terça-feira, 7 de agosto de 2012

Velhos Hábitos

Montgomery Clift fotografado por Stanley Kubrick em 1949.

O cinema pernambucano entre gerações

(Artigo escrito ao lado do amigo Fernando Mendonça para o catálogo da Mostra Cinema de Garagem)

Durante a comemoração dos dez anos de Cinema da Fundação, mal terminara a concorrida sessão dupla de lançamento de Muro (2008), curta-metragem de Tião premiado no Festival de Cannes, quando os presentes no tradicional reduto do cinema pernambucano ouviram um grito estrondoso vindo da última fileira: “finalmente minha geração foi superada. Tião, você superou a nossa geração!”. O responsável pelo berro, que naturalmente se transformou num gesto poético, foi ninguém menos que Cláudio Assis, acompanhado na ocasião de seu amigo e também cineasta Lírio Ferreira. O resto da sala, ainda imóvel diante da potência vista na tela, permanecia num devastador silêncio, não podendo saber que aquele momento representava um passo decisivo para que novos horizontes cinematográficos fossem testados no estado, adentrando estatutos imagéticos diversos, buscando singularidades do dispositivo, passeando nos limites do documentário enquanto linguagem, abrindo espaço para afetos, gêneros e memórias, articulando pontes com diferentes cinematografias mundiais e, especialmente, entrelaçando estética e política de maneira mais contundente. A sessão também projetava o encontro simbólico entre o cânone do cinema pernambucano da retomada e a subversão desse cânone, subversão maior por negar sem negar um projeto recém estabelecido, não precisando fazer remissões ou entrar em conflito direto, mas simplesmente dirigindo o olhar para outro lado. 

No entanto, essa anedota serve menos para escavar um abismo ou fosso entre duas gerações da produção audiovisual de Pernambuco e mais para pensar como o longa Baile Perfumado, realizado há quinze anos, e seus sucessores diretos Simião Martiniano – O Camelô do Cinema (1998), Clandestina Felicidade (1999), Texas Hotel (1999), O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000), Amarelo Manga (2002), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Baixio das Bestas (2006), Árido Movie (2006) e Deserto Feliz (2007), abarcando o trabalho de cineastas, roteiristas e produtores como Paulo Caldas, Marcelo Gomes, Hilton Lacerda, João Vieira Jr, Camilo Cavalcante e os já citados Cláudio Assis e Lírio Ferreira, fundamentaram um terreno mais firme para que a geração posterior pudesse experimentar. Afinal, existe uma ligação umbilical em termos de campo entre subversão e cânone: o primeiro passa a existir quando o segundo demonstra o seu inevitável cansaço, estimulando pontos transversais que terminam até por reverter a direção da influência (ou seja, subversão influenciando o cânone). Enquanto os mais velhos viveram a necessidade de afirmação de projeto, um cinema árido-movie como conceito, proclamando uma juventude tardia do mangue beat encurralada entre tradição, rebeldia e modernidade, em muitos casos visitando espaços da cultura popular com uma intenção cosmopolita, a produção dos últimos quatro anos atua justamente numa dispersão de projeto único como projeto: tanto nas narrativas, como nos modelos de produção e circulação. 

Portanto, caminhamos aqui pela produção audiovisual pernambucana dos últimos quatro anos, discorrendo de forma panorâmica e ciente da impossível totalidade, no intuito de montar ao final uma lista comentada de doze filmes representativos do período, marcado pelo trabalho de cineastas como Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, Kleber Mendonça Filho, Leo Sette, Marcelo Lordello, Felipe Peres Calheiros, Leo Lacca, o casal Sérgio de Oliveira e Renata Pinheiro, Daniel Aragão, o também casal Tião e Nara Normande, Pedro Sotero, Chico Lacerda, Mariana Porto, entre outros. Eles foram responsáveis por uma das cinematografias mais festejadas do país, incluindo, entre curtas, médias e longas, títulos como Garotas do Ponto de Venda (2007), Amigos de Risco (2007), Muro (2008), Solidão Pública (2008), Sentinela (2008), KFZ – 1138 (2008), Eiffel (2008), Décimo Segundo (2008), Ocidente (2008), O Menino Aranha (2008), O Incrível Trem que Alçou Vôo (2008), Nº 27 (2009), Superbarroco (2009), Cinema Império (2009), Balsa (2009), Pacific (2009), Um Lugar ao Sol (2009), Recife Frio (2009), Confessionário (2009), Não me Deixe em Casa (2009), Avenida Brasília Formosa (2010), As Aventuras de Paulo Brusky (2010), Vigias (2010), Acercadacana (2010), Tchau e Benção (2010), A Banda (2010), Aeroporto (2010), Pacífico (2010), Faço de Mim o Que quero (2010), Ela Morava na Frente do Cinema (2011), Calma Monga, Calma (2010), Mens Sana in Corpore Sano (2011), Dia Estrelado (2011), Zenaide (2011), [Projetotorregêmeas] (2011), Projetos Vurto (a partir de 2011), Corpo Presente (2011), Praça Walt Disney (2011), A Febre do Rato (2011), Projeto Desurbanismo (a partir de 2012) e o ainda inédito na cidade, O Som Ao Redor (2012). 

