domingo, 25 de março de 2012

Farda

Adelma é cabeleireira. Adelma tem uma irmã chamada Adilma. Adelma folga nas quartas e domingos, gosta de curar a ressaca do sábado com cerveja e detesta fazer cortes especiais em clientes carecas. Eles esperam que Adelma, munida de um pente e uma tesoura, faça o milagre do cabelo em suas cabeças. O caso é que todo mundo se mete na vida de Adelma, ela recebe mais conselhos que as mulheres da igreja do padre Helder, inclusive, nas quartas e domingos, quando está de folga, Adelma é o grande tema das conversas das outras funcionárias. Passam horas e horas tricotando tin tin por tin tin da vida de Adelma, discordando, concordando e apostando em cima dos acontecimentos mais recentes passados pela amiga. A irmã de Adelma, Adilma, fez de tudo para ela, Adelma, se casar com um rapaz trabalhador do Alto do Capitão, Ademar. Enfim, casaram, mas poucos meses depois, Ademar teve um problema no trabalho, foi acusado pela secretária do patrão de ter furtado um material do estoque. Ademar não pensou duas vezes e ofendido pediu demissão. Tinha uma honra a zelar, mas depois de passar semanas procurando um novo serviço, tinha experiência com limpeza e segurança, estava vivendo o limbo de não se achar bom o bastante. Adilma então virou o jogo e não parava de sussurrar no ouvido da irmã: "Adelma, deixa de ser besta, mulher, você precisa de um homem para ajudar nas contas, não para gastar o que é seu. Se liga, Adelma". Claro que havia algo de hipócrita nas acusações, afinal quando saíam juntas, Adelma e Adilma, às vezes Adelma, Adilma e Ademar, quem sempre terminava pagando a conta era Adelma. Num sábado, depois de cortar sei lá quantos cabelos, Adelma chegou em casa cansada, colocou a única farda de molho num balde verde, mas o marido tinha preparado uma panelada de feijão preto, com tudo que tem direito, de forma que Adelma andando já de calcinha não teve escapatória, cancelou o mitigado sono, tomou aquele banho, chamou as amigas por cima do muro, botaram o som no quintal e se entupiram de comida, cantoria e cachaça até amanhecer. Adelma terminou deitada com seu nego, Ademar, fazendo amor até mais tarde, apagando absolutamente nus com o sol resplandecendo em seus corpos. Quando Adelma acordou, Adelma desceu o morro e passou o dia na casa de Adilma, tomando umas cervejas para limpar o corpo da noite anterior e escutando umazinha sem sal que apareceu por lá dizendo que tinha conhecido Zezé di Camargo no camarim de um show no Clube Português. "Ele me disse que nunca tinha contado isso para ninguém, mas vocês sabiam que É o Amor nasceu quando ele estava pensando na Maria Bethânia? Quer dizer, em uma música dela, chamada Negue. Eu nem conheço, mas ele disse que os primeiros versos surgiram de uma vez só: eu não vou negar que sou louco por você, sou maluco para te ver, eu não vou negar. Isso faz uns vinte anos, ele disse que tinham na época várias músicas, mas o produtor queria um sucesso, daí ele chegou em casa, disse que deu aquele comichão e assim nasceu. Pra você ver, né? Uma música tão bonita e nasce assim tão rápido”. Adelma sorriu, mas não estava realmente interessada, bebeu mais uns doze copos e terminou dormindo por lá mesmo. Na segunda, acordou para trabalhar, esqueceu a carteira na casa de Adilma, subiu o morro com pressa e lembrou que tinha esquecido de tirar a única farda do molho. Ficou desesperada, torceu a roupa o quanto pode, colocou no sol, o sol não estava lá essas quenturas, ligou para a chefe, explicou a situação e pediu para trocar a folga da quarta para a segunda-feira. A chefe não deixou, disse que ela podia chegar um pouco atrasada, trouxesse um ferro de passar roupa, porque chegando no salão, Adelma secava com o secador, depois Adelma passava a roupa e mesmo que ficasse molhadinha, Adelma ia ter que trabalhar de farda. E assim foi.

