quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Ultimamente

Depois da famosa nostalgia pelo que não vivemos, chegamos ao cúmulo da nostalgia por antecipação.

A publicidade venceu!

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Método

"Geralmente, começo as minhas lições sobre o Método Científico dizendo aos meus alunos que o método científico não existe. Acrescento que tenho obrigação de saber isso, tendo eu sido, durante certo tempo pelo menos, o único professor dessa inexistente disciplina em toda a Comunidade Britânica. Há vários sentidos para afirmar que minha disciplina não existe, e vou mencionar alguns deles. Em primeiro lugar, minha disciplina não existe porque, geralmente, as disciplinas não existem. Não há disciplinas; não há ramos do saber, ou melhor, da investigação: apenas existem problemas e o impulso de resolvê-los. Uma ciência como a botânica ou a química (ou digamos a físicoquímica ou a eletroquímica) são, asseguro, uma mera unidade administrativa.

[...]

E se tomando a inexistência das disciplinas, entretanto, o Método Científico ocupa uma posição peculiar ao ser incluída como menos existente que as outras disciplinas já inexistentes.

[...]

Acredito que não há mais que um caminho para a ciência e para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar-se com ele, viver feliz até que a morte os separe, a não ser que encontre um problema mais interessante ou, ao menos, naturalmente, que obtenha uma solução. Mas ainda que encontre uma solução, pode descobrir, então, para sua satisfação, a existência de toda uma família de encantadores, se bem que talvez difíceis, problemas-filhos, para cujo bem-estar podes trabalhar, com um objetivo, até o fim de seus dias".

Karl R. Popper,
Acerca da Inexistência do Método Científico - Conferência proferida na reunião de The Fellows of the Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences em Stanford. Novembro, 1956.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

comédia romântica de baixo orçamento

Certa vez, perto dos trinta, Verinha se deu conta que sempre se apaixonava nos últimos meses do ano, outubro, novembro, meses que escancaravam os errantes finais de ciclos, ansiedade, universidade, mudanças de visual, arrependimentos, consumismo, listas dos piores, despedidas, desespero, projetos, nostalgia. Tinha a impressão dúbia de que a partir de setembro rolava o alinhamento cósmico em que as pessoas atraentes saíam de suas tocas, enquanto que ela se desfazia de suas paredes, muros e armaduras, provavelmente por, justamente nessa época, perceber a melancolia restrita aos domingos se alastrar aos outros dias. Era preciso amenizar o clima pesado, esquecer os protocolos do horóscopo e havia certo desespero-carmem-maura nisso. Na falta de outra escolha, aproveitava o fervor o quanto podia, vivia toda a vida em quatro ou cinco dias, mas bem confessava que de fato não durava muito. Antes do Natal já tinha certeza do fracasso, se lançava na farra familiar, virava a noite bebendo, comendo, reclamando e fugindo das perguntas anuais das tias velhas. Eventualmente amanhecia o dia embriagada assistindo Procurando Nemo e chorava horas após erguer e derrubar uma montanha de latinhas de cerveja. Abria o olho esquerdo, pois o direito estava grudado de remela, e pedia a Deus para não estar caída nua dentro do banheiro.

Desde os vinte e cinco, Verinha decidira trocar a auto ajuda que ganhava como brinde da paquera com o dono da banca de revista pelas composições barra-pesada do Paulo Vanzolini. Sentia desde então uma vertigem terrível, um medo por antecedência, como se o corpo rígido, de forma autônoma, antevisse e se protegesse para o ano que estava por vir. Todavia, quando pensava na contagem regressiva puxada pelo Faustão, quando tinha pesadelos onde ficava trancada num aposento com todos os artistas do show da virada, se tornava permissiva só pelo medo de ficar sozinha. Se pudesse fazer um testemunho de sua condição, escreveria em alguma pedra fina que enxergava a si como se estivesse presa a um labirinto de corredores novos, que apesar de levarem naturalmente a caminhos desconhecidos, eram feitos de azulejos e dores antigas, labirinto que se projetava a partir do vício de quem se encontra entre o amor platônico que doa a um e o amor hedonista que espera receber de outros mil. A própria vive pensando em desistir, mas na hora do gatinho, Verinha, mesmo tendo vivido todas decepções amorosas, mesmo se envergonhando da vontade de escrever melodramas cinquentões, sente o peso das olheiras e termina admitindo que espera ansiosa a chegada do reveillon em que terá a oportunidade de, vestida de vermelho, abdicar dos mil para encaixar seu corpo no abraço quente de apenas um.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Nego Fugido (Brasil, 2009), de Cláudio Marques e Marília Hughes


Há uma breve passagem em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, livro de cabeceira de sete dentre dez adolescentes nerds, em que as personagens dos civilizados Bernard Marx, o angustiado protagonista, e Lenina, sua acompanhante momentânea, decidem visitar uma reserva de selvagens - espaço remanescente de uma cultura passada, mantido simplesmente a caráter arqueológico, quase como uma lembrança - ou materialidade hipnopédica - dos motivos pelos quais os homens decidiram pela racionalidade extrema a serviço da civilização. A reserva é um lugar cercado por arames elétricos em que animais e homens convivem, onde estes últimos ainda se comportam como vivíparos, constituindo laços familiares, se dedicando aos cultos, aos mitos e à religião, caçando e sendo caçados, completamente distantes (ou ausentes) da distopia sobre o qual o livro se debruça (e, obviamente, ironiza). Só para os desavisados não ficarem boiando, é preciso dizer que Huxley destrincha uma sociedade ultramoderna que conseguiu vencer a infelicidade, não só abdicando da verdade, da arte e controlando minuciosamente a ciência, mas erguendo o fordismo como ideologia dominante e baseando sua hierarquia num método de predestinação social imputada em bebês gerados em laboratório. Cada um é obrigatoriamente para o que nasce, não existem insatisfeitos nos diversos patamares da estrutura social e, para usar dos termos corretos, os indivíduos não mais nascem de barrigas e sim, decantam de frascos em frascos. Além disso, os amantes são conquistados sem flerte, de maneira estritamente pragmática, e trocados regularmente, determinando o fim das vicissitudes do amor, do ciúme e afins, de modo que caso sejam acometidos por uma paixão violenta são expostos a um tratamento de choque.