Antes de prosseguirmos, contudo, é importante contextualizar uma cena com alguns apontamentos. Primeiro, praticamente todos os cineastas aqui citados, desta geração e os da geração anterior, possuem uma intensa formação cineclubista, movimento que se fortaleceu com a criação da Federação de Cineclubes de Pernambuco em julho de 2008, mas cuja história transcorre décadas atravessando iniciativas como o Jurando Vingar no início da década de 1990, o Barravento em meados dos anos 2000 e o Dissenso já no final dessa primeira década e ainda em atividade. Hoje o estado conta oficialmente com 30 cineclubes em funcionamento. Essa formação se associa à própria consolidação do Cinema da Fundação como reduto da cinefilia e o lugar preferido dos realizadores pernambucanos para promoverem suas criações em curtas e longas-metragens (atualmente dividindo esse entusiasmo com o recém restaurado Cinema São Luís). Com curadoria de Kleber Mendonça Filho e Luiz Joaquim, a salinha discreta de 196 lugares rompe diariamente com a dependência da distribuição blockbuster da cidade, mesmo com alguns recentes problemas técnicos no sistema de som, mantendo firme uma política da diversidade e do cinema poliglota, além de funcionar como um lugar de encontros, alguns dos quais silenciosos, entre pessoas que não se conhecem, não se acenam, mas cuja copresença no mesmo local foi percebida algumas dezenas de vezes. Há sempre um rosto anônimo ou amigo saindo de alguma sessão. 

Naturalmente, o repertório cinematográfico da geração mais nova está condicionado pelo acesso a filmes de diferentes lugares e épocas através da internet, fortalecido por meio da criação de comunidades virtuais em nível global, da ascensão da crítica cultural nesse meio e do visível aumento da velocidade de transferência de dados. Gabriel Mascaro, por exemplo, comenta repetidas vezes como suas melhores experiências cinematográficas foram diante de um computador e vários dos realizadores finalizam o percurso de seus filmes, depois de festivais e mais festivais, disponibilizando-os no ciberespaço. Além disso, na ausência de um curso formal de cinema na cidade (o curso na UFPE foi aprovado em 2008, com primeira turma em 2009 e poucos resultados criativos até então) todos começaram a fazer seus primeiros filmes num modus operandi conhecido localmente como brodagem, ou seja, sem dinheiro algum, contando apenas com ajuda dos amigos, usando os amadores equipamentos que tinham em mãos, seguindo numa lógica de aprender fazendo. Finalizado esse primeiro momento, alguns deles, como o próprio Mascaro e Daniel Aragão, envolveram-se em algumas produções profissionais da cidade para ganharem experiência de set na produção de longas-metragens, ambos trabalhando com Marcelo Gomes em Cinema, Aspirinas e Urubus. Quando seus filmes foram lançados não apenas no circuito local e participaram de vários festivais ao redor do país e do mundo, esses jovens voltavam e ainda estão voltando não apenas com prêmios, mas com vínculos formados, entre contatos e afetos, com cineastas que viviam uma ansiedade estética e um contexto produtivo semelhante, tais como o Alumbramento, do Ceará e a Teia, de Minas Gerais. 

