segunda-feira, 30 de abril de 2012

Pelo desejo de fantasia no pós-colonialismo


(Publicado originalmente no Filmologia)

Quando se comenta sobre a história da representação num duelo e namoro entre a pintura, a fotografia e o cinema, uma história do centro contada pelo centro para o centro, a invenção de Nicéphore Niépce e a subsequente provocação dos irmãos Lumière são sinalizadas como artefatos fundadores, não apenas por terem redirecionado o desejo realista das artes visuais e libertado a potência dos sonhos naquele campo, estimulando demandas que desembocariam no Modernismo, mas especialmente por esboçarem pela primeira vez uma gama imagética do mundo nunca dantes experimentada e consumida pelo próprio mundo. Os franceses, nesse período, financiavam inúmeros técnicos para viajarem os quatros cantos em busca de registros, de modo que lugares mais ou menos exóticos apenas contados, relatados, fantasiados, ganhavam um rosto e um vislumbre de olhos, fundava-se ali um estatuto de visão eurocêntrico, que procurava diminuir gradualmente o espaço das lendas e tradições orais mais ou menos exageradas. Ao serem confirmadas, desfeitas, relidas, as fantasias cediam o seu poder particular de incompletude e ambiguidade à uma fria instância de certeza (e, claro, só aparente certeza). 

Aliás, como comenta o sociólogo Paulo Menezes, ninguém poderia imaginar que tais artefatos pudessem se transformar numa das influências mais determinantes do olhar no século XIX e século XX, afinal imagens tão perfeitas do exterior desorganizavam em absoluto os esquemas pelo quais as pessoas decifravam o caminho datado das representações. Aguçava-se, assim, uma capacidade de memória individual e coletiva, o passado íntimo e social deixava de lado o imaginário muitas vezes preconceituoso para ganhar uma existência concreta, ainda que paulatinamente se confirmasse como uma postura de dominação do centro em relação às periferias, uma guerra de objetivos políticos constituída através da produção de subjetividade. Por isso, quase um século depois, no processo de descolonização, o cinema de Djibril Diop Mambéty parece recontar todo esse dilema por vias esquecidas, pela volta de um desejo de fantasia, não apenas repensando a representação produzida pelos colonizadores, mas indo além da afirmação identitária proposta inicialmente pelos colonizados. Nem o apelo exótico de uns, nem a autocomplacência de outros. 

O senegalês em Contra’s City, Badou Boy, Touki Bouki ou La Petite Vendeuse de Soleil é responsável por outro tipo de desenho do rosto de seu país, como se livre da necessidade de ser fiel ao retrato proposto por seus antecessores, presos a necessidade do negro representar o próprio negro, do senegalês contar a história do Senegal, estivesse mais preocupado com os motivos do sorriso, com os desejos escondidos, criando máscaras sobre máscaras dentro da instância do sonhar. Parece contraditório, mas a história é inversa em relação ao centro: se fotógrafos pioneiros como Seydou Keita, cujos eloquentes retratos produzidos na transição entre colônia francesa e independência, registravam a contradição corporal de nativos que desejavam serem identificados como europeus ou por outro lado, que desejavam reforçar suas raízes do que verdadeiramente significava ser africano, Mambéty surge da superação de esboço da realidade por uma imprescindível abertura irônica de afetos e pulsões. Para ele, a liberdade pós-colonial era desconhecida até então, atachada entre regimes de dominação e resistência, do velho modelo dicotômico, surgindo apenas quando fosse possível não esquecer o passado, não negar o presente e, ainda assim, ser plenamente possível fantasiar. 