Todos prosseguem suas vidas levemente dopados, consumindo incessantemente uma pílula sem ressaca chamada soma: o substituto ideal do álcool e do cristianismo, a alienação saudável e sem culpa. Como frutos deste contexto, Bernard e Lenina decidem visitar a reserva: ele buscando uma resposta por estar angustiado numa sociedade perfeita, ela querendo um entretenimento fugaz através da aproximação com o exótico. Após um sucinto city tour no pueblo, ambos são convocados a permanecerem numa praça onde será realizado um ritual do qual desconhecem qualquer princípio. Inicialmente Lenina mostra um tremendo interesse, sente-se bem e acolhida com o som dos tambores, fecha os olhos, imagina o Brave New World ao qual pertence, mas vai mudando a expressão a medida que o ritmo acelera, se tornando mais frenético, carregado de um tom sombrio pouco melodioso. Em seguida aparecem figuras mascaradas e pintadas ao ponto de perderem qualquer semelhança com o corpo humano e o ritual vertiginosamente se distancia do límpido universo da mulher: surgem oferendas religiosas, animais peçonhentos arremessados, um jesus crucificado é erguido, o candomblé reverenciado, os participantes se entregam aos gritos de horror. Por fim, temos a nudez de um jovem rapaz, a dor e devoção que o leva até o sacrifício banhado de sangue em troca da fartura na próxima colheita. Rapidamente, o olhar de ambos forasteiros retorna à moral e parâmetros de seu mundo plastificado e asséptico, todos os gestos e imagens são traduzidos como ofensas à vitória da civilização. Lenina esconde o rosto com as mãos, soluça, estremece: quase sem ar pelo absoluto não costume do sofrer, sente falta de sua dose diária de soma. Havia esquecido as pílulas na pousada.

Pois é, me prolonguei em todo esse epílogo, quase como um saltador que não cansa do trampolim, só para assumir que quando assisti ao curta Nego Fugido, de Cláudio Marques e Marília Hughes me senti arremessado para dentro desta passagem do livro de Huxley, sem perder de vista os inúmeros amigos e documentaristas que direcionam seus olhares curiosos ao mundo que lhes é estranho, exótico, a tudo que para o Eu se metamorfoseia enquanto Outro. Ora se banham num proto-assistencialismo culpa burguesa, ora procuram reinventar ou referendar os cacoetes do registro da alteridade. O filme retrata a interação de dois jovens brancos de classe média, ele é ator, ela carrega uma câmera nas mãos, no povoado de Acupe, no município de Santo Amaro da Purificação no Recôncavo Baiano, durante a apresentação do Nego Fugido, manifestação popular existente desde o século XIX, que procura recriar as lutas da resistência negra contra o regime escravocrata. Uma espécie de teatro de rua de forte repasse histórico oral. O rapaz é impelido a participar da manifestação, pintar o rosto, se misturar ao Outro pedindo dinheiro às sinhás para comprar cartas de alforria. Pelo que consta, a apresentação, apesar de remeter a uma tradição que questiona as consequências da abolição desvinculada de políticas públicas, passou, de fato, por algumas reformulações turísticas amenizantes, o que é plenamente plausível numa sociedade consumista, ainda que os arianos suassunas da vida esperneiem com indignação. Daí são esculpidas duas posturas, a do rapaz que se envolve com a manifestação, de modo a negar sua presença de estrangeiro, problematizando a distância entre o eu e o outro e vislumbrando os limites da interação, interpenetração e falseamento, e a da menina, que afirma seu Eu e firma distância, se assustando com o Outro ao ponto de criar uma repulsa a tudo que acontece a sua frente. Assume, resignada, seu próprio preconceito.

Para além do que já foi esboçado, talvez o aspecto dialógico que tenha se imposto em meus olhos como punctum de Barthes seja o fato do curta ser bastante astuto em seu papel de ficcionalizar a documentação e documentar a ficção. É por este estreito e perigoso caminho que me aparece a reflexão mais importante, afinal, para além das duas personagens, há um terceiro elemento presente, a equipe, que neste caso parece abandonar completamente a velha ilusão cinematográfica do apagamento. No filme, a mediação para com o espectador é regida num interminável direcionamento do campo, do fora de campo e do contracampo virado para a câmera. Todos interligados por uma montagem peculiar: a relação de olhares das personagens ficcionais, dos atores reais do teatro, do espectador e da equipe assumem uma dimensão extremamente complexificada, onde o ritmo de 'cortes' intensos e violentos adensam a instabilidade das posições de cada um, possibilitando pequenas fugas de atitude. Seja como for, ao final, todos parecem se encarar veemente. Resta apenas uma pergunta no enlace desta teia, pois fiquei matutando com qual das posturas das personagens criadas a equipe se identifica mais, qual das duas elege como espaço de fuga primeiro, levando em conta que a escolha da manifestação de Acupe, independentemente das pré-relações, também os coloca como forasteiros. Posso supor uma solução equivocada: a existência em si de Nego Fugido enquanto curtametragem parece nos responder que provavelmente todas as posições são assumidas simultaneamente e de forma autoconsciente, de modo que a fuga da equipe se transmite por meio do olhar desconfiado da garota, da língua vermelha pintada do rapaz, da câmera nervosa, do espectador intrigado. Sem dúvida, todos envolvidos neste projeto deviam saber que "pra filmar aqui tem que ter money, money sinhá!!” e, acredito que, ao final do filme, todos ficamos sabendo também.

