quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O artista e o curador


Quando um sabichão resolve discutir sobre arte contemporânea, tocando a ponta do bigode e estruturando seus argumentos a partir de expressões como intenção do artista, território de afetos ou potências invisíveis, certamente trinta e quatro mil gansos morrem no paraíso. E continuarão morrendo, afinal desde que assumi o ofício de escrever sobre artes visuais há cerca de sete meses, não demorei muito para perceber - e vez ou outra se lambuzar em - todos os cacoetes e vícios típicos do campo, algo que o projeto Fumografia do coletivo Mau Agouro já havia antecipado uma década antes. Trata-se de um universo que parte dos textos curatoriais megalômanos que pouco transcendem um vocabulário específico, passando pelo discurso quase decoradinho do artista institucionalizado pela justificativa de editais até chegar na preguiça reprodutiva dos críticos especializados ou não. Acontece que a arte contemporânea, expressão já confusa por esse recorte temporal-qualquer-coisa-que-pode-ser-para-sempre, sofre do mal da explicação e por mais que exista um subtexto sobre a interpretação livre, sobre a não necessidade de entender, inúmeras obras produzidas todos os dias soam simplistas diante dos projetos discursivos que as antecedem, formatando um contexto em que artistas carregam consigo o desespero de serem adotados e explicados - até para si próprios - por um curador com uma varinha de condão. Todos querem seu ready-made, mas definitivamente o ready-made não é para qualquer um. 

O apatetado insight recebeu algum estímulo depois que visitei a exposição CONTRA_USO, assinada pelo pernambucano Márcio Almeida - que não é meu irmão, primo, tio, nem nada - mas cujo conceito-invólucro fundamentado pelo curador carioca Marcelo Campos, que anda fazendo uma curadoria besta aqui pelo Recife, determinou o caminho semântico dos vinte e oito trabalhos apresentados. "Sua produção artística articula materiais, métodos e conceitos que esgarçam as fronteiras disciplinares, ampliando ou aplicando o sentido de “arte”, entre aspas, em eventos do uso comum. Olha-se a cidade e a atenção recai sobre a própria indisciplinaridade gerada por aqueles que transgridem as regras, que abrem caminhos enviesados, que a ocupam à força, em vez de aceitar a regularidade dos traçados mais oficiais". O texto de abertura procura apontar as fotografias, pinturas, vídeos e esculturas-instalações como vislumbres de um registro, seja dos momentos 'criativos' de descanso dos trabalhadores de um prédio, seja dos objetos que deslocam sua funcionalidade para atingir uma ligeira transgressão. Claro que a partir desse ponto poderíamos citar o livro A Invenção do Cotidiano, de Michel de Certeau, destacando seus conceitos de estratégia e tática. O primeiro pode ser traduzido através das ferramentas que o sistema de ordem utiliza para impor sua hegemonia e manipular relações de força, enquanto o segundo se resumiria às ações pontuais dos subalternos, que na impossibilidade de virarem o jogo, apropriam destas mesmas ferramentas no intuito de fraturarem a opressão.

O problema é que a exposição só acontece através do texto, usa do curador como via de explicação rebuscada na tentativa de replicar a discussão por meio das obras, de forma que fora os fios que montam um macaco, tradicional meio de roubar luz usados por residentes e comerciantes, ou mesmo o carrinho de compras inundado por um monte de areia, é abissal a distância entre a materialidade exposta, a artimanha por conexão do curador, os argumentos fundadores do francês ou mesmo a aplicação em espaços urbanos do sociólogo Rogério Proença. Há uma sensibilidade trôpega na adaptação de um sistema sociológico que reflete sobre a forma como ocupamos o espaço e a maneira como apropriamos as tecnologia do cotidiano, deixando uma clara sensação de que a exposição está nivelando por baixo. De qualquer modo, a iniciativa procura dar continuidade a um projeto bem mais consistente e independente da palavra do especialista, chamado Entre o Novo e o Nada, uma ação realizada em 2006, constituída pela negociação de um barraco numa comunidade pobre da região metropolitana por uma casa nova de alvenaria, comprada com o dinheiro recebido pelo artista do 43º Salão das Artes Plásticas de Pernambuco. Segundo Márcio, "essa proposta tratava muito mais das perdas que dos ganhos, afinal apenas durante ou depois do processo é que os moradores se dariam conta das redes de amigos, vizinhos e lembranças que deixariam para trás". Ainda assim, produziu um interessante manual de construção, Fast-House, onde estabelece um paradoxo entre a linguagem formalizada do escrito e a futura moradia improvisada com pedaços de madeira encontrados no meio da rua.

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