Certamente, na história do centro contada pelo centro para o centro, a fotografia encerrou as funções utilitárias da pintura, colocando como questão não o caso da fotografia ser ou não um tipo de arte, mas ressaltando um problema anterior: se a fotografia e consequentemente o cinema não havia alterado a própria natureza da arte. Quase um século depois, no continente africano, a questão da representação assume um dilema ainda mais profundo, pois na impossibilidade de pensar uma história da imagem africana, inicialmente limitada ao registro de colonizadores e em sequência submetida a uma necessidade de autorepresentacão dos colonizados, é como se no primeiro caso os negros só existissem quando os brancos falassem de sua existência e no segundo, como só existissem quando passassem a serem vistos pelos brancos. Apesar da importância de pensar por essa lógica, afinal vemos todas as partes do mundo muito mais do que vemos a África, matizando um estatuto do olhar bastante cruel, mesmo no segundo caso, a liberdade ainda parece enclausurada pro uma obrigação de resposta. 

 Emerge, então, numa tendência brilhante de intuição que se desvia de ambos os caminhos, o cinema de Mambéty explorando as formas para além do colonialismo e do renascimento cultural pós-colonialista, introduzindo de maneira bastante poética – e não submetendo o continente – ao contexto de globalização. O cineasta parece mais preocupado em lançar imagens que menos representam o seu país, o Senegal, por meio do embate entre hegemônico ou subalterno, ambos preocupados com seu próprio realismo, mas traçando um inventário de sonhos obstruídos, por vezes infantis e ingênuos, que revelam a necessidade que sobrevoa o conflito direto, para abarcar, numa política de pequenos passos, um universo que se perde. O ambiente é hostil, sim, as dificuldades são imensas, sim, as consequências foram desastrosas, claro, mas a negação da luta por um imaginário particular parece ser mais importante, afirmando assim uma luta subjetiva, que utiliza dessa realidade exterior como dimensão espacial de um ensaio alegórico. Há em Mambéty um despretensioso projeto de invenção cotidiana e cinematográfica. 

 O caminho percorrido adentra universos da microesfera, da relação entre as pessoas, os marginais dentro da marginalidade, a ironia como modelo de verdade, os anseios contraditórios de cosmopolitismo, mixando referências encrostadas através de entradas invisíveis, redesenhando o lugar não pela concretude, mas justamente pelo intangível. A fragilidade e bravura de seus personagens denotam inclusive atualizações internas em sua carreira, entre a década de 1970 e sua produção final da década de 1990, pensando, inclusive, no pulo do gato de não-produção durante quase vinte anos. Do primeiro momento para o segundo, redescobre novas instâncias de liberdade para com as próprias que havia instaurado, de modo que claramente abandona a vontade de experimentação formal por uma intensificação dramática, nunca piegas, sempre onírica. Brinca com os gêneros, aposta nos ângulos, destrincha suas fábulas duras e certeiras, como as frases de fundo dos Mammy Wagons (caminhões de passageiros que carregam placas similares às brasileiras), pensando que nenhuma condição é permanente, que a vocação de fazer ou não fazer cinema é transmutável, quiçá efêmera, que melhor que retratar apenas o mundo material dos olhos é preciso, enquanto podemos, apostar nos mundos imaginários de outros olhos.

Badou Boy (Senegal, 1970), de Djibril Diop Mambéty


(Publicado originalmente no Filmologia)

Não foram poucos os cineastas que nos anos iniciais de carreira se apropriaram da figura do bandido para reforçar os contornos de um cinema experimental e de vanguarda, alinhando a transgressão narrativa que propunham nos ângulos, planos, cortes e durações aos elementos diegéticos da história contada. É quase como se, esboçando o poder menos como propriedade e mais como estratégia, procurassem contestar um padrão estético e assim afirmar uma postura política por meio da marginalidade como arma inquieta, hedonista e liberta. Trata-se de um ponto que, correndo o risco do imaginário glamourizado, liga o cineasta enquanto ator de um mercado simbólico ao personagem enquanto ator de um sistema de representação. Ambos marginais. Jean Vigo, por exemplo, usou de adolescentes revolucionários, um misto radical de suas experiências com a memória anárquica do seu pai, na luta contra a ordem estabelecida pelos professores em Zero de Comportamento (França, 1933). No seu único produto audiovisual, Um Canto de Amor (França, 1950), Jean Genet revela o desejo sexual de presos como caminho para ultrapassar as fronteiras da prisão, colocando as fantasias sexuais enquanto instâncias de criação / transgressão. O espírito libertário atravessa fendas nas paredes, fechaduras, transpõe guardas noturnas, cadeados, assume forma de fumaças passadas boca a boca, de falos eretos, peitos ossudos e suados, não tomando conhecimento das restrições da gaiola. Só pelo cinema francês, a lista poderia seguir interminavelmente, com Truffaut esboçando seu alter-ego da juventude rebelde em Os Incompreendidos (França, 1959) ou Godard fazendo das infrações de Michel Poiccard para com o mundo em Acossado (França, 1960), sua própria vontade de rejeitar as normas institucionalizadas do universo cinematográfico. Acontece que a simbologia de Bonnie e Clyde ronda essa vontade de arte-crime, uma necessidade dos cineastas fazerem os outros escutarem um som ensurdecedor, abrirem os olhos para a marca inevitável da história, por meio de uma rede de insubordinações inseridas em variadas esferas, fundamentando a transversalidade indiscutível entre a estética e a política. 