terça-feira, 20 de março de 2012

Vigário

Não que gostasse de soar dramático anunciando aos seus amigos a maior polêmica de todos os tempos da última semana; nunca teve simpatia pelos palermas que cultivavam em qualquer coffee break uma síndrome de plantão da Globo, mas antes mesmo do dia que Marcelo colocou o pé pela primeira vez em seu novo trabalho, um jornal popularesco do centro turístico da cidade, a Prefeitura já estava realizando uma reforma nos paralelepípedos da rua vizinha, numa rotina basicamente composta pela retirada, limpeza e reorganização das pedras. Como gosta de quantificar suas histórias e usar expressões de seu tio Nogueira, Marcelo nunca deixava de ressaltar: "digamos que essa obra já tem coisa de ano, mais de ano, todo dia os trabalhadores estão lá, mas acho que eles recebem ordens para irem devagar, devagarinho, quase parando". Recentemente, no entanto, o rapaz começou a notar para além da lentidão que algumas partes, depois de finalizadas, eram em seguida reabertas, as pedras novamente retiradas, limpas e reorganizadas, de modo que as obras simplesmente se arrastavam, se arrastavam e nunca chegavam ao fim. Depois de todo esse tempo, apenas uma rua de um projeto de oito, a Vigário de alguma coisa, tinha quase chegado ao fim do processo que oficialmente era chamado de requalificação, contava com incentivo de R$ 1,2 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento e deveria ser concluído em seis meses. O pior acontecia com as calçadas. Primeiro foram inteiramente consertadas e depois inteiramente destruídas, afinal os pedreiros precisaram incluir as tampas de esgoto / encanamento, algo que tinha sido aparentemente esquecido quando os urbanistas / restauradores deram a largada na pedra fundamental. É um caso pequeno, localizado, mas Marcelo tomava-o para si como parábola do funcionamento de tudo em sua cidade, cuja administração do prefeitinho manco vinha tontamente trabalhando na lógica da tentativa e erro, com a incrível margem de mais erros e menos tentativas, de modo que todos os dias antes de subir as velhas escadas de madeira, tinha a impressão de que estavam lavando dinheiro público bem ali, na frente de todos, literalmente no meio da rua. O rapaz pensava no assunto praticamente todos os dias, mas não conseguia tirar da cabeça uma história que tinha escutado anos antes, reforçada no início destas obras, falando que a iniciativa previa embutir os fios que inundam a vista aérea da região para potencializar a revitalização do patrimônio histórico. Nenhum fio tinha desaparecido da paisagem e Marcelo temia que as escolhas dos gestores terminassem no mesmo caminhar, destruindo e virando lesma tudo de novo para então descobrir, a impossibilidade de fazer o serviço. Só que aí os paralelepípedos não poderiam ser reaproveitados.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Barros se despede de Bernardo

Inúmeros autores costumam criar personagens que ganham sobrevida em mais de uma obra, alguns chegam a confundir sua necessidade de escrita com a necessidade de vida de suas crias, de modo que acompanhamos passo-a-passo um amadurecimento brotar diante de nossos olhos, geralmente transmutado de acordo com a incondicional situação narrativa. No caso do andarilho Bernardo, Bernardo da Mata, além de personagem do universo poético de Manoel de Barros, sua condição é ser o primeiro habitante de uma cidade pantaneira e famoso por encurtar águas, apanhar rio com as mãos e apertar contra os vidros. No recém-lançado livreto “Escritos em verbal de ave”, o autor encerra sua relação através da morte melancólica e cândida de seu protagonista. Trata-se, portanto, de uma obra de despedida, como uma carta inundada de combinações, sendo também uma obra de linguagem, de desconcertos hipotéticos provindos da permanente presença da natureza: “Deixamos Bernardo de manhã / em sua sepultura / De tarde o deserto já estava em nós”. O livro estimula uma experiência diferenciada de leitura, não existem propriamente páginas, mas uma dobradura simples e infantil sem ordem clara, que remonta todo trabalho do poeta em investigar e evocar leituras dos tempos primeiros.

