terça-feira, 29 de novembro de 2011

Negociação

Joaquim tomou nota em seu caderninho que a diferença entre pegar um ônibus na sua cidade natal e em outra cidade qualquer se fundamentava no simples fato de que na primeira, ele necessariamente entrava, sentava, abria um livro e dormia, enquanto na segunda, terceira ou quarta, ele entrava, sentava e observava atento as miudezas do mundo. Todo santo dia que passava três vezes o tempo de viagem, entre a sua casa e o trabalho, apertado dentro de um coletivo lotado, com idosos passando mal, crianças chorando e um cheiro de suvaco daqueles, desejava avidamente matar o prefeito das mais criativas formas. Joaquim matutava com fé: lembrava da overdose de suco de cenoura que lera em algum livro e prosseguia confabulando até chegar na tartaruga arremessada por uma águia que matou o dramaturgo grego Ésquilo. Aliás, numa semana dessas, ele resolveu tomar uma cerveja e doze quartinhos com o líder da torcida organizada do maior time das redondezas para, finalmente, conseguir mobilizar a verdadeira revolução na sua cidade. Terminaram bêbados, não pagaram a conta, mas voltaram de táxi. Deixaram os protestos para outro dia.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Para não esquecer a barbárie

"Dor é uma sensação desagradável que varia do desconforto leve ao sofrimento escrutinante, geralmente associada a um processo destrutivo atual ou potencial dos tecidos e que se expressa através de uma reação orgânica e/ou emocional".
Algum dicionário velho
Se fosse possível traçar um brevíssimo inventário de objetos, produzidos ao longo da história da humanidade, que carregassem consigo uma matriz da dor e da opressão de algumas classes sobre outras ou do próprio homem sobre a natureza, de preferência traduzindo essa intenção em formas tipográficas, o resultado seria próximo dos recentes trabalhos do artista plástico José Paulo, reunidos na exposição Para nunca mais me esquecer. Logo no primeiro salão, nos deparamos com com uma série de cinco quadros pequeninos, pintados em preto e branco, com uma faca cravada em figuras dúbias, geralmente associadas ao desenvolvimento da educação no país, como livros e carteiras. No entanto, para além de um debate sobre a censura que se insere cada vez mais democraticamente dentro do seio da sociedade, o interesse do recifense, ao lançar facas também sobre poltronas e colchões, aponta para uma representação da domesticação de indivíduos sobre indivíduos através de relações de poder bastante pontuais, por vezes, subterrâneas, tais quais as entrelaçadas entre os professores e seus alunos, os psicólogos e seus pacientes, os profetas e seus fanáticos ou os/as cafajestes e suas/seus amantes. A ideia de barbárie que está em jogo, não é apenas a da ordem etnocêntrica que julga o Outro como selvagem por desconhecer e não compactuar com seus valores culturais, mas também da palavra enquanto símbolo e sinônimo enraizado durante o Século XX para traduzir uma era onde os desejos foram suplantados pela violência ou que os sonhos tiveram de se desviar a todo momento da tirania.

O primeiro ambiente da exposição é completado por duas esculturas que digladiam a atenção de um visitante distraído e que, mesmo bastante dedicado cognitivamente, resiste a entrar no labirinto semântico das proposições poéticas. Na primeira delas, um grande letreiro composto de duzentas peças reproduz em cerâmica, a partir dos moldes tipográficos utilizados em cordéis, a definição de "dor", retirada de algum dicionário desatualizado e usada como epígrafe deste texto. A força embutida no conceito repousa justamente na abertura de sentido que ele carrega, podendo ser aplicado a diferentes gradações entre o universo material e imaterial. A segunda obra, a que deu origem ao projeto, é uma construção caótica, baseada na imponência de 26 (ou seriam 28?) “ferros de marcar boi” entulhados uns sobre os outros, conjurando uma espécie de alfabeto doloroso a partir das letras entalhadas nas extremidades. A obra remete ao paradoxo de estarmos inseridos, enquanto sujeito e enquanto objeto, num processo civilizatório em que inúmeros preceitos da realidade foram e são instaurados a partir da barbárie: seja ela explícita, pele queimando, seja ela emocional, pele sofrendo. Para José Paulo, “o ser humano marca um animal através do queimar ou mesmo mutila outro ser humano, afetando irreversivelmente sua memória celular, energética e social. Acredito que isso repercute naquele momento e a partir daquele momento, atravessando décadas e gerando traumas em diferentes gerações”.