No caso do média-metragem Badou Boy, o senegalês Djibril Diop Mambéty segue alguns cacoetes do cinema que aprendemos a identificar como de vanguarda – ele próprio é considerado um dos pioneiros do experimental no cinema africano – filmando uma câmera que parece estar durante uma filmagem, num truque metalinguístico que poderia ser classificado como ingênuo em pleno início da década de 1970, mas que ganha segundas e terceiras camadas pelo uso jazzy do som – ora disjuntivo, ora reflexivo, sempre irônico e auto-irônico – característica que viria a ser uma das marcas de seu cinema. Aliás, a presença de vozes dubladas em tons mordazes, que claramente denuncia uma dificuldade de captação direta, uma aplicação meio Telephone Colorido que chega a beirar Os Trapalhões, aproxima o cineasta do desbunde proposto por Rogério Sganzerla – outro, que tomou a história de um bandido, o da luz vermelha, para dizer como gostaria de fazer a partir dali a história de seu cinema. Ainda que também tenham usado a figura do marginal, cangaceiros, poetas, operários, essa postura é bem diferente da pleiteada por certo cinema terceiromundista, o paradigma que envolve Glauber, Solañas e Getino, pois a política deixa a evidência para encontrar sua potência nas nuances, de forma que Badou Boy fala do pós-colonialismo sem falar, tematiza o lugar do subalterno por relações internas ou por ações lúdicas, formulando uma gama de outras maneiras de contestação, sem deixar de lançar olhares sobre a falta de rumo dos renegados e a incapacidade de organizarem ferramentas de resistência. Há apenas a vontade intensa de viver o sonho da fuga, uma persistência na crença de que a o final feliz está em outro lugar. O filme reporta as desventuras de um garoto transgressor de profunda inclinação onírica, seguindo por um lado a tradição do jardim dos delinquentes já pontuada e, por outro, o diálogo proposto por Jean Rouch em Eu, um Negro (França, 1958) e especialmente Jaguar (França, 1967), nessa busca desesperada pela invenção de pequenas felicidades, aparentemente falsas e ficcionais, onde o rapaz emula cavaleiros, onde o marginal se passa por herói, mas cuja estrutura interior carrega o seu próprio modelo de verdade. 