Aos 96 anos, Manoel de Barros se firmou como um dos poetas mais importantes do País, seu estilo encontra sua concretude em versos simples, nunca simplórios, e em palavras e construções doces, nunca piegas. Na recente publicação, mantém seu fino aspecto sereno, renova sua percepção das pequenezas do mundo para lidar com a perda de um amigo inspirado no seu irmão de criação, o rapaz Bernardo que costumava ser inocente como uma ave: em forma de trechos curtos, semelhantes aos haikais, monta uma espécie de mapa com os sapos da manhã, as garças que batem suas asas à tarde, o silêncio das pedras, as borboletas e os ventos, os rios e os sotaques. “Queria que um passarinho / escolhesse minha voz / Para seus cantos”. O livro começa com uma “desbiografia” de Bernardo, que já esteve presente nos poemas “O guardador de águas”, “Livro de pré-coisas” e “Menino do mato”, e termina com uma lista de “desobjetos”, que incluem entre outros, “um prego de farfalha”, “um fazedor de amanhecer”, “um guindaste de levantar vento”, “um ferro de engomar gelo” e “um alarme de silêncio”. Manoel de Barros parece se despedir enquanto coleta fagulhas de beleza, como se precisasse traçar um inventário para inflar os doloridos suspiros antes da queda.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Best Youth

Não costumo escrever muito sobre música, primeiro porque não tenho propriedade técnica, só me arrisco numa gaita experimental no fundo da piscina e às vezes sequer consigo identificar os instrumentos em cena, segundo porque não sou dos que ficam vasculhando e raspando os cantinhos da internet atrás de novidades, geralmente me contento com o que já escuto, gosto, alguém coloca no Facebook e pronto. Também tem o reles fato de que passei boa parte da minha juventude restritamente satisfeito com bandas novas da década de 1960, em alguns momentos sentia-me livre do que era produzido no meu tempo. Contudo, no último ano, tenho entrado em cada vez mais sites específicos de música, ornando um percurso meio mambembe dentro do que vem sendo produzido recentemente, de modo que por meio destes apontadores estou de quando em vez assumindo minhas próprias epifanias sonoras. Uma delas foi inspirada pelo duo português Best Youth, formado pelo músico Ed Rocha Gonçalves e pela cantora Catarina Salinas, que só possuem cinco músicas lançadas no EP Winterlies - disponível para download - e só tenho a dizer que a última vez que entrei num estado semelhante foi quando escutei o disco Third, do Portishead e estava fossilizado num amor platônico. Acho que basta.

Hang Out

Best Youth - Hang Out from Best Youth on Vimeo.


Honey Trap

Best Youth - Honey Trap from Best Youth on Vimeo.


Wait for me

Best Youth - Wait for me from Best Youth on Vimeo.

Dentro da matéria


"Nos devaneios cósmicos primitivos, o mundo tem corpo humano"
Gaston Bachelard. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martin Fontes, 1998.

Muitos pintores produzem suas telas sem uma inspiração específica e sem a pretensão de antever o resultado do processo criativo, entram no baile de imprevistos, partindo de uma espécie de caos de sentido ou de vazio insustentável, no intuito de abrirem caminho através de seus próprios inconscientes. Seguindo esse caminho, a artista francesa Solange Magalhães, que contabiliza 60 anos desde sua primeira visita ao País, apresenta a exposição Pinturas Recentes no Museu do Estado de Pernambuco, procurando isolar o caminho da arte, das curvas apreendendo formas, até fundi-lo com as texturas do surgimento do univer­so. "Enquanto vou pintando, costumo colocar a tela de cabeça para baixo, de cabeça para cima até o momento em que ela define sua posição e afirma sua coerência. Tenho me interessado ultimamente por coisas que vêm de muito longe, uma pintura do invisível, despertando o lado cósmico e voltando às origens”, ressalta a artista. Apropriando o discurso de pensadores como Merleau Ponty e Gaston Bachelard, Solange evitou curadores enquanto desanuviava os elementos primevos das formações rochosas do planeta, com ênfase na terra, no vento e no fogo, raramente também dedicando suas pinceladas abstratas ao reino das águas.