A experiência formativa num cinema de baixíssimo orçamento, com os olhos atentos para onde poderiam enxugar gastos de produção, igualmente ampliando vislumbres estéticos, fez com que alguns cineastas ganhassem editais para desenvolverem curtas-metragens, podendo simular condições quase ideais de filmagem, mas voltassem ao fim do processo com um média ou um longa prontos. É o caso do longa Vigias, de Marcelo Lordello, vencedor do Concurso de Roteiros Rucker Vieira da Fundação Joaquim Nabuco, assim como do média Balsa, de Marcelo Pedroso, e do longa Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, ambos premiados com o edital Ary Severo / Firmo Neto. No caso dos dois últimos, ainda existiu um dilema na entrega do produto final, pois o edital pedia um curta finalizado em 35mm, mas eles tinham entregue um média e um longa digitais. O ano de 2008 também marca o nascimento de um novo festival na cidade do Recife, algo bastante emblemático para pensar uma distinção entre as gerações: se a primeira edição do Cine PE aconteceu em 1997, ano do lançamento de Baile Perfumado, o Janela Internacional de Cinema do Recife surge com ênfase na curadoria de curtas-metragens, estimulando jovens no desenvolvimento de um pensamento crítico, trazendo trabalhos de ímpar qualidade a nível mundial e com olhar aguçado para o escoamento da própria produção marginal do país. A presença de realizadores de fora na cidade também proporciona parcerias, intercâmbios e experiências sobre as inúmeras fragilidades do circuito independente. Aliás, se falamos num cansaço de projeto no início do texto, talvez seja importante pensar na própria falência gradual e encolhimento do Cine PE, festival que enfrentou um protesto, no ano passado, dos cineastas pernambucanos durante a cerimônia de encerramento. Quando o primeiro deles ganhou um prêmio, todos os presentes subiram no palco em forma de bolo de quinze anos e, para apontarem um desarranjo de intenções entre realizadores e festival, abriram uma faixa com letras garrafais: “Menos glamour, mais cinema”. 

A principal reivindicação era o respeito técnico pela projeção das obras, pois alguns filmes eram cortados antes do final dos créditos, e, especialmente, a incorporação da mostra exclusiva de filmes pernambucanos ao espaço do Teatro Guararapes, onde é realizado todo o resto do festival. As demandas, nesse ano, foram atendidas; no entanto, a iniciativa viveu sua edição mais esvaziada e ainda inchada de cafonas homenagens, com problemas técnicos registrados todos os dias, de filme com som prejudicado pelo equipamento até outro exibido com os rolos trocados. Não podemos esquecer também que, apesar de a produção pernambucana figurar entre as mais representativas do país, o ainda escasso parque exibidor comercial do estado, praticamente inexistente no interior, não incorporou minimamente o cinema pernambucano em sua grade. Os filmes terminam restritos aos iniciados do circuito independente, rodando o mundo em festivais, espalhando internacionalmente uma vontade intensa de observar e lutar por uma sociedade menos refém do urbanismo da desfaçatez, mas não estabelecendo uma relação sensível com o público de seu próprio lugar e com o qual, em teoria, deveriam melhor se comunicar. Os pernambucanos não conhecem o cinema de seu estado, a garagem de produção fica no Recife, mas a plataforma de exibição está sempre lá fora. Uma saída que vem sendo encontrada na cidade pode ser visualizada no já citado Balsa, que apenas por ser um média já colocava em questão seu espaço no próprio circuito alternativo, seguindo por um lançamento que contemplou simultaneamente exibições em mostras como a Semana dos Realizadores, espaços como Cineclubes e sessões em escolas públicas, com presença do diretor. A distribuição contou ainda com uma tiragem de mil DVDs, estimulando projetos posteriores e mais amadurecidos como o de Pacific, Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa, cada qual com a distribuição gratuita de um DVD para pontos de exibição gratuitos, junto com uma cartilha de cunho educativo com artigos para subvencionar o debate com o público (depois, claro, de terem sido exibidos em alguns cinemas do país por meio do projeto Vitrine).  

Seja como for, o último pressuposto refere-se à afirmação de uma política pública de cultura consolidada, que mudou as condições materiais do cinema pernambucano de uma forma ampla. Só para termos ideia, a quinta edição do Funcultura – Audiovisual, mantido pelo Governo do Estado em parceria com a Prefeitura do Recife e modelo de inspiração para propostas semelhantes em vários outros estados, destinou nesse ano R$ 11,5 milhões para distintas categorias, tais como longas-metragens, curtas, produtos para televisão, oficinas, festivais, mostras e até incentivo ao cineclubismo. Essa iniciativa é resultado de uma pressão de anos por parte dos envolvidos com o audiovisual que perpassam ambas as gerações e que sempre produziram sem um apoio financeiro efetivo. Preocupada com o futuro e a instabilidade recorrente durante mudanças de gestão, tomando inclusive o caso de Paulínia como exemplo, a classe audiovisual já começou a se articular para transformar o edital do Funcultura em lei, fincando em definitivo esse compromisso do estado com a cultura (independentemente de quem seja o gestor). Se por um lado, o edital pode terminar gerando uma dependência entre cineastas e poder público, condicionando a realização a partir do incentivo financeiro e apagando uma experiência histórica, por outro tornou a produção do estado mais profissional; cineastas, produtores e atores estão conseguindo viver de seus trabalhos e ainda assim continuam envolvidos em iniciativas, digamos, mais ideológicas, propostas com um caráter efetivo de garagem e de luta cidadã, na promoção de conteúdos livres para internet, especialmente refletindo sobre o assombroso desenvolvimento urbano da cidade. 