Amante

Desde que começou a escrever sobre cinema, pensa na crítica como uma arte do encontro, do encontro fortuito, não agendado, o que traduz um caráter literário de crônica em praticamente tudo o que escreve, pois sempre termina misturando quem era no sentindo amplo e quem estava sendo no sentido micro para melhor entender dentro da cabeça o filme com o qual se deparou. De fato, nada contra, mas ele nunca foi muito da turma da terapia, era pobre, morava longe, não tinha grana, daí jamais quis se autoinstituir como terapeuta que coloca uma obra de arte no divã e a analisa clinicamente. Se pudesse escolher uma dimensão, escolheria a do amante sempre confuso sobre a duração da noite de prazer, sem saber se o encontro continuará encontro por semanas, anos, décadas ou se, sendo o último, cessará em poucas horas. Não hesita: se entrega, ama, inventa e mente. No outro dia, se for o caso, veste a roupa e vai embora.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Overmundo como parâmetro de uma crítica digital?

(Ensaio publicado originalmente no livro coletivo 'Protocolos Críticos', 304 pags, São Paulo - Iluminuras: Itaú Cultural, 2008. ISBN: 9788573212976. O livro é resultado do projeto Rumos Literatura 2007/2008, conta com 16 ensaios sobre os mais diversos assuntos do campo literário - autores, temas em comum, crítica - e pode ser comprado na Livraria Saraiva variando o valor entre R$30,00 e R$35,00)

Ao curso dos grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu modo de sentir e de perceber. A forma orgânica que a sensibilidade humana assume – o meio no qual ela se realiza – não depende apenas da natureza, mas também da história”.

Walter Benjamin,
em ‘A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica’.

Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante

Só o título definitivo do presente ensaio ter passado de afirmação – quando minha idéia era apenas um projeto – para dúvida, já diz o bastante sobre as mistificações e desmistificações metodológicas de uma pesquisa. Um ponto de vista nos impulsiona para depois ser desconstruído. O título assertivo me jogaria num deslumbramento primeiro, que existia e me trouxe até aqui, mas que nesse momento associo a uma cordialidade que o próprio Overmundo precisa evitar. Por isso a dúvida. Seja como for, antes de adentrarmos no perigoso reino da vanguarda ou monarquia colaborativa, é preciso fazer um rápido apanhado e dizer – correndo o risco de ser ‘levyano¹’ – que a cada dia se torna mais difícil discorrer sobre a cultura contemporânea e seus desdobramentos, sem relacioná-la com o paralelo desenvolvimento tecnológico. Parece até papo repetido. Assim sendo, é importante registrarmos, até a título de testemunho, as possibilidades nascentes com a convergência digital – um fenômeno aclamado ora promissor, ora alienante – que vem, e é claro que vem, influindo em diversos patamares do cotidiano, na comunicação agora massiva, dual e personal, e em tudo que ainda chamamos de arte.

Além de tomarmos como irreversível, esse processo se insere numa era de fragmentos – chamada de pós-modernidade por uns e de modernidade cansada por outros. Temos profundos diálogos entre linguagens, hibridização de formas e a dispersão de antigas fronteiras. A convergência não está sozinha. Antes tínhamos as belas artes, agora falamos em novas artes: tecno-arte, bio-arte, arte-crime. Antes tínhamos as disciplinas e o anseio acadêmico de se estabelecer enquanto disciplina; agora a interdisciplinaridade rompe as fronteiras da academia. “Abra os olhos e verá a inevitável marca na história”, dizia uma das pichações de Rafael Augustaitiz ao apresentar sua conclusão de curso, através da intervenção e invasão do centro universitário em que estudava. De fato, a própria noção de fronteira e de um modus operandis específico, que diferenciava a gestação do artista das telas de outro das folhas, ou mesmo que formatava a transgressão do artista como distinta da de um criminoso se dilui nesse contexto, fazendo da literatura, imagem; do cinema, palavra; da pintura, performance. Isso reverbera no perfil do crítico – que pode insurgir sem ser artista, acadêmico ou jornalista – e nos perfis de críticas que se distanciam de um 'único' ideal: crítica genética, biográfica, impressionista, visual, estrutural e semiótica se misturam. Tudo é permitido. E não que não fosse antes: precisamos saber dosar o excesso de visibilidade do presente para que ele não se torne a perda de um passado, pontuando sempre que necessário o novo, mas sem nunca perder de vista a história. Essa mediação é imprescindível: mesmo jovens e com pouca lembrança já lemos Haroldo, Tarkovski e Glauber, vimos Truffaut, Warhol e Pasolini, dançamos com Jomard e admiramos a transmutação artística recorrente em Greenaway (ou deveria dizer Lynch?). Pois é, sabemos que Adão, Eva e um criacionismo inédito não estão entre nós.