A discussão presente na exposição coloca em perspec­tiva o nascimento do univer­so, a evolução dos corpos celestes e o desenvolvimento do corpo humano, co­mo numa tela em que os a­néis de um suposto planeta se assemelham aos círculos que formam o nosso olho. Para a artista, que estudou física teórica na juventude, “se pensarmos que o universo veio de um átomo é como se naquele momento inicial, todas as relações atuais estivessem condensadas, prontas para desabrocharem. Meu trabalho obriga os espectadores a mergulharem dentro de si mesmos, exigindo que entrem em áreas que geralmente evitam e sentem pavor”. O cruzamento entre universo orgânico e corpo celeste certamente nos remete às imagens gelatinosas de 2001 - Uma Odisséia no Espaço (EUA, 1968), de Stanley Kubrick, de A Árvore da Vida (EUA, 2011), de Terence Malick e dos documentários variados produzidos pela BBC. Solange ao produzir suas séries costuma pintar várias telas simultaneamente e nunca escolhe títulos, aliás ela própria monta todo material bruto prévio no melhor estilo francês, para então sobrepor camadas e camadas que sugerem as nuances da expansão descontínua pós big bang. Seus quadros instigam uma viagem dentro da matéria, escavando fundo o não paradoxo de "sermos um todo e pertencermos simultaneamente a outro todo".

quinta-feira, 8 de março de 2012

Infância como utopia



Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda. (...) Essa infância, aliás, permanece como uma simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira. Gaston Bachelard. Poética do Devaneio, 1996, p. 85.
Os primeiros anos de nossas vidas marcam um tempo em que os sonhos mais inocentes ainda são permitidos, a criança não assimilou as repressões e normas que vão se enraizando individual ou socialmente, de modo que o comportamento cotidiano demonstra uma liberdade de quem não apenas copia ou deseja copiar o universo dos adultos, mas desenvolve uma poética de invenção própria; por vezes, antagônica. Nesse sentido, os vídeos produzidos por Nan Goldin, Cao Guimarães e Paula Trope, reunidos na exposição Infância, sintetizam essa forma de inteligência, cujas reverberações surgem através das percepções e dos deslocamentos do próprio corpo, em algum momento assumem um caráter simbólico e fantasioso, dando um contorno involuntariamente político à época em que, segundo Piaget, melhor desenvolvemos nossa criatividade. Moacir do Anjos, curador da mostra, por sua vez, ressalta que a iniciativa "trata a infância como uma utopia, uma passagem em que não fomos tolhidos o suficiente e inúmeros projetos de futuro concorrem entre si. Trata-se de um momento em que as regras são ignoradas ou desfeitas com pouco custo". 

Queridinha instantânea da geração instagr.am e de todos que curtem o lápis de cor, a fotógrafa americana Nan Goldin está em cartaz em diferentes cidades do mundo simultaneamente, apresentando em algumas delas Fire Leap, seu mais recente slideshow. A iniciativa funciona como uma caixinha de música em que deposita um discreto afeto em dezenas de fotos, produzidas nos últimos trinta anos, de crianças de seu círculo pessoal íntimo em situações que variam da melancolia infantil ao desprendimento de máscaras. Além de participar da Bienal de São Paulo de 2010 e de ver sua exposição ser censurada no Rio de Janeiro, por causa do intenso Balada da dependência sexual, a artista se tornou reconhecida pela "característica despojada da fotografia caseira ao registrar diferentes formas de família, legitimando no campo da arte o baixo padrão da imagem", assinala o curador. Evocando um ímpeto do cotidiano, as fotos alinhadas e acompanhadas de uma trilha cantada pelos infantes, incluindo o clássico Space Oddity, geram uma atmosfera de sinfonia obscura e pueril, quase como se adentrasse estados de espírito próprios de um tempo pelo qual todos nós já atravessamos. 

O mineiro Cao Guimarães, um dos nomes nacionais mais fortes no cruzamento entre arte, cinema e experimentação, conta com dois vídeos que apreendem o mundo de maneira singular, tomando o acaso das situações como forças mobilizadores de fratura da ordem oficial. Da janela do meu quarto registra uma menina e um menino em posições dúbias, pois não sabemos se são irmãos, apesar da notável aproximação familiar, ou sequer temos certeza se estão numa briga ou numa brincadeira. Há um desajuste nos corpos que nos coloca diante daquela situação terrível, geralmente vivida pelos pais, de não sabermos se devemos ou não interferir, lembrando por vezes o nervosismo da combinação entre crianças hiperativas e pais desatenciosos. Peiote segue um caminho similar: uma criança mexicana se infiltra no meio de uma dança indígena dos adultos, mas ironicamente não segue nenhuma das convenções da coreografia ensaiada, gerando uma sucessão desautorizada diante de uma manifestação cujo semblante se liga à resistência popular. Evidencia, assim, uma fluência para além da circularidade das tradições, lembrando situações típicas de qualquer boa festa.