A cidade ocupa o cinema, o cinema ocupa a cidade 

Se pensarmos em termos comparativos, alguns centros urbanos subalternos da América Latina modificaram realmente o aspecto de sua paisagem no período entre 2001 e 2011, apostando numa conduta da verticalização conduzida por grandes construtoras, cuja lógica é transformar espaços públicos em espaços privados, não convivendo com o patrimônio cultural, mas destruindo brutalmente a história e a memória das cidades. Esse é o caso do Recife, que atualmente ocupa o posto de 21ª cidade mais vertical do mundo (no Brasil, fica atrás apenas de São Paulo e do Rio de Janeiro), um lugar cujos vinte maiores arranha-céus foram todos construídos nos últimos dez anos e que vem vivendo sucessivos confrontos entre sociedade civil organizada, administradores das empresas e gestores públicos. Diante desse cenário de transformação abusiva disfarçado de modelo de desenvolvimento, intensificado a partir da construção arbitrária das Torres Gêmeas — dois edifícios residenciais com 40 pisos cada um — no bairro histórico de São José, a cidade passou a protagonizar inúmeros filmes produzidos em Pernambuco. Recife ocupa o cinema e o cinema ocupa o Recife. Dispostos a repensarem a forma como o projeto de desenvolvimento urbano vem sendo conduzido, apontando contradições e propondo alternativas aos empreendimentos, cineastas vêm se reunindo, inclusive com diversos segmentos da sociedade, de maneira sistemática, todos acusando a própria prefeitura de ter se transformado num mero balcão imobiliário. Não é novidade para ninguém que a lógica de verticalização é uma solução que segrega as pessoas nos condomínios, eliminando completamente qualquer capacidade de circulação, de mobilidade ou de acesso direto às mais banais necessidades. O cinema pernambucano está prontamente mobilizado contra a construção desenfreada de edifícios, muitos dos quais sem estudos de impacto ambiental e que anotam efeitos ampliados na vida coletiva, formulando uma urbanização — ou desurbanização — que desumaniza o espaço compartilhado da cidade. 

Nesse sentido, um primeiro produto a mostrar a cidade sem delongas turísticas, o longa Amigos de Risco, dirigido por Daniel Bandeira, mas com participação de metade do Recife — todos presentes na sessão de lançamento para se reconhecerem e serem reconhecidos pelos outros — remonta a Veneza Brasileira como um lugar que vem perdendo suas particularidades, um lugar distante dos cartões-postais que rodam o mundo, revelando uma periferia encardida numa noitada fétida por meio de uma imagem igualmente suja. O filme produzido com menos de R$ 50 mil, imanta seu projeto estético com um caráter duplo, as imagens granuladas captadas em Mini DV endossam o ambiente hostil de um espaço em plena perda de personalidade, assim como escancara os limites do seu orçamento, apontando a garra e os percalços da produção independente. Seguindo por uma pegada mais sociológica, Gabriel Mascaro (que ao lado de Bandeira, Marcelo Pedroso e Juliano Dornelles formavam, até o ano passado, a produtora Símio Filmes) desenvolveu Um Lugar ao Sol, tomando como objeto de seu documentário uma elite específica: habitantes de diferentes cidades do Brasil que moram em coberturas. O filme foi muito criticado por criar uma teoria falsa, resumindo uma situação complexa em depoimentos de um grupo isolado, de modo a induzir os espectadores ao erro simples de acharem que a culpa estava ali, na tela diante deles. No entanto, o cineasta consegue captar a cidade em suas linhas e sombras de maneira inquietante, rompendo com o pressuposto básico da linhagem mais clichê dos documentários ao quebrar qualquer compromisso de complacência entre documentarista e entrevistados. Sua postura ideológica fica clara como alguém que usa a câmera como uma arma e filma um inimigo e especialmente seu discurso. 