Mas, deixando de lado ressalvas iniciais, se partimos da interseção e mútua-influência entre a cultura e a tecnologia, observaremos como a produção textual em circulação no ciberespaço vem sofrendo suas metamorfoses. Ainda discretas, mas metamorfoses. Pra começar, temos de levar em conta a possibilidade multiforme de expressão diante de uma tela – apesar das já multiformes não diante de uma tela – que reinstituem a ‘palavra’ escrita como apenas ‘uma’ ferramenta, não mais como ‘A’ ferramenta única e exclusiva de comunicação. Sequer podemos considerar que o uso da palavra na internet continua o mesmo, já que há uma liberdade quanto à publicação de ‘conteúdo’, expurgando assim qualquer censura ideológica ao teor e normativa ao tom: as abreviaturas, a oralidade, gírias unidas a academicismo e o caráter hiperpessoal dos blogs se destacam. É batata e não há como ter controle. Desde que aderimos ao vigésimo primeiro século, não é preciso ser especialista para postar em circulação global imagens, sons, vídeos, links, emoticons ou qualquer outro recurso. Somos, ao menos em tese, escritores/produtores e leitores/consumidores globais.

Isso nos leva a pensar que basta uma conexão e uma vontade de se expressar para que estejamos aptos a nos tornar artistas, críticos ou jornalistas. Mesmo em literatura essa ideia não é nova. Desde o século XVII, o homem – principalmente os homens de letras das colônias e províncias – já atentava para a importância da construção de prelos simplificados. O domínio completo da técnica de impressão de um livro, do início ao fim, tornava-o não só um ‘autor a mais’ lançado, mas seu próprio editor: um senhor de sua obra (EISENSTEIN, E; 1998; P. 120/121). Atualmente, com as tecnologias digitais, essa produção completa de conteúdo se associa diretamente ao processo da colaboração e ao da interatividade, constituindo portais coletivos, hierarquizados horizontalmente o quão o capitalismo tardio permite e se apropria. O conselho administrativo / financeiro continua, os editores se tornam raros e um mar de repórteres é constituído. Todos podem ser críticos (de boteco, mas críticos). A edição se torna sugestão. Já se fala, inclusive, num jornalismo open source que é claramente uma adequação empresarial aos novos tempos. Quem não muda sua organização é atropelado pelo trem e hoje a tendência é justamente o contrário do que se via na antiga lógica de emissão única para recepção múltipla: interfaces inteligentes que capacitem o usuário como produtor de opinião e informação diante de uma janela de opções midiáticas. A crítica da crítica ganha uma via oficial.

Outras fronteiras são colocadas em xeque, afinal esse aparente caráter autônomo do internauta, uma flanerie ligada a um ‘do it yourself’ tecnológico, não funciona apenas como uma liberdade nunca antes sentida, mas como uma tendência autofágica, que cresce enquanto se devora. Não só a percepção multiforme e a expressão multiforme se assumem como objeto (e ler isso numa folha de papel soa um tanto picareta), pois o ponto central do regime colaborativo – que nos lembra a cooperação científica do início da era Moderna, que uniu diferentes saberes e diferentes visões sobre saberes na constituição de grandes sistemas – se funda na heterogeneidade de premissas, no multiculturalismo ante o eurocentrismo e no abalo da distância essencial e simbólica entre o autor e o seu leitor. Ambos se tornam líquidos, invertem-se, colocam-se um no lugar do outro até se fundirem num só. Ultrapassa-se aqui a noção de complementaridade veiculada preponderantemente no interior do sistema literário, atingindo o nível da confusão entre os papéis. O autor escreve e o leitor escreve por cima.

O menos burocraticamente possível, temos a potencial leitura, antes dita passiva, agora descontínua, pronta a se converter numa escrita, numa resposta, numa mudança de foco. Isso não gera necessariamente uma escrita potencial, pois o excesso de opiniões termina por questionar a própria legitimidade da crítica como uma ferramenta de legitimação. Temos a crítica assumidamente hiperpessoal, mas temos a crítica anônima; temos a crítica que disponibiliza o objeto criticado, mas há uma epidemia de opiniões uniformes. Existem sim contradições. É um momento de diálogo e de ‘crise’, mas como nos ensina o mestre Lourival Holanda, melhor que seja de crise mesmo, porque a crise nega a estagnação do pensamento em favor da transformação. Nesse sentido que devemos seguir. Pelo bem ou pelo mal, a literatura e a crítica literária postas em debate na internet encontram uma diversidade de pontos de vista, uma divulgação que torna a visualização desvinculada do mainstream. Os conglomerados comerciais são substituídos por pessoas, as pautas unilaterais por propostas individuais; estatutos rígidos se quebram, abandonam seus postos antagônicos para se tornarem um tudo ao mesmo tempo aqui agora. Ponderar o que vale e o que não vale a pena em meio a esse pandemônio, em meio a essa ‘hiperinflação informacional’(SANTOS, A. L.; 2003, p. 36) e hiperinflação do descartável, é o nosso grande dilema. Vivemos no regime do excesso que conduz confusão para além do saber (CHARTIER, R.; 2002; p. 20).

Obviamente, nem tudo é novo. Benjamin² já observava essa nova conjunção entre autor e leitor há setenta anos e devemos tomar o seu exemplo, enquanto sintoma da modernidade na virada do século XIX para o XX, com os olhos apontados para frente. Em especial se levarmos em conta que toda mídia 'nova', e mesmo a internet se inclui nisso, traz consigo as bases de mídias anteriores, uma remediação, de forma que fica difícil encontrar na produção textual, e na crítica, uma característica que a diferencie por completo do que veio antes. Fiquei obcecado em fazê-lo até perceber que estava sendo precipitado. Muito do que é escrito na internet ainda é puro reaproveitamento do que era / é escrito nos meios impressos, podendo inclusive transitar de um a outro sem grandes perdas.