Por fim, a carioca Paula Trope apresenta Contos de Passagem e Traslados, o primeiro vídeo reunindo entrevistas com crianças que moram e trabalham nas ruas do Rio de Janeiro, comunicando sensações menos pelas palavras e mais pelos gestos associados à falta de luz da captação precária, enquanto o segundo alinha fotografias de pequenos brasileiros e cubanos, aproximando por meio de suas projeções lugares apartados, não apenas pela distância espacial. Sua abordagem percorre um universo marginal da cidade maravilhosa, o espaço na contracapa dos cartões postais, mas sua hesitação no campo da representação gera uma sensação datada, não apenas por uma tendência documental da última década, mas especialmente pela justificativa quase burguesa - ao menos assistencialista - de aproximação patriarcal quando ali já está plenamente firmada uma distância social. O segundo projeto parece mais intenso no sentido de estimular o desejo de um imaginário criativo da tenra idade,  fazendo com que no jogo de idas e vindas com fotografias, os participantes terminem esboçando rastros de um encontro cuja robustez se desloca da escassez material para edificações de subjetividade. A nostalgia, menos como lamento, mais como projeto, desenha o itinerário da infância como (re)descoberta da utopia.

terça-feira, 6 de março de 2012

Chronicle

"I killed all the rainbows and the species"
M83. The Bright Flash.
(Publicado originalmente no Filmologia)

Praticamente todos os jovens e adultos estão prontos a reviver a intensa vontade de ganhar superpoderes, saciando um desejo em geral desenvolvido durante a infância, através dos quadrinhos ou das inúmeras horas diante da televisão, não apenas materializando a experiência de voar, levantar pesos inimagináveis ou lançar raios com as mãos, mas, essencialmente, buscando escapar da entediante vida cotidiana que encurrala todos os nossos sonhos pueris. Aproveitando do que há de mais melancólico nesse contexto, Poder Sem Limites (Reino Unido / EUA, 2012), primeiro filme dirigido por Josh Trank e com roteiro escrito por Max Landis, filho do diretor John Landis, consegue aproximar o campo do impossível sobrehumano do espectador até ficar rente ao seu corpo, especialmente por seguir a linhagem de produções conhecidas como filmagem encontrada. Iniciada com A Bruxa de Blair (1999), essa tendência foi popularizada com REC (2007), Cloverfield (2008), Atividade Paranormal (2007) e até o mais recente A Filha do Mal (2012), firmando-se como obras que usam da estética documental da câmera caseira, tremida e carregada geralmente por um dos atores, para intensificar um efeito de realidade, revisitando e subvertendo os clichês de diferentes gêneros cinematográficos caros à Cultura Pop (filmes de zumbi, filmes de monstro, filmes de fantasmas, e, nesse caso, os filmes de super-heróis).

Contudo, a diferença de Poder sem Limites é que o filme parece consciente das outras produções similares e anteriores, como se colocasse de antemão em cima da mesa, um registro de filiação ao gênero espertinho da última década, revelando num perspicaz comentário metalinguístico, sinais de um esgotamento do tal efeito de realidade. O plot é bem simples: três amigos, Andrew, Matt e Steve, encontram uma estranha formação luminosa no interior de um buraco e adquirem poderes de telecinese, capacidade de voo e força extrema. O primeiro, protagonista e responsável pela câmera, encarna o protótipo do loser, é espancado regularmente pelo pai e pelos colegas do colégio, tem uma mãe com doença terminal, de modo que se os superpoderes servem primeiro como caminho de integração, com pequenas brincadeiras descontraídas, levantar a saia das garotas, fazer pegadinha na loja de conveniência, depois assumem a dimensão da vingança. Nesse meio tempo, os dois personagens secundários parecem estabelecer caminhos alternativos, um vomita filosofia de bolso com leves traços de misticismo oriental, o outro reforça o papel de ser popular e alcançar o sucesso. No entanto, o passo adiante dado pelo diretor reside no fato de conseguir, dentro do formato caseiro, superar a visão de um dos personagens como a visão da câmera, aproveitando da telecinese para transformar a imagem subjetiva num registro em terceira pessoa.