Como bem lembrou Derek Walcott, Prêmio Nobel de Literatura e autor do poema épico "Omeros", em debate recente na Fliporto, “nosso maior legado colonial é o idioma, nós nos expressamos todos os dias através de um código cuja marca histórica é a dor”. Ele usou esse argumento para justificar a maneira como sua obra discute a própria presença da língua na sociedade, defendendo o uso de expressões e gírias que se desviam da norma culta, estabelecendo pontes com dialetos, afinal como já dizia Manuel Bandeira, "a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / vinha da boca do povo, na língua errada do povo / língua certa do povo". Para José Paulo, sua exposição "trata dos caminhos que a humanidade pode escolher, como alguns são impostos por meio de sofrimento e como ainda assim nos resta algum livre-arbítrio. Meu objetivo é brincar com o limítrofe da escolha entre essas possibilidades”. Para tanto, o artista, que sempre teve um apreço pelo jogo que envolve as escalas e as dimensões do que procura representar (ou reapresentar), produziu carimbos siameses gigantes, objetos únicos que dão continuidade ao seu projeto “repetir, repetir, repetir”, que trazem em suas extremidades, num jogo de conteúdo e forma, conceitos opostos como “approved” e “denied”; “positivo” e “negativo”; “nunca” e “sempre” ou “original e có­pia”. É uma pena que carregam o ranço do não manuseamento dos museus, afinal carimbos são feitos para carimbar, no caso carimbar as paredes e, numa perspectiva um tanto Lygia Clark, tais artefatos atingiriam sua magnitude através do toque que transforma aquilo que é, que está sendo, numa reminiscência do que foi.

A exposição basicamente é toda constituída por materiais comuns ao nosso repertório ancestral, como madeira, ferro, barro e papel, e em duas das obras, o recifense resgatou uma espécie de memória de objetos extintos, como máquinas de escrever ou os próprios carimbos, tornando-os instrumentos de reativação temporal de procedimentos. Aproxima, assim, os simples e aparentemente neutros caracteres - produtores de uma carga simbólica - aos contextos sociopolíticos ditatoriais da década de 1970. Por fim, encerrando o debate sobre determinadas culturas que impõem regras e valores sobre outras, seja num âmbito macro como nas guerras, seja num ambiente micro dentro de uma residência, José Paulo comenta que ao ver a foto da menina afegã Aisha, que teve o nariz e as orelhas mutiladas pelo marido e se tornou capa da “Revista Time”, sentiu um terror imenso. Como para conseguir resolver essa questão dentro de si e meio que lançar essa violência para outro campo, desenhou três retratos de, segundo Umberto Eco, "seres feitos para amar e serem amados", símbolos de beleza da cul­tura ocidental - Brigit­te Bardot, Grace Kel­ly e Elizabeth Taylor - no auge de suas juventudes e removeu seus narizes. “Estamos vivendo numa lógica da imagem de mídia, você olha para algo bastante chocante, mas no outro dia esquece e já procura a próxima aberração. Procurei, então, me apropriar de ícones que definiram o que é beleza no nosso imaginário para potencializar o impacto”.

domingo, 13 de novembro de 2011

[projetotorresgemeas]

[projetotorresgemeas] from [projetotorresgemeas] on Vimeo.