Certamente o uso do som no filme além de imprimir um caráter pop e cômico acoplado ao cenário paupérrimo, conjugando uma estranha conexão entre riffs do mundo ocidental e interações urbanas subalternas, almeja instaurar a atmosfera do cosmopolitismo periférico, uma espécie de modernidade alternativa, cujas contingências locais desfilam ambiguidades e contradições do processo. Entre marcas sutis da dominação e da resistência, Mambéty aposta em algumas alegorias passageiras, cheias de sarcasmo e humanidade, seja quando denota com um afinco engajado a sutil diferença de classes pelo uso do chapéu, seja pela cena em que o menino brinca com balões coloridos num cenário seco, terroso, com tons que variam entre o cinza dos muros e o marrom do chão. Os balões são levados pelo vento, passam o muro, somem, com um corte preciso entre dois planos, o enfante consegue recuperar. Aliás, a presença humana é que matiza a imagem, as roupas, os panos, adereços, atitudes, mulheres com ânforas, de modo que Badou Boy – arruaceiro, bagunceiro, treloso – segue o jogo de gato e rato com o comissário da polícia, um jogo entre Senegal e a França, terminando seus dias estrangulado pelos sonhos e pelas mãos de seu algoz. Ele não passa de mais um garoto como outros, morto num terreno abandonado e ainda assim, não perde seu interesse pela brincadeira, não se entrega aos braços do conformismo. Mambéty sugere que se nos centros mundiais, a efervescência política e cultural procurava intuir um modus operandi de luta subversiva por meio do uso de flores contra armas, o Flower Power, ali no Senegal, eles estavam literalmente comendo as flores. Não procura, no entanto, despertar a complacência em seus espectadores ou opressores, só acredita que o espírito juvenil é um templo antagônico em relação às figuras de autoridade e aposta nesse universo com uma certeza ímpar. Badou então olha a estrada, usa do velho truque do falso cego, sabe que dali pela frente, um longo caminho lhe espera.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

#Occupyeverything / #Ocupetudo

Ainda que tenha passado despercebida por parte da população, a eclosão simultânea e contagiosa de protestos no ano passado, com reivindicações particulares em diferentes regiões do globo, firmou-se como o maior fenômeno político contestador desde maio de 1968, avizinhando as suas considerações pelas formas de luta similares e a consciência de solidariedade mútua entre as iniciativas. A onda de mobilizações começou com a Primavera Árabe, no norte da África, derrubando ditaduras na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen; prosseguiu pela Europa, com ocupações e greves na Espanha, Grécia e revolta nos subúrbios de Londres, eclodiu no Chile e ocupou Wall Street, o coração especulativo dos Estados Unidos, gerando frequências para diferentes partes do mundo. Justamente procurando pensar o desenrolar dessa sequência de eventos num futuro próximo, a Boitempo Editoral lançou o livro Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (R$ 10, vendido a preço de custo), com ensaios de estudiosos de diferentes áreas, como os filósofos Slavoj Zizek e Vladimir Safatle, o sociólogo Emir Sader e o teórico David Harvey. 

O estopim do protesto na Tunísia aconteceu no final de 2010 com o suicídio por imolação (ateando fogo ao próprio corpo) de Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas que protestava contra a apreensão de suas mercadorias, simbolizando não apenas um desespero individual, mas ressonando como um esgotamento psicológico de muitos povos em um mesmo momento. No Brasil, tivemos não apenas a sistemática repressão policial em marchas da maconha, durante a expulsão / massacre dos moradores de Pinheirinho em São Paulo, mas na própria maneira como sistematicamente o poder político vem cedendo ao poder econômico, empurrando modelos de desenvolvimento urbano cada vez menos preocupados com os direitos públicos e coletivos. Basta ver a situação de inúmeros recifenses, que sentem na pele todos os dias, a condição logística de assentamento vertical / destruição de patrimônio cultural, que resulta num trânsito cada vez maior, assim como soluções profundamente equivocadas. 

Nos diferentes países houve a mesma forma de ação: espaços públicos foram ocupados pelos manifestantes exercendo a sua cidadania, os eventos foram organizados através de redes alternativas e todo movimento parte de uma vontade espontânea sem vínculos partidários. Para David Harvey, essa passagem do mundo virtual para o mundo real é chamada de união dos corpos no espaço público e essencial para efetivar as mudanças. Zizek, por sua vez, ressalta que o ano de 2012 é importante para dar continuidade ao processo: "os carnavais saem baratos - a verdadeira prova de seu valor é o que permanece no dia seguinte, o modo como o nosso cotidiano se transforma". Assim, aponta o cuidado que os cidadãos / rebeldes precisam ter não apenas com os inimigos, mas com os falsos amigos, afinal "eles tentarão transformar os protestos num gesto moralista inofensivo". Já no belo ensaio Amar uma Ideia, Vladimir Safatle ressalta que as forças opressoras podem repelir protestantes, mas não podem destruir ideias. "Elas explodem contextos, dão novas configurações para uma relação radical e fundamental de igualdade. Manifestantes não podem ser tratados como sonhadores vazios sem a dimensão concreta dos problemas". Se a frase deles começa com "não acreditamos na proposta que vocês nos apresentam", logo se torna em "agora sabemos o que queremos".