Sem dúvida, a iniciativa mais emblemática desses filmes sobre urbanismo, não necessariamente pelo resultado em si, mas pelo processo e por plantar uma plataforma vigorosa de debate, é o [projetotorregêmeas], disponível na página http://projetotorresgemeas.wordpress.com/. A iniciativa reuniu durante dois anos cerca de 60 pessoas, direta ou indiretamente envolvidas, tomando os prédios da construtora Moura Dubeux, para conglomerar distintas visões sobre os rumos e transformações da cidade. O modo de produção foi bastante incomum, com abertura de inscrições para que as pessoas interessadas em participar enviassem vídeos, fotografias, áudios, ilustrações, trilhas sonoras, entre outros. O resultado trouxe uma variedade de linguagens, formatos e possibilidades de roteiro que, depois de sucessivas reuniões, terminaram decupados por cinco editores com a missão de transformarem um material bruto desvinculado entre si num filme. As várias mudanças e opiniões, contudo, não mudaram o intuito do projeto: debater as relações de poder em Recife, a partir de iniciativas que influenciam o cotidiano de quem reside na cidade. Todos os indivíduos que participaram do [projetotorresgêmeas] se mostraram inquietos com a situação, queriam protestar, revelar o nível problemático que atingimos, de tal modo que o filme funciona — para além das dissonâncias internas — como um manifesto que marca o fim da melancolia e da nostalgia enquanto pontos de fuga do cinema pernambucano, algo muito presente em outras produções sobre o mesmo tema, assumindo um tom acima para reafirmar sua militância cidadã diante da paisagem arquitetônica da cidade. Lamentar para sempre não os levariam a lugar algum. O filme foi lançado simultaneamente no IV Janela Internacional de Cinema do Recife e disponibilizado na internet, contando com mais de cinco mil visualizações. Atualmente, o mesmo grupo está começando a produzir da mesma forma colaborativa, material para um novo projeto, com o título temporário de Eleições: Crise de Representação

A não só vontade, mas necessidade, de problematizar os modelos de desenvolvimento do Recife ganhou força com aproximação da Copa do Mundo e a ansiedade administrativa dos gestores em resolver em pouco tempo problemas estruturais da cidade, sempre numa lógica de priorizar edifícios e o transporte de carros em detrimento das ciclovias e do elemento humano. Dois empreendimentos são importantes de serem citados. O primeiro propõe “resolver” o problema do trânsito – sempre vale repetir a frase de que não estamos no trânsito, nós somos o trânsito – com a construção de quatro viadutos sobre a Avenida Agamenon Magalhães, uma das mais importantes da cidade, ignorando em absoluto os impactos visuais e sociais, além de suplantar a existência de pedestres e ciclistas enquanto habitantes da cidade. O segundo é um empreendimento imobiliário faraônico, chamado cinicamente de Novo Recife, que pretende numa região próxima às Torres Gêmeas, no Cais José Estelita, destruir os antigos armazéns ali existentes para construir nada menos que treze torres, entre residenciais e comerciais de luxo. Para quem não conhece essa história, trata-se de um terreno de mais de 100 mil m², que era da União, mas foi leiloado em 2008 e arrematado por um grupo de empresas. A participação se tornou mais ativa, transpondo as telas, colocando cineastas e outras pessoas como interlocutores em audiências públicas, envolvendo-os na produção de uma petição online e até mesmo na ocupação de espaços em termos similares ao movimento #occupy. Nessa leva surgiram ao menos dois coletivos que estão produzindo conteúdo exclusivo para a internet e divulgando de maneira ampla nas redes sociais, com olhares pujantes e renovados. São eles o Vurto (http://www.vurto.com.br/) e o Contravento (http://vimeo.com/user11414332), o primeiro reunindo nomes como Marcelo Pedroso, Felipe Peres Calheiros e Gabriela Alcântara, o segundo, bem mais interessante e com menos sentimento de “Justiceiros da Cidade”, é levado por Luís Henrique Leal, Caio Zatti, Cristiano Borba e Lívia Nóbrega. Todos estão mobilizados na intenção de ampliar o debate sobre a privatização da Praia do Paiva e sobre a forma como os gerentes de uma grande construtora observam áreas estratégicas do Recife, trazendo, para frente das câmeras, especialistas de diferentes áreas para falarem sobre os recentes acontecimentos e o direcionamento geral desse processo, muitas vezes resgatando uma história cíclica de desmandos e equívocos ou mesmo retratando de maneira crítica a ideia desenvolvimentista presente no Porto de Suape. 

