quarta-feira, 15 de setembro de 2004

Era uma vez o manifesto ideológico...

Se eu conseguisse descrever uma cena de cerca de seis minutos, tida com uma das mais significativas da história do cinema, se em palavras pudesse transmitir bem a presença excessiva de cada corte, o trabalho minucioso de montagem, a expressão caricata nos rostos em close, a variação de distância entre a câmera e os corpos agitados e a frieza dos algozes diante de suas vítimas, quem, além dos cinéfilos de carteirinha, poderia adivinhar que estaria me referindo a um filme soviético, mudo, preto e branco, da década de 20 e não a um videoclipe recém-lançado na MTV? Pois é, estamos falando da famigerada escadaria de Odessa, o quarto ato d'O Encouraçado Potemkin (1925), falando de Sergei Eisenstein que, reunindo influências das mais diversas a partir de âmbitos artísticos, políticos e científicos, ascendeu como efígie de uma vanguarda cinematográfica, o formalismo russo, fazendo de seu peculiar controle como cineasta também uma teoria sobre o cinema. Assim sendo, temos um diálogo entre a dialética de Hegel rearranjada por Marx com o teatro dramático de Meyerhold, uma trajetória que parte do engajamento político estimulado por Lenin e que o leva a participação no Prolekult, uma curiosidade intelectual que o faz carregar consigo a composição dos ideogramas do teatro kabuki, a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov e as experiências de Kuleshov com justaposição de imagens.

Não era preciso reproduzir a realidade, criar um duplo translúcido e axiológico, mas sim, criar conceitos tomando como lógica o encontro de imagens, encontro visceral se necessário, e fazendo da realidade objeto de discurso ideológico. Eisenstein não foi um cineasta qualquer, fora um iconoclasta dos valores burgueses e um eremita dentro da ditadura soviética que passou a impor o realismo como modelo estético ideal das (e para as) massas. Se durante a década de 20, após a Revolução de 1917, se consolidou como o cineasta da Revolução, entrou na década seguinte, na era Stálin, como um dos artistas mais perseguidos dentro da URSS. Vinicius de Moraes escreveu certa vez que "a luta contra a 'estética formal' no filme russo foi em grande parte a luta contra a influência de Eisenstein", especialmente pelo cineasta ter se firmado como teórico da montagem descortinando a linguagem cinematográfica clássica para a forma como a conhecemos/entendemos hoje. Entretanto, mesmo com toda pompa do cânone não podemos deixar de pontuar como, em seus filmes, existem momentos de pouca conotação, de poucas imagens-idéias, afinal considerar O Encouraçado Potemkin como uma seqüência interminável de imagens vanguardistas, um espetáculo cinematográfico a cada milésimo de segundo é apenas referendar as repetidas frases que não passam de uma opinião socialmente estabelecida e reproduzida nos antros do exercício da crítica. De qualquer forma, nós, jovens de vinte e poucos anos, crescidos na era da estética do videoclipe, da sobrecarga de informações a cada corte, da hipertrofia de imagens que deixam de nos sensibilizar pelo excesso em oposição à raridade, temos os olhos já acostumados à velocidade e ainda assim, a escadaria de Odessa não poderia ser mais rápida.


Diferentemente de Pudovkin, diretor conterrâneo e contemporâneo, que ligava o conceito de montagem a construção – uma construção dramática que usava de personagens isolados num microcosmo (a mãe, o líder) para lançar mão de uma parábola social - Eisenstein partia de personagens coletivos (os operários, os marinheiros, os revolucionários), remontando um esboço de 'povo' em sua concepção de montagem ligada à colisão: “do choque de duas imagens distintas surgia algo novo no inconsciente do público” (Merten, 2003, p. 52). Em A Greve (1924), o diretor funde/alterna o rosto de um homem com a face de uma raposa, o rosto de um homem com a face de uma coruja, o rosto de um outro com a face de um cachorro para dar uma dimensão da personalidade dos espiões infiltrados na fábrica. Além disso, cria a sequência de imagens mais poderosa de sua filmografia, e normalmente subvalorizada, ao estabelecer um paralelo entre uma multidão de operários sendo reprimida/assassinada por hordas de policiais com a de um touro sendo morto num matadouro: correria, faca no pescoço do animal, sangue escorrendo, uma criança atirada de um prédio, tiros, mãos para alto, um vasto campo de mortos. A violência contra o proletariado não é amenizada tanto para associar a força da imagem em si com a força com a qual são montadas em sequência, como para reforçar uma realidade sociopolítica cruel que tornara imprescindível a Revolução Bolchevique em 1917.