#Ocupeestelita

Dispostos a repensar a forma como o projeto de desenvolvimento urbano do Recife vem sendo conduzido e propor alternativas aos empreendimentos encampados por grandes construtoras na Cidade, o coletivo Direitos Urbanos, atualmente com quase 3,5 mil integrantes, está organizando no próximo domingo, dia 15, durante todo o dia, o primeiro movimento estilo occupy no Cais José Estelita. A iniciativa, que vem contando com uma farta movimentação via redes sociais, especialmente Facebook, visa protestar contra o projeto Novo Recife, que pretende demolir os antigos armazéns da região para erguer quinze torres, entre prédios comerciais e residenciais de alto luxo.

A manifestação ganhou força pouco antes de duas audiências públicas, que contaram com uma massiva participação popular e fortificaram a petição online entregue na primeira ocasião (que até ontem contava com 2207 assinaturas). Entre os membros da mesa que condenavam o projeto, o representante da sociedade civil, professor Tomás Lapa da UFPE, foi enfático: "Não tenho intenção de impedir o progresso, nem a transformação necessária da Cidade, mas isso deve se fazer segundo a ética. A paisagem não é só uma imagem visual, é algo feito pela participação, pela atitude, pelas crenças, pelas práticas sociais, pelo dia a dia dos cidadãos. Aquela área não pode ficar restrita ao uso ou ao usufruto de uma pequena parcela da população". Em resumo, a paisagem do Cais, uma das mais bonitas da Cidade, não pode ser privatizada.

Ele também reforçou que "a lógica de verticalização é uma lógica que segrega as pessoas nos condomínios, eliminando completamente qualquer capacidade de circulação, de mobilidade ou de acesso direto às mais banais necessidades". Assim, a movimentação no domingo, que contará com apresentações musicais, oficinas de stencil, discussões e participação de diferentes figuras representativas da sociedade, procurará mobilizar justamente a população contra a construção desumanizada de edifícios, anotando os efeitos ampliados na vida coletiva, além de ressaltar a falta de investimentos da Prefeitura em transportes públicos e o não apoio aos meios alternativos, como bicicleta ou transporte fluvial.

Experiência urbana, experiência estética

Não é surpresa afirmar que a experiência urbana é também uma experiência estética. Se cada vez mais pessoas estão se mobilizando contra o projeto Novo Recife, com construções faraônicas no Cais José Estelita, ou contra os viadutos da Agamenon Magalhães, o impulso parte da vontade em pensar a Cidade como um espaço público a ser usufruído por toda população de maneira coletiva. No entanto, não podemos cair na simplória demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica “quem vive em casa é bom, quem vive em edifício é lobo mau”, afinal trata-se de lançar um olhar sobre a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma, a princípio uma discussão estética que, claro, não deixa de ser política, pois atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de desenvolvimento da cidade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras. O fato é que Recife está se transformando em um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas para outro lugar (Gentrification) e capitalizando cada metro quadrado no mercado imobiliário. A fileta básica de caráter público deixa de ser condição do espaço urbano, o que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma cultura de shopping contaminada em todos os patamares da vida social. Cada vez mais, como é muito bem representado em Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, espaços privados, imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, emulam espaços públicos limpinhos em seus parquinhos, quadras e piscinas particulares. A experiência estética da cidade também pede que conheçamos nossos vizinhos, deixemos nossos filhos na escola sem precisar de carro, pede para utilizarmos as vias não como um lugar em que passamos e deixamos passar a nossa vida, mas um espaço físico e espiritual que definitivamente ocupamos, mantemos relações afetivas e cuidamos.

