Dadas as circunstâncias, meu espírito paterno foi dizimado justamente por ter sido posto em prática antes da hora, alavancado pela precocidade da minha irmã e pela diferença absurda entre nossas idades. Puta merda, aos quinze eu já era tio quatro vezes. Minha sobrinha mais velha era como uma irmã mais nova e o seu pai sempre foi uma figura muito presente, mas a do meio e, em especial, a mais nova eram claramente minhas filhas e filhas do meu pai. Levando em conta que o pai de ambas passou vários anos na prisão, eu e meu velho tivemos de ser tios, pais, avós, referência masculina, tudo ao mesmo tempo agora. Infelizmente, por outro lado, mantive pouco contato com o meu primeiro sobrinho, filho do meu irmão e do carnaval de Olinda. O mais novo da trupe, Rodrigo em minha homenagem, é uma graça. Fala, fala, fala, fala, fala e quando se cala, dorme. Semana passada, levei todos para assistir Wall-E no cinema. Foi uma farra.


2.

Poderia continuar fofinho até o fim do texto, mas agora vem a parte punk da história. Digo logo que é bem destoante da primeira. Há vários anos, toda vez que pensava na possibilidade de perder as pernas ou de ficar cego, seja por acidente, seja por derrame, seja por um tiro, naturalmente me vinha a decisão que preferiria morrer. Assim mesmo, pei-buft. Era algo muito certo para mim. Em caso de incêndio, chamem os bombeiros; em caso de acidente, me deixem morrer. Lembro até de um sonho antigo e recorrente em que eu acordava numa cama de hospital (e era o Hospital das Clínicas, por sinal) sem movimento até o pescoço e na primeira visita do meu melhor amigo, eu pedia para ele me levar para o último andar de um prédio e me jogar de lá. Como um bom amigo, ele o fazia sem pestanejar. Estranho que não acordava desse sonho como se estivesse no pior dos pesadelos, sequer tinha o espasmo comum a quedas e tropeços, mas sim como se o devaneio seguisse a naturalidade que eu impunha, obviamente em pensamento, para minha própria vida. Então, aconteceu que semana passada perdi o movimento das pernas e fiquei cego. Rá, mentira. Semana passada, por algum motivo, Gabriela tocou no assunto e me questionou o que eu faria se acontecesse o pior. Novamente defendi que se perdesse minhas pernas ou ficasse cego, preferiria morrer e ponto. 'Quem sabe na próxima vida', pensei. Ela ficou chocada com a resposta e infelizmente tenho de dizer que mudei de opinião.


3.

Comecei esse post porque saí de O Escafandro e a Borboleta (2007), de Julian Schnabel apaixonado pelo Jean-Do (e pelo Mathieu Almaric), decidido a ter um filho - não agora - e me achando estúpido por ter sido, por tanto tempo, superficial diante de uma situação tão delicada. É incrível como podemos ser tão estúpidos num dia e sacar toda estupidez na manhã seguinte. Pois é, nos restava além do olho, a imaginação e a memória. Johnny Vai à Guerra (1971) não me ajudou tanto nesse sentido: o tato como única/última percepção e as lembranças da personagem título só me trouxeram uma angústia sem fim, uma vontade de morte, e não vou buscar similaridades entre ambas as obras apesar da tentação fácil de fazê-lo. A experiência do Dalton Trumbo (também roteirista de Spartacus) me foi destrutiva, muito destrutiva, daquelas que corroem internamente durante a projeção e que permanece por um bom tempo depois (algo que Lars Von Trier sempre tenta), enquanto a do Schnabel me inundou de uma alegria despreocupada pela vida. Acho que as reações são opostas. Pois é, o Escafandro e a Borboleta é um filme triste, mas que me fez um bem danado: estava sozinho e chorei seis vezes. Uma delas só pela aparição do Max von Sydow (que você deve lembrar dos filmes do Bergman). Poderia até dizer que achei a obra imperfeita, com cenas simples e profundas seguidas de alegorias redundantes ou mesmo poderia criticar o excesso de tiques-movimentos-de-câmera-plongé-contra-plongé, mas dentro de uma experiência intensa a ponto de soluçar e ficar com os mesmos olhos embaçados do personagem pós-coma, os detalhes técnicos são o que menos importa. Ainda bem que, diferente da primeira cena, o final do filme se encaixa num desses detalhes que continuam detalhes e não trazem afeto. Deu até tempo de me recompor e sair com a velha cara blasé de sempre.

2 comentários:

Maíra Egito disse...

E quem não se apaixonou?
Por acaso vim bater aqui e por um outro acaso, assisti ao Escafandro e a Borboleta ontem...com Lua e Tainá (essa última não sei se conheces). Falamos até de tu, mas acho que foi pq eu vi tua roommate...
Engraçado que, saindo da sessão, comentei logo com as meninas sobre um outro filme que tinha ouvido falar, onde um soldado(?) perdia tudo e mais um pouco, só ficava com um sentido, que eu pensava que era a audição (somente o tato parece demaaais).

Eu quase não consegui me recompor no final. E confesso que apesar de toda beleza, um apertinho ficou.

Beijos,

Marco Bonachela disse...

gostei do post.
saudade da recomposição blasé.
velhos hábitos à prova?!