Pois é, o potencial multiforme ainda sofre do velho uniforme. Engraçado que essa seja uma recorrência mesmo com os mundos e fundos prometidos diariamente, mesmo tendo de refletir sobre as novas maneiras de fazer, transmitir e fixar significados (SILVERSTONE, R.; 2002), assim como sobre a diversidade de práticas de leitura e escrita. Não há limite de caracteres, mas os textos curtos e superficiais se multiplicam; podemos apontar diretamente toda intertextualidade, mas um recurso simples como os links são esquecidos ou desconsiderados pelos leitores. O hipertexto ainda é claudicante e só o tempo nos dirá até que ponto, de fato, seus elogios serão confirmados e até que ponto uma distinção entre a crítica digital e a crítica impressa poderá ser feita. Uma distinção discursiva, formal, social e utilitária. Trata-se de uma situação próxima de quando instituímos o regime do impresso diante do manuscrito no século XV. Os últimos livros copiados à mão e os primeiros saídos da prensa conservavam uma ampla semelhança, a tal ponto de não conseguirmos identificar as propriedades de um e de outro (EISENSTEIN, E; 1998; p. 37). Não se passa de uma conjuntura a outra sem transições. O novo não aflora do nada simplesmente. Vivemos nossa própria época de incunábulos, com tensões e passos em falso: o labirinto da hipermídia injeta liberdade, mas solapa antigas referências, antigas formas de localização, antigos apoios. E, nesse caso, é preciso se perder para aprender a navegar.

Dessa forma, a investigação do ensaio – e não se enganem, pois muito da reflexão foi posta aqui de forma aberta – se debruça sobre a crítica literária e seu comportamento nessa pretensa transição, nessa propensa metamorfose, tomando como objeto o site colaborativo Overmundo (www.overmundo.com.br). Criado em caráter experimental no final de 2005 e lançado oficialmente em março de 2006, o portal é concebido como uma grande encruzilhada reflexiva e cultural do Brasil de livres uso, acesso e construção. Percebi logo de cara que a abertura completa à participação, contraditoriamente, gerou uma restrição no consumo, dando um caráter de fórum ou coletivo a uma proposta que pretendia ir além. Se compararmos o número de acessos ao portal – lembrando de seu apelo nacional – com a versão online do Jornal do Commercio de Recife – cujo apelo é extremamente regional – vemos que o segundo tem 6 vezes mais usuários diários que o primeiro (dados de março de 2007). É como se o Overmundo só tivesse conseguido estabelecer intimidade profunda com entusiastas do estudo ou da feitura da cibercultura, o que é um gueto dentro do interesse pela cultura, deixando de lado uma gama enorme de potenciais 'overmanos' e 'overminas'. O debate – postulando a crítica enquanto debate – é quem perde, principalmente quando se institui uma cordialidade excessiva, um jogo de elogios vazios. Apesar de o nome ser comumente apontado como uma americanização, suas origens remetem ao poema de Murilo Mendes, Overmundo, presente no livro Poesia Liberdade, de 1947 (e escolhi quatro versos quase-mas-não-seqüenciais para usar como subtítulos). O objetivo deste ensaio não é me fechar num caso específico, o Overmundo, nascendo e morrendo num único ventre, do Overmundo, mas uma tentativa de postulá-lo como parâmetro para uma discussão maior. Mantendo sempre o direito à dúvida. E acho que essa idéia está clara desde o primeiro parágrafo.


Que anda, voa, está em toda a parte
No intuito de revelar o percurso, me registrei no Overmundo em agosto de 2006 e admito: entrei mais pela novidade que por consciência da iniciativa. Logo produzi contribuições, estabeleci contato com colaboradores, gostei do ambiente frutífero de trocas, da possibilidade multimidiática de construção textual, prosseguindo assim pelo ano seguinte até parar e seguir apenas como observador. Sem dúvida, a capacidade do site de agregar pessoas dos quatro cantos do país, de cidades fora do mapa midiático central, faz da colaboração conjugada à interatividade seu grande trunfo. E nesse caso, não se trata de delírio, mas de uma prática cotidiana. Ao mesmo tempo em que há dispersão, há uma noção de encruzilhada que reúne todas as idiossincrasias em um só lugar. A premissa de qualquer interessado poder se cadastrar e escrever sobre o que deseja – com enfoque na cultura e num debate sobre o que é cultura – ilumina um território antes invisível, algo que nenhum jornal, revista ou mesmo agência de notícias consegue ou se interessa em fazer. Num momento podemos ler uma crítica de Uruaçu (GO) sobre o livro De Longe Toda Serra é Azul, escrito por Fernando Schiavini, falando intimamente da questão indigenista no país e no momento seguinte, descobrir através de uma colaboração de Teresina (PI), a existência da revista De repente, fundada pelo poeta, violeiro e repentista Pedro Costa na tentativa de incentivar e divulgar a literatura de cordel. A distância entre os estados se torna a distância de um clique.

Quando os usuários assumem a postura de se debruçar sobre particularidades regionais, que lhe são mais íntimas, ou quando assumem uma pessoalidade imensa sobre temas distantes, o objetivo do Overmundo parece completo. A autoralidade ressurge e se torna múltipla, co-existente. Isso porque a própria estrutura do portal estimula o labirinto hipertextual: toda e qualquer contribuição aponta, numa coluna ao lado, para dezenas de outras contribuições ‘afins’ que por sua vez, apontam para outras dezenas de contribuições afins e assim por diante, a perder de vista. O risco (e aqui isso é um ganho) de se perder é imenso. A carcaça do site não pede uma revisão, afinal, dentro da proposta de cultura livre me parece bem esculpida, mas talvez a lógica de autogestão e de abertura para construção coletiva possa ser repensada. Se por um lado os organizadores tentam manter o Overmundo dentro da linha, por outro, uma série de problemas se acumulam. A proliferação de perfis fakes – que quebram não só a noção de autor, como a de quem é o 'sujeito' no ciberespaço – é apenas um deles: se qualquer pessoa pode se registrar e se tornar crítico do que quiser; temos de nos preparar para os que vão se registrar, encarnar qualquer persona e promover e/ou destruir qualquer artista. A abertura que alimenta o Overmundo é seu maior risco de sobrevivência.