A justaposição dessas imagens-idéias, cria incondicionalmente uma resposta talvez não conceitual, mas emocional da platéia e Eisenstein anunciava não procurar por uma platéia passiva, sem sensibilidade, mas uma platéia de co-criadores, de co-pensadores. Na prática, todavia, a partir dos estudos de Pavlov, o cineasta acreditava conseguir moldar/condicionar as reações de quem presenciava suas construções imagéticas, diminuindo o peso das idiossincrasias individuais em busca da ascensão de um ideal em comum, ou seja, queria - e fora contratado para - lançar ao proletariado um manifesto ufanista, um referencial artístico de inspiração à luta socialista. Só que é preciso entender a variação histórica que nos liga a tais obras, afinal já não há mais um corpo proletariado interessado, especialmente após o fim da experiência real do socialismo no regimento das nações. Das lutas, restaram apenas a utopia, dos líderes, apenas as epígrafes. O marxismo dispensou a aproprição revolucionária, ainda que as unhas do diretor russo continuem a nos tocar com a força que só temos em momentos de profunda raiva. E não se faz pelo lado ideológico, mas pelo lado narrativo, técnico, histórico, cinematográfico e poético. Estamos descobrindo novos signos no filme em si e no filme inserido em um novo contexto: reinterpretando os significados, remodelando os paradigmas. Sergei Mikhailovitch Eisenstein agora é outro.

“A montagem é, para ele, o poder criativo do cinema, o meio pelo qual as 'células' isoladas se tornam um conjunto cinemático vivo; a montagem é o princípio vital que dá significado aos planos puros” (Augusto, 2004, p. 61). Essa talvez seja a marca inegável do diretor e o paradigma estabelecido por tal a todo o cinema. Alguns segundos e um corte, alguns mais e outro. E outro. E outro. Ora meramente figurativo ou circunstancial, ora magistralmente bem pensado, o corte se acumula fazendo com que hora alguma se mostre desnecessário, aleatório. E Eisenstein não se prende apenas a montagem para lançar suas idéias – um casal junta, no meio da sala, objetos da casa que possam ser vendidos para conseguirem dinheiro, a mulher esconde um vestido que causa confronto com o marido; no meio da briga terminam colocando o próprio filho de colo no monte a ser vendido sem perceberem. Essa cena parece previamente não pensada. Talvez até seja. Acredito que não.

A Greve funciona como um baú de diretrizes, um baú de possibilidades e ideias não só que o diretor voltaria a explorar em suas obras seguintes, mas também idéias vigentes em outros cinemas vanguardistas da época. É um filme que desliza na linha dos detalhes e do virtuosismo, onde absorvemos muitas proposições formais e discursivas que se tornariam completas em cenas imponentes e onde existe um apuro técnico assustador ao olharmos o ano do filme: produzido em 1924, lançado em 1925. Há um trabalho com sombras, com paradoxos, iluminação contrastando entre o claro e escuro e ângulos inusitados da câmera. Obviamente dialogando com o expressionismo alemão. A greve talvez funcione como um sumário do que viria ser toda a obra cinematográfica de Eisenstein, sendo muitas das idéias presentes ora exercidas ainda mais profundamente, enquanto que outras jamais voltariam a ser reutilizadas em seus filmes posteriores. Seja do maniqueísmo (capitalismo selvagem x socialismo libertário) ao trabalho minucioso de montagem; Eisenstein e seus olhos ainda esperançosos pela revolução estavam por completo representado ali. Mas o tempo faria com que seus olhos fossem outros.

No Encouraçado Potemkin, a teoria de montagem de Eisenstein toma ares ainda mais profundos. Existe uma ligação dialética entre os cinco atos; uma estrutura onde se desenrola uma situação, uma tensão e uma reação oposta. Uma parte se liga a outra dessa maneira (marinheiros encontram os vermes, se recusam a comer o que resulta no quase fuzilamento de alguns, o que não acontece pois há um grito revolucionário que desencadeia uma rebelião). Por fim, no último ato, com a expectativa de confronto entre o Potemkim e a esquadra czarista há não o combate tão tangente e sim um grito de união: 'irmãos'. É cafona, mas é exatamente o sentimento que os 'camaradas' russos precisavam representar para si mesmos.

Assim como em A Greve ainda que carregue uma carga política bem direcionada, que o faz panfletário em termos ideológicos, o filme já não soa como um manifesto ‘real’, ou possível de ainda reunir entusiastas. Seria bastante anacrônico. Talvez já tenha soado como tal, mas hoje não mais. Para sermos conscientes devemos entender o sentido original do filme – encomendado pelo governo para saudar os vinte anos da revolta do Potemkin, acontecida em 1905, porém para um jovem na pós-modernidade esse sentido não faz diferença alguma, na verdade, esse sentido nem existe dependendo do interesse cinéfilo dele. No contemporâneo esse jovem irá construir seu próprio sentido dentro do filme de acordo com a sua vivência – e livre da questão ideológica, poderá reparar em outras questões, hoje, mais relevantes dentro da película (inclusive sobre o papel – ou justamente o esvaziamento – da ideologia em nosso tempo). O Encouraçado Potemkin é um filme político sim, mas não um manifesto ideológico. Pelo menos não em 2004.

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