Fica clara a preocupação nesse conjunto de filmes como a paisagem não é só uma imagem visual, mas algo feito pela participação, pela atitude, pelas crenças, pelas práticas sociais, pelo dia a dia dos cidadãos. É unânime a ideia de que as áreas em discussão não podem ficar restritas ao uso ou ao usufruto de uma pequena parcela da população, ou seja, tomando como parábola de outros espaços, a paisagem do Cais, uma das mais bonitas da cidade, não pode ser simplesmente privatizada. Não é surpresa afirmar que a experiência urbana é também uma experiência estética. Se cada vez mais pessoas estão se mobilizando contra o projeto Novo Recife ou contra os viadutos da Agamenon Magalhães, o impulso parte da vontade em pensar a cidade como um espaço público a ser usufruído por toda a população de maneira coletiva. No entanto, alguns filmes realmente caem na simplória demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica “quem vive em casa é bom, quem vive em edifício é lobo mau”, enquanto outros lançam um olhar com mais afinco sobre a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma; a princípio uma discussão estética que, claro, não deixa de ser política, pois atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de desenvolvimento da cidade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras (sob o aval da Prefeitura, do Governo do Estado, do IPHAN e total supressão da lei dos doze bairros sancionada em 2001, que controlava o ritmo frenético dos prédios em determinadas regiões da cidade). O fato é que Recife está se transformando em um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas para outro lugar (Gentrification) e capitalizando cada metro quadrado no mercado imobiliário. A fileta básica de caráter público deixa de ser condição do espaço urbano, o que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma cultura de shopping — muito bem representada em Recife Frio — contaminada em todos os patamares da vida social. No mesmo sentido, Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, desenha com extrema habilidade e sutileza, espaços privados, imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, que emulam espaços públicos limpinhos em seus parquinhos, quadras e piscinas particulares. A experiência estética da cidade também pede que conheçamos nossos vizinhos, deixemos nossos filhos na escola sem precisar de carro, pede para utilizarmos as vias não como um lugar em que passamos e deixamos passar a nossa vida, mas como um espaço físico e espiritual que definitivamente ocupamos, mantemos relações afetivas e cuidamos. 

Os olhares singelos de um cinema sem fronteiras 

Com a transformação do cenário global e o intenso movimento tecnológico daí decorrente, as limitações que outrora prevaleciam junto às convergências do audiovisual passaram a inexistir e a própria concepção de ‘influência’ dentro das cinematografias tornou-se flexível, pois as semelhanças e reflexos buscados pelos cinemas que não mais encontram uma resistência física do espaço-tempo passam a ocorrer em intervalos cada vez menores. A antiga velocidade com que os cinemas se disseminavam, com que os filmes atravessavam as fronteiras e alcançavam novos públicos, em atrasos que podiam chegar a 5 anos ou a uma década, foi há muito vencida. Assim, questões que são colocadas hoje num determinado lugar do mundo podem ser ampliadas ou resolvidas do outro lado do planeta antes que o sol se ponha, um fato que se observa em qualquer área do conhecimento e, inclusive, nas artes. Consideramos que o diálogo nutrido por realizadores ao redor do mundo, direta ou indiretamente, é fruto de uma realidade igualmente dilatada, daí serem os anseios perseguidos por muitos tão paralelos e sintonizados. 

A crescente dificuldade de se falar no cinema de um território (um cinema pernambucano, em nosso caso) sem que, para isso, recorramos a estéticas e soluções de outros estados, países e continentes, demarca uma transitoriedade que até se localiza em períodos passados da história, mas que, sem sombra de dúvida, representa uma das condições do tempo presente. Já não é possível avaliar uma obra sem localizar os pares que, simultaneamente, estão se desenvolvendo a despeito de um contato prévio, sem uma referencialidade planejada. Por isso, a necessidade de se pensar um cinema asiático, ou ibérico, ou latino-americano, quando refletimos a situação local do cinema hoje produzido em Pernambuco.