O artista de quatro mãos


Apesar de existirem inúmeros artistas que demonstram admiração uns pelos outros, assim como coletivos cujos trabalhos giram em torno de uma mesma poética, não é tão comum encontrarmos iniciativas colaborativas em que dois ou mais indivíduos estabelecem uma mútua intimidade e confiança, a ponto de seus traços se tornarem complementares, orgânicos, indiscerníveis numa mesma obra. Com uma pegada de quem já passou inúmeras aulas desenhando enquanto o professor falava e falava, de quem aprendeu a brincar com o tempo através das formas, o recente projeto Imarginal delineia seu emblema, tanto por colocar em consonância um esquema de desenho compartilhado com um lance monocromático detalhista, próximo na técnica e distante no tema da dupla paulista Mulheres Barbadas, como pela atmosfera inquieta e militante criada pelas canetas mais ou menos finas - e ferozes - dos jovens pernambucanos Raone Ferreira e Fernando Moraes. Como diz uma das frases escolhidas por eles para preencher a parede: "me passa um lápis e uma caneta que eu desenho o universo".

Ambos selecionaram / desenvolveram uma série de desenhos, 12 quadros em papel A3 e uma parede conjuntamente preenchida, para a exposição Animal vs Deus, cuja proposta parte de uma perspectiva de cunho religioso para além de um embate pelo sagrado. Enquanto Raone é ateu, Fernando é cristão praticante de uma igreja de rua, a Arca - ação de rua e cultura alternativa com encontros todos os sábados na Praça 13 de maio, mas esse aparente antagonismo inicial serve como ponto criativo, colocando as formas em diálogo e impossibilitando a separação da parte de um da do outro. Há dentro do paralelismo estabelecido, um todo, único, cujas mãos se confundem, gerando uma diegese macabra em que figuras sinistras brotam com texturas rugosas, fazendo com que o tempo de produção das obras - um tempo dilatado - se assemelhe ao tempo dos visitantes desvendarem as minúcias que se escondem em meio aos traços e pontilhados. A dimensão diminuta não só estimula um olhar mais dedicado, poderiam até disponibilizar lupas, como resgata um ato básico do campos da artes, a contemplação, sem o tom carregado que essa palavra ganhou nas rodas culturais, depois dos quilos históricos de afetação e paetês.     

A relação distinta de crença entre Raone e Fernando segue o caminho contrário do contexto contemporâneo em que a religião vem sendo usada como ímpeto de intolerância, de maneira especialmente fascista pelos neo-pentecostais (vide o Pastor Silas Malafaia que recentemente declarou guerra ao que ele chama de Ditadura Gay). “Mesmo com crenças diferentes, temos valores convergentes”, comenta Fernando, afinal “a questão é não usar a fé para impor uma verdade absoluta aos outros“, completa Raone. Essa perspectiva auxiliou a aproximação dos dois nos tempos da faculdade, trocando os cadernos de rabiscos, colocando lado a lado os desenhos até fundarem o Imarginal há menos de um ano, atualmente com ateliê na Rua do Hospício. Aliás, foi nesse espaço que se tornaram mais antenados com os acontecimentos e demandas da cidade, vivenciando de perto a efervescência dos recentes protestos contra o aumento das passagens de ônibus, de modo que alguns de seus desenhos carregam o grafismo “2,15”, em um deles, inclusive, identificado como o número da besta.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A psicanálise segundo Cronenberg


(Publicado originalmente no Filmologia)

Sabemos que entre nós analistas, nenhum deve ter vergonha de seu pedaço de neurose. Mas aquele que, conduzindo-se anormalmente, grita sem parar que é normal, desperta a suspeita que lhe falta a intuição da doença. Eu lhe proponho, pois, que rompamos totalmente nossas relações privadas (Trecho da última carta de Freud a Jung, 1913).

Eu me dobrarei ao seu desejo de romper nossa relação pessoal, porque eu nunca imponho a minha amizade. Quanto ao resto é o senhor, sem dúvida, que melhor saberá o que este momento significa para si. O resto é silêncio. (Resposta de Jung, 1913).