Além disso, não podemos deixar de enxergar como, em termos quantitativos, o Overmundo reflete uma velha situação dos meios de comunicação tradicionais, principalmente no que diz respeito à visibilidade nacional dos eixos centrais em detrimento aos periféricos. Não se trata de uma repulsa ao eixo Rio-São Paulo. Longe disso. Dentro do próprio eixo central ressoam periferias e marginalidades temáticas, além dos temas não esgotados. Não podemos tomar a aparelhagem de poder entre hegemônico e subalterno de forma maniqueísta, mesmo que tenhamos em mente que muita visibilidade para um lado resulta em pouca visibilidade para outro. Tomemos, por exemplo, a contribuição “Escritor bom é escritor morto”, produzida por um usuário do Rio de Janeiro, a partir do seminário internacional Rumos Literatura em 2007. O autor resolveu discutir literatura contemporânea a partir de uma idéia de autor fundada no passado, questionando a nossa procura por 'grandes nomes' no contemporâneo. Não é um tema novo, invisível, nem nada; também não aborda uma particularidade apenas carioca, mas carrega uma discussão pertinente, em especial como metatexto do próprio espaço em que foi veiculada.

Por outro lado, percebi que a dispersão, enquanto apresentação do desconhecido, se confunde – e isso é uma estratégia velada – com serviços de quem os escreve. Isso cria uma situação ambígua, pois não sabemos até que ponto estamos diante de um pensamento sincero, crítico e relevante sobre um tema e até que ponto é apenas propaganda disfarçada. Um texto de destaque foi publicado no início de 2008, sobre o papel do agente literário, escrito por um agente literário que ao final coloca seu contato e se auto-proclama um dos únicos especialistas no país. Nenhum dos comentários tocou no ponto da autopromoção, que aos meus olhos se sobrepôs ao próprio tema, nem se perguntaram se nossa realidade pede esse papel no sistema. Pelo contrário, e isso é um dilema num espaço onde as pessoas deveriam estar atentas: os comentários assumiram sem constrangimentos um tom de clientes pretensos-escritores desesperadamente em busca de um agente literário para publicarem seus livros. A banalização desse tipo de atitude passa a confundir um espaço de debate cultural, com uma ampla agência de serviços nacionais. Talvez seja o caminho mais curto para tornar o Overmundo auto-sustentável – o que é importante – mas nesse caso, teríamos de falar menos em liberdade e mais em consumo.

Não é preciso muito para perceber como o portal bebe de iniciativas anteriores; os administradores fazem as honras da casa e deixam aberto ao público todos os créditos. Isso é um avanço quanto aos direitos autorais, fundamentando um sistema que tanto reaproveita, como se põe a disposição para ser reaproveitado. Tais diretrizes se oficializam ao substituir o tradicional plágio pelo compartilhamento consentido, algo que só se tornou uma realidade graças a distribuição pela licença Creative Commons³, assim como pela disponibilidade do código do sistema para download. Qualquer pessoa pode pegar a estrutura desenvolvida pelo site e desenvolver o seu próprio Overmundo ou outro site parecido com ele, desde que seja aberto e livre pelas mesmas licenças. O mercado ainda não sabe como lidar com iniciativas novas e vanguardistas, que tornam transparentes todo o abismo entre os interesses comerciais baseados no controle completo de conteúdo e a tendência contemporânea de liberdade desse mesmo conteúdo. O Overmundo não contribuiu para os modelos colaborativos da chamada Web 2.0 por seus recursos originais, mas por agregar ferramentas que antes eram utilizadas isoladamente.

Assim sendo, temos uma genealogia complexa: muitos dos conceitos empregados no site tomam emprestados recursos de desbravadores da nova internet, como a Wikipedia, o Slashdot e o Kuro5hin. Partindo do que o Overmundo fala sobre o Overmundo farei minhas considerações. Da Wikipedia é aproveitado o modelo de contribuições, mediante registro, donde o ‘overmano’ e ‘overmina’ têm o direito de escrever sobre o que desejar. Fala-se de uma linha editorial, mas quando se assume a dispersão, a editoria vira censura – uma reclamação que os administradores têm ouvido e lido nos últimos meses. Do Kuro5hin e do Slashdot, o Overmundo formata uma espécie de conselho coletivo, uma ágora de decisão, onde as contribuições entram no ar e são editadas a partir das sugestões dos próprios usuários cadastrados. Temos assim as filas de edição (48 horas) e de votação (48 horas para atingir um mínimo de votos), que filtra (filtra?) todo material postado. A hierarquização dos conteúdos do portal se equilibra entre o tempo de postagem e o número de votos recebidos.

A espinha dorsal do Overmundo é chamada de Overblog e funciona como um espaço publico de debate, onde os usuários podem lançar críticas, ensaios, entrevistas, apesar de que a quebra de fronteiras também atinge esses formatos e faz da entrevista, crítica; do ensaio, entrevista e da crítica; ensaio. Podemos pensar nas colaborações, e nos blogs internos, como um substituto direto das colunas dos meios impressos, onde o editor se torna um sugestor coletivo e onde o crítico se assume como senhor de todas as escolhas e responsável por todos os riscos. Infelizmente, no campo da literatura acontece – e não tanto no da música e do cinema – dos críticos pouco ou não se utilizam das ferramentas que o portal dispõe (imagens, áudio, vídeo e mesmo links). Algo que se fosse mais explorado poderia criar uma especificidade do material em relação ao suporte em que está sendo veiculado. Parece que os usuários não sabem como utilizar e dosar esses recursos dentro de seus conteúdos, menos ainda pensar conteúdos integrados num caráter multimidiático. O hipertexto pode funcionar como um avanço, mas em excesso pode causar uma fragmentação que termina não nos levando a canto, ou melhor, conhecimento algum.