Experimentações de linguagem, diluição dos gêneros, rompimento de formatos canônicos, são constantes mundiais do cinema contemporâneo, verificadas em filmes nas mais variadas durações e, muitas vezes, intensificadas no curta-metragem. Os bons ventos que têm caracterizado a renovação do cinema pernambucano acompanham um fluxo de qualidade global. O que nossos diretores têm provocado na linguagem, na fusão entre o documental e a ficção, e em tantos aspectos que determinam uma maneira de pensar o cinema, muito além de fazê-lo, não deve nada ao que Kiarostami, Godard, Hsiao-Hsien, ou tantos outros referenciais, no que há de mais novo no audiovisual, vem fazendo nos últimos anos. 

É muito estimulante perceber que os diálogos atuais não se limitam aos problemas de ordem técnica, ou aos temas explorados; o que vemos se formar é um verdadeiro emaranhado de questionamentos que tocam o domínio da representação em pontos nevrálgicos do entendimento criativo: quais as possibilidades de se guardar um mundo em imagens quando, ele próprio, já se tornou uma imagem distanciada de si? Como identificar um espaço de subjetividades que já não subsistem isoladamente, que dependem de sua constante exposição para serem ‘reais’? Qual o lugar do drama numa época que já não consegue interromper a ação ou fazer dela um contraponto da existência humana? Os anseios se acumulam na mesma medida em que a própria mecânica cinematográfica atravessa um período de transformações, dos mais radicais que já se registrou, seja em sua forma de produção, nos parâmetros de exibição e consumo, como no resguardo de sua memória. 

De certa forma, é também na manutenção de memórias particulares que localizamos todo um projeto comum do cinema, em expansão desde o séc. XIX, e identificamos as específicas semelhanças que saltam aos olhos do trabalho pernambucano na relação com os circuitos mundiais. São memórias dos pequenos gestos, dos cotidianos em repouso urgente, ‘memórias das coisas’ — para ficarmos numa expressão corrente aos estudos recentes do audiovisual* —, derivadas de um tratamento preocupado em localizar o natural afeto que a relação mundo x imagem apresenta. As filmagens dos corpos e das paisagens, a ‘rostidade’ resgatada pela composição de movimentos que reposicionam o cinema a um lugar de encontro, percorrem o que há de melhor na safra de filmes pernambucanos que vem ultrapassando os limites dos festivais para encontrar, num público atento, o interesse por novidade de experiência, olhares que redimensionem a expectativa de um cinema e do entorno que o cerca e faz vir à luz. 

É nesse sentido que reunimos, a seguir, uma lista comentada de filmes que potencializaram esta abordagem singela do cinema pernambucano, chegando mesmo a diluir esta concepção local (sem jamais negá-la) e favorecendo uma compreensão da identidade múltipla que hoje caracteriza o nosso cinema. São filmes que se equilibram entre o íntimo, o político, o visível, o poético, expressões que, além de um lugar, definem um tempo. 

Muro (Tião, 2008) 
Alma no vazio, deserto em expansão”. O verso divulgado como sinopse oficial do filme que redefiniu o cenário pernambucano — e por que não, mundial — de produção cinematográfica, reflete em palavras uma impressão certeira do que sua experiência provoca. Afronta aos sentidos, o trabalho de Tião é muito mais do que a apressada convicção de um rompimento, está mais para resgate, para continuidade aos nomes a quem reverencia diretamente em sua estrutura (de Méliès a Eisenstein), para a defesa de um cinema livre das amarras lógicas, consciente do artifício, em pleno domínio do que percebemos como temporalidade. Ponto de partida de uma carreira particular, Muro inaugura em si um novo mundo. Faz nascer o cinema. 

Nº 27 (Marcelo Lordello, 2008) 
Filmar a adolescência, uma constante na prática do curta-metragem contemporâneo, é o ponto de partida para Marcelo Lordello compor um dos retratos afetivos mais contundentes dos últimos anos. Sua observação da sala de aula, dos corredores e banheiros colegiais, carrega uma delicadeza sintonizada ao que há de melhor no cinema mundial de sua década, a exemplo da relação direta que traça com o imaginário dos filmes de Gus Van Sant. O drama de seu protagonista é o pretexto para uma verdadeira experimentação do tempo, da sonoridade, do extracampo, de detalhes que fazem do cinema um artesanato, uma singela composição de lembranças e sensações. Nº 27 é a imagem que carregamos não apenas quando sua projeção encerra, mas aquilo que vemos no espelho todos os dias, ainda que relutemos em enxergar. 