Mesmo que renda noites a fio de conversas pelo telefone, não vou me prolongar no assunto porque já escrevi sobre ele e continuo acreditando nas palavras anteriores, acreditando mais ou menos na verdade, de modo que só queria fazer uma breve ressalva sobre o lançamento do [projetotorresgemeas], especialmente tomando como referência o debate que se alastrou pelos cinemas e pela internet a partir do curta realizado independentemente por cerca de sessenta colaboradores (entre eles, eu o/). Sinto que, de maneira geral, as pessoas estão do mesmo lado da luta e criticam a construção desumanizada de edifícios, anotando os efeitos ampliados na vida coletiva nos últimos dez anos, como o trânsito permanente, a falta de investimentos em transportes públicos, o não apoio aos meios alternativos ou mesmo a poluição do Rio Capibaribe. No entanto, muitas vacilam em suas justificativas, batendo repetidas vezes em razões equivocadas, transformando soluções cinematográficas contundentes em argumentos trôpegos. O que está em jogo não é um processo de demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica "quem vive em casa é bom, quem vive em edifício é lobo mau". Ok, pessoal, bem menos. Sem dúvida, o debate principal reside num olhar sobre a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma, a princípio uma discussão estética que, claro, não deixa de ser profundamente política, pois atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de desenvolvimento da cidade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras (sob o aval da Prefeitura e total supressão da lei dos doze bairros sancionada em 2001). O fato é que Recife está se transformando em um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas "para outro lugar" ("Gentrification"), capitalizando cada metro quadrado no mercado imobiliário, dando corpo ao paradoxo onde a fileta básica de caráter público deixa de ser condição do espaço urbano, o que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma cultura de shopping contaminada em todos os patamares da vida social. Cada vez mais, como é muito bem representado em Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, espaços privados, imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, emulam espaços públicos em seus parquinhos, quadras, academias e piscinas particulares. Todos os sessenta indivíduos que participaram do [projetotorresgemeas] se mostraram inquietos com a situação, queriam protestar, revelar o nível problemático que atingimos, de tal modo que o filme funciona - para além das dissonâncias internas - como um manifesto que marca o fim da melancolia e da nostalgia enquanto pontos de fuga do cinema pernambucano, um cinema que me parece andar cada vez menos de ônibus, assumindo um tom acima para reafirmar sua militância cidadã diante da paisagem arquitetônica da cidade. Lamentar para sempre não nos levaria a lugar algum.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O tempo como equivalente geral


Quase toda ficção científica carrega consigo um projeto de futuro, na maioria das vezes um projeto distópico, que tanto alinha suas proposições aos ecos pessimistas dos livros 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, como revela os desencantos políticos de sua própria época. Decerto, o gênero mais amado pelos geeks de plantão manifesta seu vigor quando, mesmo se passando daqui a dois ou duzentos anos, mesmo adentrando uma galáxia muito muito distante, estabelece alegorias e parábolas do presente, apontando os riscos extremados de nossa própria alienação. É como se escorresse pelas imagens uma ansiedade em abalar o simulacro de perpétuo estado de conforto ou nosso desinteresse pela vida coletiva da cidade. Para o bem ou para o mal, esse parece ser o objetivo de O Preço do Amanhã, roteirizado, produzido e dirigido pelo ainda promissor Andrew Niccol, que tem na bagagem obras como Gattaca, assinou o roteiro de O Show de Truman e claramente é devoto de THX-1138, de George Lucas. No entanto, se essas referências demonstravam uma peculiar sensibilidade no trânsito de universos metafóricos, na comunhão entre acidez e leveza, na busca por segmentos perspicazes para falar sobre categorias como classe, meios de comunicação, tempo, dinheiro, trabalho, padronização, infelizmente, nesse seu novo filme, ele evidencia a inexistência de um imperativo categórico em sua carreira, não só transformando crítica social em descarte - assim co­mo fez em seu fraco S1m0ne - como emulando a vontade de transformação revolucionária por meio de uma vista superficial da realidade. Antes de tudo, o herói está de volta.