Naturalmente, isso cria na narrativa uma obsessão pela câmera que está filmando, os mais perfeccionistas perceberão algumas falhas espaciais entre uma tomada e outra, mas o grande lance do filme se assenta na ampliação de filmagens, através de todas as câmeras que nos cercam, como se as histórias pudessem ser contadas apenas pelas lentes programadas para registrar e nos proteger. Sejam as de segurança, as jornalísticas, as policiais ou mesmo celulares. Nesse sentido, a captação generalizada, a naturalidade em querer ver o vídeo de qualquer tragédia que ouvimos falar, termina confundindo essa complexa rede imagética com o que tomamos como inconsciente coletivo, ou seja, uma herança psicológica formada também por esse arcabouço compartilhado de referências visuais, cada vez mais comum entre grandes grupos de seres humanos. Youtube chora. Num breve e não tão interessante texto de Nildo Viana, ele compara a aventura dos super-heróis como o conceito desenvolvido por Jung e ampliado por Erich Fromm, no sentido que o primeiro expressa ou carrega um desejo de poder, de estabelecer, por meio da fantasia e de arquétipos, uma ruptura com a burocracia, instituições e repressões da vida individual ou social presentes no segundo.

Caridade

"A maioria dos homens arruínam suas vidas por força de um altruísmo doentio e extremado – são forçados, deveras, a arruiná-las. Acham-se cercados dos horrores da pobreza, dos horrores da fealdade, dos horrores da fome. É inevitável que se sintam fortemente tocados por tudo isso. As emoções do homem são despertadas mais rapidamente que sua inteligência; e, como ressaltei há algum tempo em um ensaio sobre a função da crítica, é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a idéia. Conseqüentemente, com intenções louváveis embora mal aplicadas, atiram-se, graves e compassivos, à tarefa de remediar os males que vêem. Mas seus remédios não curam a doença: só fazem prolongá-la. De fato, seus remédios são parte da doença. Buscam solucionar o problema da pobreza, por exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma teoria mais avançada, entretendo o pobre.

Mas isto não é uma solução: é um agravamento da dificuldade. A meta adequada é esforçar-se por reconstruir a sociedade em bases tais que nela seja impossível a pobreza. E as virtudes altruístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta. Os piores senhores eram os que se mostravam mais bondosos para com seus escravos, pois assim impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e compreendido pelos que o contemplavam. Da mesma forma, nas atuais circunstâncias na Inglaterra, os que mais dano causam são os que mais procuram fazer o bem. Por fim presenciamos o espetáculo de homens que estudaram realmente o problema e conhecem a vida – homens cultos do East End – virem a público implorar à comunidade que refreie seus impulsos altruístas de caridade, benevolência e coisas desta sorte. Fazem-no com base em que essa caridade degrada e desmoraliza. No que estão perfeitamente certos".

Oscar Wilde. A Alma do Homem sob o Socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2009.

quinta-feira, 1 de março de 2012

CDU Várzea 45

Lá estava eu mais uma vez no décimo oitavo sono, quando o motorista tentou atropelar um menino de rua, terminou batendo o fundo do ônibus num papa entulho e rasgou boa parte da lateral do coletivo. Acordei com o barulho sem sacar nadica de nada, fiquei meio nervoso porque precisava descer e não queria perder a parada novamente, voei longe diante do maior burburinho do mundo entre os passageiros e continuei pescando com os olhos a cada dois vírgula sete segundos. Chegamos ao Cais de Santa Rita. Desci. O menino, então, apareceu gritando: "você tentou fuder a minha alma, mas terminou se fudendo". Eis que o motorista respondeu: "e tu que passa fome". O menino pegou uma pedra, desejei com todas as forças que ele acertasse a cara do motorista, o motorista buzinou desesperadamente para chamar a polícia, o menino largou a pedra no chão, saiu pela tangente e ficou isso por isso. Ok, gente, quero descer.