sábado, 29 de maio de 2010

Ninho

Uma semana longe de casa e, pela primeira vez, não sinto saudades dos meus lenga-lengas de sempre, da cidade que me brota e do ritmo que satisfaz, das pessoas mais próximas, dos tons de pele, do calor infernal e até do fedor de merda do rio. Não estou me inundando de nostalgia, mapeando os afetos, resgatando palavra por palavra até silenciosamente reafirmar os vínculos, os laços, reviver as histórias boas e compartilhadas. Nada disso. Estou muito com a cabeça num mundo distante, com os olhos virados para outra direção, imaginando que posso prosseguir em ares também fedorentos sem receio de desfazer o nó que liga morbidamente certeza e insegurança, nó que nos aprisiona, se faz de seda enquanto nos mortifica num casulo. Ainda que nos alimente e nos aqueça, que nos deixe mimados e cheios de vícios, chega uma hora que não há nada a se fazer a não ser arrancar o fio umbilical com os próprios dentes. No entanto, permaneço atento para não soltar e perder as pontas.

De fato, tudo isso não é por Salvador, pelo axé e pelo pelô, nem se enganem, não é o tipo de gatilho que vem de fora, é quase como uma respiração que se torna mais intensa a cada fluxo, não bem o fim da nostalgia que me persegue, mas a inquietação, vinte cinco anos, de que no mundo das permutas, meu mundo das maravilhas, a vantagem de estar longe das pessoas que lhe conhecem de ponta a ponta, as desvantagens são inúmeras, é escapar um pouco do olhar viciado, às vezes preguiçoso, que seus amantes lançam sobre você. Tenho a impressão de que a intimidade, como todo ninho afetuoso, pode ser tão conformista que se torna espectral, fantasmagoria do cotidiano, amor maior do mundo de quem arma o estúdio com mil câmeras na sua direção, firma a bela visão oficial e parte com os olhos fechados para longe. Nada pode ser tão castrador quanto acordar todos os dias com o cheiro de café e encontrar um sorriso matinal delineado de ternura.

Não se trata de uma crítica ao colo, à boca cuja voz nos envolve em poucas frases ou ao cheiro que nos acostumamos, mas que continua a nos atrair: o problema é que para não nos levantarmos do sofá da sala ou não mudarmos o nosso sanduíche predileto no McDonald's, terminamos aceitando todos os clichês, os que impomos a nós mesmos e os que provêm de olhares estrangeiros, perspicazes em boa parte dos casos. Enquanto isso, a banha parece se acumular. Seja como for, acordei hoje sem vontade de seguir como um personagem de um script/relação repetitiva, meio como se fosse a décima oitava temporada de um seriado em que tudo permanece no mesmo marasmo, tudo é previsível demais de forma que os olhares dos espectadores impedem muitas vezes de seguirmos na maravilhosa opção de sermos sem pudor, também, aquele que não somos, de entrarmos num estado dentro fora de si. O que mais gosto em Salvador é a revolta do mar e a tranqüilidade das pedras.

terça-feira, 18 de maio de 2010

A Caça ao Leão com Arco (França, 1965), de Jean Rouch

Antes de mais nada e fazendo logo a meia-culpa, queria deixar claro que Jean Rouch é um cineasta que me instiga não apenas em assuntos cinematográficos, não apenas na discussão-punheta da forma, dos planos, da duração dos planos, mas num patamar mais profundo, existencial mesmo, ferindo minhas projeções de felicidade e autorepresentação. Não tenho como negar que Os Mestres Loucos, A Pirâmide Humana, Jaguar, Eu, um Negro e especialmente Crônica de um Verão são danadamente culpados nessa empreitada, mas fiquei realmente incomodado depois de assistir A Caça ao Leão com Arco. Diferentemente do que comentou o curador da mostra, não senti a mínima vontade de mostrar o filme aos meus filhos, sei que dificilmente eles, ou as minhas sobrinhas que é o mais próximo que tenho disso, terminariam eufóricos, com vontade de dançar (?!). Seja aos 3, 7 ou 10 anos e, infelizmente, preciso fazer um adendo a todos que apresentam filmes: favor não descrever, soltar spoilers ou contar o final antes da sessão, favor se restringir ao ano, diretor e quem sabe uma discreta sinopse / comentário, alguns espectadores, me incluo entre eles, detestam essa clareza de significado que o especialista procura dar ao enigma por vir. Seja como for, achei a proposta do filme uma farsa, não uma farsa no sentido do documentário em si, do dispositivo ou intervenção, não uma farsa autoconsciente que brinca com as crenças do espectador, que problematiza a praxis do documentarista, nada de muito refinado, mas uma farsa que parece enganar o próprio realizador como um etnógrafo deslumbrado com pouco, daqueles que vestem sua indumentária desbravador e pela primeira vez tem contato com um arco fora do contexto dos campos de treinamento olímpico de seu país.