O filme parte, inegavelmente, de um ponto de partida interessante, um sistema político em que o tempo serve para definir as fronteiras dentro de uma sociedade de classes, como se o gene do envelhecimento tivesse sido abolido, os ricos vivem séculos, até milhares deles, andam devagar, comem saboreando cada pedaço, enquanto os pobres resumem suas existências a cerca de 30 anos, estão sempre apressados, dando pequenos golpes para escapar do fim. Todos nascem com um relógio no braço que começa a funcionar a partir dos 25 anos, diminuindo segundo por segundo e definindo também a aparência que o indivíduo terá para o resto da vida. Esse pressuposto lembra bastante toda discussão do tempo ocioso como tempo criativo, do tempo livre e burguês que Adorno comenta como instância necessária a produção intelectual ou mesmo, remete, ao cartaz erguido na USP a poucos dias atrás, com a frase "meu pápi paga tudo para mim, por isso tenho tempo de ser revolucionário". Certamente, vivemos num ritmo tão puxado de trabalho no dia a dia que podemos até reclamar, lamentar, blábláblá, mas quase nunca arrumamos tempo para, assertivamente, nos posicionar ou nos manifestar, estamos sempre cansados, precisando de mais e mais dinheiro, de forma que os que terminam "se politizando" teoricamente são os que estão mais afastados do chão e do cotidiano dos trabalhadores, são filhos cujas contas chegam absolutamente pagas. Sequer sabem o custo de um mês de suas próprias vidas.

Na lógica do filme, todos os serviços e produtos também são pagos por meio de horas, minutos, dias, semanas, o tempo funciona como equivalente geral, seria o mesmo que dinheiro numa perspectiva marxiana e não apenas identifica a classe, como desmonta o processo de mobilidade social: existem inúmeros fusos que hierarquizam geograficamente os indivíduos, quanto mais se consome, quando não se tem tempo, mais rápido se morre. Ou seja, um grupo de magnatas domina uma grande quantidade de tempo e um grupo enorme precisa repartir o resto ínfimo - que ainda é abocanhado em parte pelo sistema financeiro dominado pelos magnatas. O Preço do Amanhã coloca o protagonista Will Sallas, interpretado pelo cada vez mais ator e menos cantor Justin Timberlake, no papel de um pobre rapaz que, ao salvar um rico suicida nas ruas do gueto, cujo grande drama era justamente o de viver para sempre, termina por ganhar uma fortuna de tempo. Enquanto ficção científica, o filme se alinha aos projetos futuristas que abdicam de uma tecnologia de ponta para reconstruir os espaços urbanos, os meios de transporte ou comunicação, as próprias relações interpessoais, apostando justamente no contrário, na pouca diferença entre a data distante e os dias de hoje, naturalizando o debate instaurado em uma para as duas instâncias.

Ao seguir para o fuso horário dos mais ricos, ele termina sendo perseguido por policiais corruptos conhecidos como controladores do tempo, que fazem valer na força as regras do sistema, mas que são adestrados através da ração de horas diária. Sallas termina sequestrando [Síndrome de Estolcolmo] tendo um caso com a filha de um banqueiro. O filme, entretanto, assinala desde o início seu entrave ideológico: para além de uma visão reducionista, de diálogos que parecem depor contra o próprio universo inventado, das atuações e da fotografia, o casal tenta instalar uma revolução do tempo, redistribuindo o excesso dos mais ricos com os mais pobres, numa clara referência ao compartilhamento dos meios de produção. Além da referência a Bonnie e Clyde e Robin Hood, o filme parece acreditar, ou mesmo vender, a hipótese de que as transformações políticas só acontecem enquanto atos de filantropia (dos mais ricos, dos políticos), como se as pessoas fossem instintivamente incapazes de reivindicar por elas mesmas. Num momento em que ve­mos o mundo se mobilizando em ações coletivas de ocupação de espaços públicos - e que o Brasil parece ser a lesma dentro desse processo histórico, o cinema de Niccol soa perdido no tempo, despregado da sua contemporaneidade, ainda sofrendo da clausura narrativa do “messiânico ho­mem escolhido” que surge para nos salvar.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O diabo está lá fora

(Publicado originalmente no Filmologia)

