sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O tempo como equivalente geral


Quase toda ficção científica carrega consigo um projeto de futuro, na maioria das vezes um projeto distópico, que tanto alinha suas proposições aos ecos pessimistas dos livros 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, como revela os desencantos políticos de sua própria época. Decerto, o gênero mais amado pelos geeks de plantão manifesta seu vigor quando, mesmo se passando daqui a dois ou duzentos anos, mesmo adentrando uma galáxia muito muito distante, estabelece alegorias e parábolas do presente, apontando os riscos extremados de nossa própria alienação. É como se escorresse pelas imagens uma ansiedade em abalar o simulacro de perpétuo estado de conforto ou nosso desinteresse pela vida coletiva da cidade. Para o bem ou para o mal, esse parece ser o objetivo de O Preço do Amanhã, roteirizado, produzido e dirigido pelo ainda promissor Andrew Niccol, que tem na bagagem obras como Gattaca, assinou o roteiro de O Show de Truman e claramente é devoto de THX-1138, de George Lucas. No entanto, se essas referências demonstravam uma peculiar sensibilidade no trânsito de universos metafóricos, na comunhão entre acidez e leveza, na busca por segmentos perspicazes para falar sobre categorias como classe, meios de comunicação, tempo, dinheiro, trabalho, padronização, infelizmente, nesse seu novo filme, ele evidencia a inexistência de um imperativo categórico em sua carreira, não só transformando crítica social em descarte - assim co­mo fez em seu fraco S1m0ne - como emulando a vontade de transformação revolucionária por meio de uma vista superficial da realidade. Antes de tudo, o herói está de volta.

O filme parte, inegavelmente, de um ponto de partida interessante, um sistema político em que o tempo serve para definir as fronteiras dentro de uma sociedade de classes, como se o gene do envelhecimento tivesse sido abolido, os ricos vivem séculos, até milhares deles, andam devagar, comem saboreando cada pedaço, enquanto os pobres resumem suas existências a cerca de 30 anos, estão sempre apressados, dando pequenos golpes para escapar do fim. Todos nascem com um relógio no braço que começa a funcionar a partir dos 25 anos, diminuindo segundo por segundo e definindo também a aparência que o indivíduo terá para o resto da vida. Esse pressuposto lembra bastante toda discussão do tempo ocioso como tempo criativo, do tempo livre e burguês que Adorno comenta como instância necessária a produção intelectual ou mesmo, remete, ao cartaz erguido na USP a poucos dias atrás, com a frase "meu pápi paga tudo para mim, por isso tenho tempo de ser revolucionário". Certamente, vivemos num ritmo tão puxado de trabalho no dia a dia que podemos até reclamar, lamentar, blábláblá, mas quase nunca arrumamos tempo para, assertivamente, nos posicionar ou nos manifestar, estamos sempre cansados, precisando de mais e mais dinheiro, de forma que os que terminam "se politizando" teoricamente são os que estão mais afastados do chão e do cotidiano dos trabalhadores, são filhos cujas contas chegam absolutamente pagas. Sequer sabem o custo de um mês de suas próprias vidas.

Na lógica do filme, todos os serviços e produtos também são pagos por meio de horas, minutos, dias, semanas, o tempo funciona como equivalente geral, seria o mesmo que dinheiro numa perspectiva marxiana e não apenas identifica a classe, como desmonta o processo de mobilidade social: existem inúmeros fusos que hierarquizam geograficamente os indivíduos, quanto mais se consome, quando não se tem tempo, mais rápido se morre. Ou seja, um grupo de magnatas domina uma grande quantidade de tempo e um grupo enorme precisa repartir o resto ínfimo - que ainda é abocanhado em parte pelo sistema financeiro dominado pelos magnatas. O Preço do Amanhã coloca o protagonista Will Sallas, interpretado pelo cada vez mais ator e menos cantor Justin Timberlake, no papel de um pobre rapaz que, ao salvar um rico suicida nas ruas do gueto, cujo grande drama era justamente o de viver para sempre, termina por ganhar uma fortuna de tempo. Enquanto ficção científica, o filme se alinha aos projetos futuristas que abdicam de uma tecnologia de ponta para reconstruir os espaços urbanos, os meios de transporte ou comunicação, as próprias relações interpessoais, apostando justamente no contrário, na pouca diferença entre a data distante e os dias de hoje, naturalizando o debate instaurado em uma para as duas instâncias.

Ao seguir para o fuso horário dos mais ricos, ele termina sendo perseguido por policiais corruptos conhecidos como controladores do tempo, que fazem valer na força as regras do sistema, mas que são adestrados através da ração de horas diária. Sallas termina sequestrando [Síndrome de Estolcolmo] tendo um caso com a filha de um banqueiro. O filme, entretanto, assinala desde o início seu entrave ideológico: para além de uma visão reducionista, de diálogos que parecem depor contra o próprio universo inventado, das atuações e da fotografia, o casal tenta instalar uma revolução do tempo, redistribuindo o excesso dos mais ricos com os mais pobres, numa clara referência ao compartilhamento dos meios de produção. Além da referência a Bonnie e Clyde e Robin Hood, o filme parece acreditar, ou mesmo vender, a hipótese de que as transformações políticas só acontecem enquanto atos de filantropia (dos mais ricos, dos políticos), como se as pessoas fossem instintivamente incapazes de reivindicar por elas mesmas. Num momento em que ve­mos o mundo se mobilizando em ações coletivas de ocupação de espaços públicos - e que o Brasil parece ser a lesma dentro desse processo histórico, o cinema de Niccol soa perdido no tempo, despregado da sua contemporaneidade, ainda sofrendo da clausura narrativa do “messiânico ho­mem escolhido” que surge para nos salvar.

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