Quando um cineasta repagina visualmente a maneira de apresentar os temas caros da sua carreira, os críticos mais apressados tendem a determinar esse deslocamento como uma guinada estética, apontando às vezes transformações mais aparentes que consistentes. Nesse sentido, o caso do canadense David Cronenberg parece emblemático e a armadilha do rótulo um tanto engenhosa, pois se ao longo de seus filmes investigou, por distintos ângulos e imensa coerência, a encruzilhada que interliga ciência, corpo, mente e sexualidade, o fez através de dois caminhos de vestes distintas, ultimamente encaixados numa falsa dicotomia. Entre as décadas de 1970 e 1990 deleitava-se na escatologia e se aproximava do cinema trash e de outros gêneros escusos, chegou a ganhar a alcunha de Barão do Sangue e Rei do Horror Venéreo, mas com a virada do século assumiu uma limpidez clássica, narrando mais sobriamente sua inquietação com as fronteiras entre a existência humana e as tecnologias da inteligência. No entanto, se muitos espectadores passaram a acessar a obra do diretor justamente após essa limpeza imagética, estranhamente revivendo e expelindo uma hierarquia estilística similar ao grande divisor entre alta e baixa cultura, deixaram de compreender o perverso âmago que dota o cinema dele por inteiro, sem antes e depois, sem pré ou pós, como um verdadeiro totem do pensar contemporâneo (a mesma lógica acomete também o pensamento contrário, o de que Cronenberg bom é Cronenberg sujo).

Em Um Método Perigoso, o cineasta vai diretamente na fonte conceitual de seu projeto estético ao resgatar a amizade e ruptura entre Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael Fassbender), nos anos iniciais da Psicanálise (1904-1913), costurando o fascínio mútuo e embate dos mestres com seus próprios filmes, especialmente no deleite em desvendar os buracos negros e potências repressivas da mente humana. Seu interesse não se restringe ao trabalho de um deles isoladamente, mas justamente no confronto metodológico de projetos, seja pela vontade do primeiro em firmar um campo científico sólido e legitimado, seja pela leve inclinação do segundo em apropriar o misticismo e a espiritualidade como fontes válidas de pesquisa laboratorial. Se em Senhores do Crime, as tatuagens que cobrem absolutamente todo corpo do mafioso russo transforma a pele numa paisagem mnemônica, importando a lógica das cicatrizes carcerárias junto ao processo de intervenção técnica da agulha na carne; se em Scanners a luta entre indivíduos com poderes telepáticos resulta na fusão corporal entre dois irmãos, onde um deles se mostra dominante na aparência (corpo) e o outro na consistência (mente), na produção mais recente o cineasta resgata de maneira ensaística as origens de um discurso, retomando uma eloquente epistemologia sobre as metamorfoses do corpo, passando por dilemas entre instinto, recalque e repressão; as fontes dos estranhos prazeres; a distância entre pesquisador / pesquisado e, novamente, a flexibilidade ética dos meios científicos. Digamos que Cronenberg usa de vestes felpudamente mais literárias e menos sangrentas para meter o dedo visceral nas mesmas feridas.

Jung é um psiquiatra que no início de sua carreira ao mesmo tempo em que aplica a teoria de Freud, a cura pela fala, precisa lidar com suas próprias pulsões sexuais, misturando-se ao universo sobre o qual se debruça, quando se envolve com uma de suas pacientes. Trata-se da futura psicanalista Sabine Spielrein (Keira Knightley), uma jovem russa que chega ao hospital psiquiátrico em meio a uma crise histérica, momento em que o cinema de Cronenberg aparece inteiro implicado no corpo da mulher, através da curvatura anormal de sua coluna, dos deslocamentos frontais da mandíbula, da falta de ar, voz e do prazer que ela revela sentir, desde pequena, quando era agredida pelo pai. Se a cena inicial é irmã da cena final na aparência, na primeira Sabine berra dentro da carruagem, sendo segurada por dois homens, na segunda, ela também dentro da diligência, mas controlada, grávida e oficialmente discípula de Freud, os detalhes indicam como a ciência havia transformado a sua existência, como seu corpo fora domado a partir do momento em que conseguira verbalizar e realizar sua pulsões sexuais. Aliás, o filme é todo articulado com pequenos movimentos que demonstram como nosso corpo, inconscientemente, deixa transparecer os indícios de nossos desejos e das subsequentes repressões, elemento básico que eleva o ser humano da categoria de animal para a de ser civilizado. O que fica claro, entretanto, é que justamente há um ponto em que o aumento da repressão não significa uma amplitude da civilização, mas um retorno violento ao animalesco, de modo que a figura do psiquiatra hedonista Otto Gross surge para liberar as pulsões de Jung, fazendo com que ele se esquive do esforço imenso para conter seus instintos mais básicos.