Por isso é tão complicado falar num estatuto - se é que há a necessidade de um - que caracterize a crítica digital e que a diferencie do meio impresso. Não existe um formato pré-estabelecido para a crítica literária, ela precisa se misturar, tornar-se outra. O Overmundo pretende se afirmar como um laboratório multimídia para invenção de novas maneiras de divulgação e discussão da produção cultural, colocando numa posição de auto-questionamento a maneira como a própria crítica se estrutura e como se relaciona com a obra original. Um canal direto entre o crítico, autor e leitores se estabelece, estimulando as contra-argumentações diante do que foi escrito. Entretanto, a maioria dos comentários na seção de literatura não procura fomentar a discussão, mas elogiar o texto sem acrescentar muito. Isso cria um clima 'cordial demais', o que não só é maléfico para a crítica em si, como também menospreza o poder dos comentários. A interatividade e colaboração, enquanto potenciais, se esvaziam.

Dentro da interatividade, se finca a perversa lógica de usar o comentário como moeda de troca, algo que se associa diretamente com o fato da atuação dos usuários contar pontos para o karma, uma forma de distinguir, a partir da atuação e da produtividade, níveis diferentes de pesos nos votos dos usuários. É um tiro dado pela culatra: um mecanismo criado para estimular contribuições e tornar a hierarquização justa, se transformou no combustível de 'comentários vazios', numa busca exagerada por votos. Os termos ‘texto ótimo’ e ‘parabéns’ são majoritários. No caso de entrevistas, os usuários poderiam usar a oportunidade para continuarem o diálogo, afinal alguns dos entrevistados também são usuários, mas pelo contrário, o que acontece é uma volta ao recorrente “legal”, “parabéns pelo diálogo esclarecedor”, “ótima iniciativa”. Ergue-se uma necessidade de marcar presença, uma espécie de 'passei por aqui' que mais parece 'passei por aqui e talvez nem li'. A crítica de mão dupla, na verdade, pouco resiste (existe). Comentários do tipo “Lido, gostado e votado!” chegam a ser constrangedores, quando um mesmo usuário o repete em diferentes textos. Existe um movimento interno para acabar com essa cordialidade, mas ainda me parece um movimento isolado: a sensação maior é a de que ou se entra no jogo de elogios ou não se joga. A diversidade de pontos de vistas se perde; a provocação e a contestação viram artigo de luxo e até de xingamento por quem assume apenas o status de 'usuário cordial'. Não que a razão da crítica seja a distinção forçada de opiniões, afinal a polêmica pela polêmica tem o mesmo efeito do elogio pelo elogio.

Pensando assim, acredito que o karma é o grande sabotador do portal. Além do estímulo às avessas dado aos cordiais, essa atribulação instituiu uma espécie monarquia interna que passa invisível: no Overmundo, poucos têm um valor de voto alto e muitos permanecem com seus valores baixos. Sem contar que uma porcentagem pequena, 28 para ser mais exato, é paga por suas colaborações, enquanto se espera que todo o resto de usuários poste novos materiais espontaneamente. Há um dilema corporativo aqui. Soa como um surto de verticalização num pretenso mundo de horizontes. Em um espaço onde todos lutam pela legitimação da crítica, legitimação concedida pelos próprios usuários, uma parcela parece privilegiada, como se estivessem legitimados a priori. A crítica digital tem como maior caráter o dilema da legitimação, enraizada no dilema de quem concede e de quem recebe essa legitimação.


Observai sua armadura de penas

Parte da reflexão sobre o contemporâneo só se preocupa com o que acontece na ponta do desenvolvimento, no campo do ‘sempre-novo’, do agendado pela grande mídia, do último lançamento. Entretanto, essa ‘evolução’ – se é que podemos usar esse termo - não é tão idílica como já nos mostrou a história e se dá em camadas, de maneira desigual e não-linear. Estabelecendo um paralelo com o ciberespaço, percebemos uma severa desigualdade na usabilidade rotina dos usuários, a partir do letramento digital que possuem. O que traz reflexos na liberdade de direção dentro do ambiente virtual. Como vimos, há propostas de sites colaborativos que engatinham, mas as bordas e os centros continuam vivos, camuflados, mas vivos. Uma prova são os ‘portais-currais’ (UOL, Globo.com, Terra), espaços tidos como auto-suficientes para não nos perdermos no ‘mar de informação’, mas que, de fato, como aponta André Lemos “embora busquem agregar supostos conteúdos importantes, nos tiram, enquanto fenômeno hegemônico, a possibilidade da errância, da ciber-flânerie, nos transformando em surfers-bois, marcados pelo ferro do e-business’ (LEMOS, A.; online). Temos com a internet novas liberdades, novas formas de expressão, novas interações trans-territoriais, mas temos de aprender a lidar e a desviar das novas restrições e das formas – maquiadas – de controle. Se não o fizermos, as mudanças de suporte valem pouco.

