quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ossang

Se aproveitássemos uma folga e levássemos em conta a premissa, geralmente usada como acusação, de que alguns diretores nada mais fazem que reciclar o mesmo filme dezenas de vezes, premissa que discordo, claro, o cineasta francês F. J. Ossang - desconhecido do grande público e praticamente indisponível na internet - poderia ser considerado um caso exemplar. Ainda que homenageado na última Mostra de São Paulo por meio de uma retrospectiva - tímida - que, para além de alguns curtas, exibiu os longas O Tesouro das Ilhas Caninas (1990), Doctor Chance (1997) e Dharma Guns (2010), não posso afirmar que o diretor tenha sido um sucesso entre os espectadores, as sessões não foram lá das mais concorridas, a maioria dos críticos saiu no meio da exibição da primeira película, o debate ao final da jornada não contou com mais de dez pessoas. Aliás, nada mais irritante que o movimento dos jornalistas culturais durante as inúmeras sessões da Mostra, sempre saindo antes dos filmes acabarem, chegando bastante depois do início, simbolizando um absurdo desespero por assistir mais filmes que o humanamente possível. Vira-tempo neles. Seja como for, lamento pelos que não quiseram percorrer o mundo imaginário resgatado pelo diretor francês em cada um de seus trabalhos: entre um road movie e uma falsa femme fatale, atualiza o noir perpassando a releitura da releitura que é resgatar Godard sem perder os vínculos com as próprias fontes primeiras da literatura policial do século XIX, dos quadrinhos da primeira metade do século passado, assumindo uma clara e respeitosa influência do cinema mudo, de um modus operandi do filme B de ficção científica, cada plano enquadrado numa fotografia impecável (em preto e branco ou colorido, tanto faz). Ossang, sobretudo, se delicia naquele clima de conspiração que recheia nosso imaginário da Guerra Fria, que marca os filmes de James Bond, apostando em absurdos, rock, The Clash e frases sem nexo no intuito de sugerir sentidos quase abstratos, mas que exercem a função essencial de recurso narrativo no densificar, entre um vírus mortal e outro, a atmosfera da paranóia. Parece confuso e é, inclusive, porque as imagens parecem apagar cuidadosamente os vestígios de tempo, não apenas consolidando um continuum passado-futuro, mas uma sucessão de tempos atemporais e disjuntivos entre si, no entanto, reunidos em torno de um único tempo diegético maior. Ossang é ambíguo: ora parece estar debochando de uma tradição cinéfila francófona, da erudição estéril, das personagens que falam como se recitassem, que pegam livros e lêem grandes frases sobre a existência do homem, reafirmando sua ligação com o movimento punk, com a quebra de um discurso intelectual de classe, e ora parece se filiar ao discurso que condena e prestar suas homenagens à essa tradição. A bagunça é tamanha pela junção de momentos em que personagens sérias demais zanzam em situações patéticas, quase como se a seriedade fosse falsificada para alavancar uma ironia e por outros momentos em que na sequência, o filme se torna sério e muito sério. Suas obras parecem ter até uma fórmula de núcleos - ok, arquétipos: o suposto herói em crise, não uma femme-fatale, dois ou três incógnitas com atitudes arbitrárias e extremadas, um suposto vilão que fala para a câmera e se perde em longos mónologos gradiloquentes sobre o nada. Eduardo Coutinho uma vez respondendo uma intervenção do público, comentou que tinha problemas, mas admirava o diretor Frederick Wiseman, justamente por ele fazer o mesmo filme há trinta anos, o que se estabelecia como uma tremenda prova de coerência estética e política. Ossang - e digo isso cheio de admiração - segue o mesmo caminho.

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