Freud, por sua vez, surge como uma figura patriarcal, centralizadora – até Jung literalmente treme quando pretende discordar dele – um sedutor intelectual preocupado em firmar as bases de sua ciência, para só, então, abrir outras portas no estudo da mente. Freud está acima dos pacientes, todos os seus discípulos são inexpressivos e a relação que mantém com o suíço é marcada por discretas hierarquias: refere a si mesmo na terceira pessoa, lembrando que Jung seria seu sucessor, mas vemos inúmeras cenas em que o suíço se distancia das teorias do austríaco, em especial de sua obsessão pela sexualidade como fonte de todos os distúrbios. No entanto, só consegue verbalizar com terceiros, inclusive Sabine, nunca enfrentando diretamente Freud. Há dois detalhes que parecem resumir bem a relação ambígua entre eles, tanto no campo dos pesquisadores enquanto pessoa física, como na incompatibilidade de seus projetos epistemológicos. O primeiro está presente nas sucessivas vezes que Jung conta seus sonhos, inicia uma análise sobre ele e termina por escutar Freud dar a interpretação final, sempre associando alguma imagem com o falo e aproximando qualquer alusão de poder intelectual a ele mesmo. Só que em um determinado momento, quando o austríaco já ciente da ruptura que os espera, comenta sobre um sonho que teve, Jung pede que compartilhe o relato e o pai da Psicanálise com seu tradicional charuto na boca, enfaticamente nega, “para não colocar em questão a sua autoridade”. Freud jamais desce um degrau. O segundo momento parece velado, mas termina por esboçar o conceito de inconsciente coletivo que Jung desenvolveria posteriormente, quando Cronenberg de maneira sutil cria uma série de antagonismos de classe e raça entre os dois psiquiatras, Freud judeu e Jung ariano, atingindo o ápice quando o segundo tem um colapso nervoso a partir de um sonho recorrente, como se estivesse prevendo os horrores da Segunda Guerra Mundial.

Voltando ao objeto básico do gesto fundador da Psicanálise, não apenas a título de curiosidade, vale lembrar que até o final do século XIX, quando Freud instituiu a fala em substituição da hipnose no tratamento da histeria, essa neurose enquanto patologia vivia presa entre argumentos objetivos médicos e promessas subjetivas, o cinema segundo Cronenberg, sendo inicialmente considerada uma crise apenas feminina causada por uma perturbação no útero, na Idade Média passou a ser confundida com possessão do diabo, geralmente tratada por sacerdotes, mesmo com o desenvolvimento da medicina ao longo dos séculos, a falta de provas físicas que comprovassem uma doença orgânica, mantinha a dúvida sobre os ataques não passarem de um teatro perversamente encenado. Apenas por meio do método catártico, ou seja, uma forma da pessoa retomar o recalque que afastou algo da consciência, fez com que as características da histeria ficassem claras, formalizando-se como um sofrimento causado, sobretudo, de reminiscências, isto é, os pacientes sofrem por aquilo que não conseguem lembrar (trauma). Há nessa retomada dos dois clássicos e de suas longas discussões – dizem que no primeiro encontro passaram cerca de treze horas conversando – uma vontade de Cronenberg em encontrar, talvez pela primeira vez, a palavra necessária para verbalizar as angústias recorrentes de carreira, realçando mais uma vez seu interesse por um corpo, de seus personagens e de seu cinema, transversalmente em profundo movimento.