Essa minha visão contrasta com o que afirma, por exemplo, a Lucia Santaella ao dizer que a internet, enquanto rede (e prefiro a noção de emaranhado), não “se constrói segundo princípios hierárquicos, mas como se uma grande teia na forma do globo envolvesse a terra inteira, sem bordas, nem centros” (SANTAELLA, L.; 2004, p. 38). O ciberespaço não pode ser resumido apenas como ruptura hipotética, afinal é além de ruptura, manutenção de continuidades e desigualdades pré-existentes. O contemporâneo, e já sabemos disso desde Santo Agostinho, se assume como uma convergência de distintos tempos em um só tempo, um espaço em que sistemas materiais e simbólicos convivem em diferentes estágios. É um pouco o que nos diz Gilles Deleuze, ao afirmar que não estamos lidando com “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes”, mas “seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi” (DELEUZE, G.; 2005, P. 325). O tempo e a tecnologia não compartilham de uma uniformidade espacial. Essa ressalva é importante, porque define a existência de níveis de letramento digital (MARCUSCHI, L. A.; 2005), co-existentes, influenciados pela intimidade e liberdade do navegador com o discurso eletrônico que produz e que consegue recusar. A própria Santaella é de grande valia ao definir diferentes tipos de navegadores (errante/novato, detetive/leigo e previdente/experto), a partir da profundidade de ações que conseguem realizar no ciberespaço. Ela aponta diferentes formas de navegação, muitas vezes influenciadas até pela personalidade do navegador, que pode diferenciá-lo ou encaminhá-lo para a corrente.

É arriscado refletir sobre fenômenos culturais recentes, mas é preciso. Afinal, muito da não-reflexão é causada por um comodismo de deixar os processos se petrificarem, uma lógica que se funda na força do 'hábito' em ocultar o vigor das mudanças. Há uma clara falta de perspicácia na postura diante de um fenômeno recente, do qual não conseguimos vislumbrar todas as saídas e conseqüências, pois não temos o tempo decorrido que nos conforta e nos enche de segurança. Por outro lado, penso em seguir um caminho distinto de autores consagrados como a Lucia Santaella e o Pierre Lévy, mesmo que ambos discorram sobre o ciberespaço. Ambos tendem se fundamentar a partir da idéia de ‘potencialidade’, o que me parece muito tentador, mas, por outro lado, também me parece deslumbrado demais. Será preciso cobrar da ‘potencialidade’, questionar até onde o potencial inserido pela colaboração vai e até onde ele limita a si mesmo. Precisamos ser claros e não cair na dualidade, onde de um lado a internet emana como solução de todos os males e de outro, como o centro vital de simulacros e cataclismas. Para além das distopias e utopias da cibercultura, nossas pesquisas precisam adotar uma sobriedade.


E ouve seu grito eletrônico.

O Overmundo tem de superar o karma do consenso vazio ou a iniciativa terminará caindo num caminho sem volta: ou o da censura editorial dos jornais, ou da superficialidade geralmente acusada aos blogs. É preciso encontrar um meio-termo, se desvencilhar dos caminhos preconcebidos, da quantidade-limite de palavras e termos e da falsa convergência inconvergente. Trata-se de uma busca por um anti-formato - que nem precisa ser tão ‘anti’ assim - mas que nos compreenda, não nos rotule e nos posicione enquanto tal. As expressões são multimidiáticas e precisam revelar a mescla de linguagens dos constructos discursivos que são. Também acredito que não precisamos nos apegar aos que pretendem explicar a arte em critérios científicos e rígidos ou, por outro lado, meramente descrever e contar sinopses. A própria arte não pede essa domesticação: o que caracteriza o trabalho artístico é a impossibilidade de redução do enigma criativo.

Assim sendo, o perfil crítico impresso, televisivo, radiofônico nos soa ultrapassado, enquanto não desperta para uma produção de sentidos próxima de um artista transmídia e livre. De fato, estamos distantes da lógica de guia de consumo ou do agendamento imposto à crítica tradicional. Acredito no compartilhamento como forma de democratização ao acesso de obras e informações e a política contrária sempre marginalizou grande parcela da população. Não se pode ficar omisso quanto a isso. O Overmundo não deve trabalhar pelo consenso, mas pelo dissenso, pelo debate das idéias que se diferenciam, se confrontam, se devoram; pela substituição do determinante pelo ambíguo ou pelo ponto de vista duplo, múltiplo. Essa era a premissa valorosa e ela está se esvaziando. É preciso tornar toda e qualquer conclusão apenas o mote de uma nova e nova discussão. Todos os artistas e metidos a intelectuais – resgatando o sentido não pejorativo da palavra - estão convidados. Nem tudo é novo e ideal, todos sabem, mas é preciso continuar mesmo assim.


NOTAS

¹ Referência ao teórico Pierre Lévy.

² “Durante séculos, um pequeno número de escritores encontrava-se diante de vários milhares de leitores. No fim do século passado, a situação se modificou. Com a ampliação da imprensa, que colocava à disposição do público órgãos sempre novos, políticos, religiosos, científicos, profissionais, regionais, um número crescente de leitores passou-se – inicialmente de modo ocasional – para o lado dos escritores. [...] Entre o autor e o público, conseqüentemente, a diferença está em vias de se tornar cada vez menos fundamental. Ela é apenas funcional, podendo variar segundo as circunstâncias. A competência literária não mais repousa sobre uma formação especializada, mas sobre uma multiplicidade de técnicas, forjando-se assim um bem comum”. (BENJAMIN, Walter; 1985, p. 227/228)

³ Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela Licença 2.5 Brasil da qual podemos copiar, distribuir, exibir, executar a obra e criar obras derivadas, desde que os créditos sejam dados ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante e que tal uso não tenha finalidades comerciais.


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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Cartão de Visita

Um dia ainda consigo convencer o mundo de que a chatice pode ser uma forma de carinho.