“Leaning, leaning, safe and secure from all alarms,
Leaning, leaning, leaning on the everlasting arms,
Oh, how sweet to walk in this pilgrim way,
leaning on the everlasting arms,
Oh, how bright the path grows from day to day,
leaning on the everlasting arms,
What have I to dread, what have I to fear,
leaning on the everlasting arms,
I have blessed peace with my Lord so near,
leaning on the everlasting arms”

Nos inexatos minutos que antecedem o final da infância, quando cada ato carrega sua finitude em potência e as desventuras corriqueiras aparentam uma discreta melancolia, todas as crianças são obrigadas a lidar com o peso das mudanças, marcando seus sorrisos pueris com um gradual amargor. Querem (e não querem) crescer, não sabem ao certo o que estão para ganhar e o que estão para perder, rompem só de birra as fronteiras instituídas por seus tutores – sem, no entanto, irem muito longe, afinal seus olhos já vislumbram a alteração do mal de aspecto ’sobrehumano’ por um demasiadamente ‘humano’. Habitam, como bons filhos da classe média, uma redoma segura, atravessada por alguns traumas, claro, mas cujos portões reluzem uma curiosidade mística ao separarem e demarcarem quem são eles de quem são os outros. Basta, então, um poderoso ruído ou uma presença estranha, o namorado manco de alguma vizinha, um tio desconhecido de nariz enorme, o atropelamento de um cachorro ou o linchamento de um ladrão para que os vultos da noite ganhem materialidade não enquanto olhar distante, apaziguado e borrado por uma grade, mas enquanto olhar saído do sugo de seus próprios cotidianos. Rapidamente veem em frangalhos a invisível harmonia firmada entre uma coragem fictícia e o seus imaginários de proteção, o ‘lá fora’ e o ‘aqui dentro’ se tornam espaços indiscerníveis, fantasias de resistência, bicicletas e bonecos são relegados ao desuso, deixando o caminho livre para o diabo entrar.

Diante do inevitável, aceitam que é preciso separar uma caixinha com todas as certezas infantis e deixá-la sozinha embaixo do guarda-roupa, abrindo-a sistematicamente a cada dois ou três anos, como um lamento por constatarem a diminuta dimensão de suas existências em relação ao mundo preenchido por um tempo que não para de passar. Antes, tudo era etéreo. Como diz um melancólico Cascão em uma das tirinhas de Maurício de Souza, “envelhecer é aprender a se despedir das coisas” ou como comentou Ziraldo, remetendo ao seu clássico da literatura infantil, O Menino Maluquinho, na passagem de página onde está escrito que “o menino maluquinho não conseguiu segurar o tempo! E aí o tempo passou. E, como todo mundo, o menino maluquinho cresceu” é o momento em que mais adultos desabam e choram. Pois bem, parece que é justamente nessa transição de ciclos, onde crianças de um mundo isolado lidam com o horror de um mundo expandido, instante em que os medos – de perder a mãe, de ser abandonado, de ser esquecido, de não ser amado – parecem ganhar forma física, que O Mensageiro do Diabo arma sua premissa: na primeira cena, garotos brincam de esconde-esconde, um deles, após contar até cem, procura seus colegas escondidos, mas termina encontrando o corpo de uma mulher morta nas escadas do porão. Sabemos o tom do único filme dirigido por Charles Laughton: crianças encontram a morte e são obrigadas a crescer.