O filme de Jean Rouch não trata de uma fábula, ainda que tente se vender assim, sobre o caráter do duelo justo, dos combatentes que se enfrentam em condições semelhantes, se respeitam, se assimilam, se rodeiam, seguem as mesmas regras e ocupam o mesmo espaço, afincando ao duelo sua dimensão histórica, das sociedades tradicionais às industriais, do âmbito público ao privado. A Caça ao Leão com Arco finge uma autenticidade, ou melhor, uma exclusividade ritual que só se torna plena na cabeça de quem pretende fechar os olhos para o mundo e elevar a própria vista e experiência, afinal o objeto aqui é o duelo injusto, duelo da desigualdade, que assim sendo, deixa de ser duelo e se torna outra coisa. Aliás, no início da aventura, Rouch comenta que existem vários tipos de caçada, mas que elas podem ser divididas basicamente em dois tipos: 1. as que usam armadilhas e 2. outra em que um caçador, o mais corajoso, vai sozinho para a savana com apenas três flechas durante três dias. Portanto, ao acompanhar apenas o primeiro tipo, digo com firmeza que para começo de conversa, o filme não deveria se chamar A Caça ao Leão com Arco, mas A Caça ao Leão com Armadilha, porque o que vemos é um embate desproporcional: dezenas de homens em busca do felino espalham armadilhas, aquelas armadilhas de ferro que o animal pisa e tem a perna quebrada e presa, para no outro dia chegarem com o animal adulto / macho / fêmea / filhote completamente debilitado, praticamente imóvel, praticamente morto, e atirarem algumas fechas cheias de veneno. Desculpa, mas o arco é meramente um adorno tribal, superestimado pela câmera, pelo realizador, pelos espectadores e esse papo de 'aproveitem para ver os últimos momentos de um ritual que vai desaparecer', não convence.

Se o filme é uma fábula que procura dar destaque ao homem nômade de algum confim da África que mata o animal por sobrevivência, para se alimentar e para punir pelos ataques ao gado, que mistura racionalidade e misticismo no respeito e integração com a natureza, que martela a hierarquia e os ritos do grupo, tenho de dizer que a moral que me passa não é muito edificante - e isso não é uma cobrança. Em primeiro lugar, bateu a sensação de que ser desleal vale desde que depois da deslealdade, soltemos uns cantos para a morte do inimigo, façamos uma dancinha, um gaway-gawey e agradeçamos. Não sou do tipo que desenvolveu problemas com a forma com que industrializamos a morte dos animais que comemos e consumimos, matar com uma armadilha / flecha ou comprar no mercado, desfiado, pré-cozido, não faz tanta diferença para mim, não me sinto culpado, sou carnívoro, não vou sentir pena de uma galinha porque ela viveu numa gaiola antes de chegar a minha mesa. De qualquer forma, se eu fizer uma oração antes da refeição, fica tudo certo. Voltando ao filme, o realizador suprime um estatuto ontológico óbvio de sobrevivência do ser humano só para justificar seu deslumbramento raso com o modo de viver e se integrar africano. Parece até o conto da carochinha do bom selvagem que tem sido resignificado ad infinitum desde Rousseau. Agora, de fato, a cereja do bolo é a narração exagerada de Rouch, ele simplesmente não para de falar, ok é uma fábula, precisa ser mastigado, mas ele explica tanto, intermedia tanto, que parece isolar e alijar cada vez mais os caçadores enquanto pessoas, os elevando artificialmente a posição de personagens talhados. Pouca importa a caçada, pouco importam os caçadores, o leão, pouco importa a ética do duelo, o que importa são as impressões deslumbradas de um branco velho etnógrafo francês que tem uma puta tara na pele negra. Lembrei de Santiago, não a reflexão sobre o material bruto, mas o filme que o João Moreira Salles não fez.