Aliás, se existe uma lenda reproduzida sem pudor no sistema cinematográfico, dessas que adoramos contar, é a de que a gênese do medo em um bom filme de horror, ou que beire o horror sem perder o estranhamento, reside, sobretudo, na presença de uma criança: seja quando ela encarna o próprio mal, gerando um oxímoro que envolve em um único corpo inocência e perversidade, seja quando representa apenas a ingenuidade diante de um mundo terrivelmente voraz, seja quando ela assume o papel do espectador pronto a se impressionar. O Mensageiro do Diabo segue simultaneamente pelos três caminhos. No primeiro caso, claro que o diretor não deixa de lado a crueldade ímpar da infância, marcada pela cena em que vários garotos zombam dos dois irmãos que perderam o pai na forca, no entanto, não temos bem uma criança, mas um falso profeta que se apresenta como cordeiro para ludibriar o seu aspecto de lobo. Trata-se de um golpista que se passa por pastor para seduzir, roubar e matar jovens viúvas, mas cujo incontestável horror surge da religião fundada na heterodoxa relação combinada particularmente entre ele e Deus. Na lógica de Harry Powell não temos como saber em qual casulo reside o maior perigo: se no amor que o carrasco promete à mãe de Pearl e John ou se no ódio conservador que carrega de antemão. Os dedos do vilão são repetidamente colocados em destaque, a palavra ‘amor’ em primeiro plano surge sob os auspícios da palavra ‘ódio’, tornando ainda mais robusta a dualidade do mal que se apresenta como humano (e menos como sobrehumano).

No segundo caso, temos as crianças como marcas da ingenuidade e pureza sendo assoladas pela chegada desse estranho, sua aproximação com a mãe e o rápido casório. Se toda narrativa se baseia na iminência e confirmação da tragédia, na insuficiência da autodefesa, O Mensageiro do Diabo joga bem com o princípio do cinema como janela, do cinema como tela de projeções dos espectadores (transformados em espectadores-crianças), não no intuito de agradar ou revelar, mas de gerar angústia. Passamos o filme todo esperando pelo pior, basta uma nota de dólar recortada voar da boneca de Pearl para os pés do pastor para sentirmos arrepios, o diretor acentua o contraste através da atmosfera funesta entrecortada pela recorrente imagem de crianças dormindo, olhos fechados em corpos espremidos. Não há melhor representação da fragilidade. Depois de abandonarem a fita branca no sentido que Michael Haneke aplica em seu filme mais recente, John and Pearl fogem por entre os perigos da noite, numa dimensão-limbo meio real e meio onírica, através do rio cercado de árvores com aranhas e sapos. Laughton faz da busca por um refúgio, uma travessia de quem encara o mundo pela primeira vez, um amadurecimento precipitado pela ausência materna, o momento em que os infantes da rua e somente da sua rua abrem os portões e vão além. Acolhidos por uma senhora, John se mostra como um bicho arisco, desses que de tão amáveis levaram inúmeras pancadas até se tornarem amargos e pessimistas. Quando ela consegue conquistar sua confiança, a infância – ou a segurança que ela representa – parece estranhamente retornar.

Há uma obsessão relacional na construção bloco a bloco de O Mensageiro do Diabo, que vai da técnica básica de enquadramento às fagulhas insurgentes de psicanálise, não dotando a película de um aspecto de aprendizado cinematográfico, tudo é evidente e vigoroso, claro, mas o roteiro preza por uma moral desviante, de modo que cada recurso clássico parece surgir como seu igual invertido. Daí temos as cenas irmãs da reação de John diante da prisão do pai no início e do carrasco Powell ao final, tal qual os numerosos planos baseados no princípio de choque: a mulher casamenteira convence a mãe de John a arrumar um marido, na sequência o trem onde está Powell esbraveja e anuncia; o pastor ajeita cuidadosamente a gravata do menino, na sequência o garoto é enquadrado sem cabeça; o vilão exclama sobre a mulher que acabou de matar – “ninguém pode dizer que não fiz de tudo para salvá-la” -, logo em seguida surge um dos planos mais belos do filme, ela embaixo do rio, amarrada ao carro, fantasmagoria entre cabelos e algas. Nessa fase de transição, onde não são mais crianças nem outra coisa, onde o mundo mágico e real parecem travar um constante duelo, Powell, Robert Mitchum, com a inclinação lânguida de seu corpo, um cinismo frio, o tom de voz hipnótico, sedutor e o semblante do olhar de ressaca, encarna muito bem esse mal que se divide na dualidade entre ser humano e sobrehumano. Nos inexatos minutos que antecedem o final da infância, a única forma das crianças resistirem é prorrogando um pouco mais o tempo.