Pacific (Marcelo Pedroso, 2009) 
Dispositivo exposto em suas mais profundas engrenagens, o gesto de Pedroso sobre os olhares que coleta de turistas num cruzeiro é o motivo de uma intenção criativa das mais originais que o cinema contemporâneo demarca. As filmagens íntimas de um tempo que só é vivido depois de guardado, revestidas de significado cinematográfico a partir da rigorosa montagem efetuada, dão forma nas mãos do diretor a uma teia que se revela pura ficção, a despeito de sua origem documental. Um trabalho limite que atropela os gêneros para configurar uma determinada vivência em estado bruto, um intercâmbio de observações que resguarda a subjetividade ao domínio extremo da projeção. Do movimento mais simples, uma complexa significação do estar no mundo sob a mediação da imagem, a conscientização do espetáculo. 

Confessionário (Leonardo Sette, 2009) 
É na cuidadosa exposição que faz das limitações de sua linguagem que Confessionário amplia a noção de registro cinematográfico, a despeito do que se compreende por documental ou ficcional. As margens do espaço/tela, a efemeridade do plano, a finitude da película, são elementos que, contrapostos ao tom nostálgico do padre entrevistado — que somente pela sua retórica de memórias sedimenta um cinema autônomo —, dão brecha a significados emergentes na própria condição criativa de se fazer um filme. Ouvir o corte de Leonardo Sette, experimentar a pausa para o troco dos rolos e não ter acesso às imagens de continuidade, é romper com tudo que se pode esperar do cinema, com aquilo que inconscientemente se absorve do movimento, em qualquer filme, mas que aqui se desnuda sem timidez. É a extrema obscenidade, o que não se encena. 

Balsa (Marcelo Pedroso, 2009) 
Possivelmente o trabalho que melhor concentra, neste novo painel de filmes, o interesse de retornar a um estado primitivo do cinema para fazer com que ele se renove, Balsa é um olhar que suspira carregado de melancolia, pesado de sentimentos, situado na contemplação de um mundo agônico, moribundo. O ponto de vista fixado no transporte em vias de extinção, a balsa, reconfigura o movimento que desde os Lumière resguarda os acasos da vida, dos gestos cotidianos que se acumulam e renovam na densidade de expressão. Sob o conceito da câmera-olho (Vertov), Marcelo Pedroso ilumina um estado de sobrevivência latente, não apenas do que é filmado, mas daquilo que usa para filmar, do que insiste em ser linguagem e instrumento de memória. 

Recife Frio (Kleber Mendonça Filho, 2009) Uma das raras experiências criativas dentro da ficção científica no presente século, Recife Frio funciona tão bem porque constrói a sua realidade a partir de imagens que não precisaram ser forjadas, mas apenas organizadas dentro de uma coerência indicadora da preciosidade que um bom roteiro ainda pode constituir. É do real que Kleber M. F. extrai a ilusão, erige o seu mundo, acentuando sempre em justa medida a tonalidade crítica que lhe é tão cara, aqui aplicada ao contraste social, ao desequilíbrio urbano das grandes cidades, ao conflito político que se estabelece até mesmo dentro de um núcleo familiar. Sua fantasia em tempo presente desafia (e vence) não só as expectativas de um público geograficamente restrito, mas vai além, no sentido de refletir uma violência com doçura e humor, de encontrar no caos a graça da vida. 

Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2010) 
Estabelecido numa lógica orgânica, em que o olhar da câmera ecoa o olhar primeiro do mundo na relação nutrida entre o espaço natural e as intervenções urbanas, há no cinema de Gabriel Mascaro uma abertura estética em que o sentido formal e o narrativo subsistem ‘em construção’, como nas residências do bairro de Brasília Teimosa, locação principal de seu filme. Ele nos convida a uma contemplação que não pode ser adiada. Sensibiliza os espaços reintegrando o homem ao meio e em suas relações sociais. Do painel sensorial equilibrado entre as observações arquitetônicas e as condições físicas que levam um lugar ao enfrentamento da transformação, Avenida BF resulta numa procura pela respiração da cidade e dos núcleos de convivência, da vida que resta nas desgastadas estruturas de pacificação moral. É o que também resta para o cinema.

A Banda (Chico Lacerda, 2010) 
Desdobrando um procedimento de captação visual entre o registro e o questionamento da imagem, Chico Lacerda propõe através de um gesto muito simples — mas também complexo, pois talvez seja o travelling o movimento mais enigmático da linguagem cinematográfica — uma discussão da visibilidade em camadas, daquilo que vemos e negamos ou confirmamos a partir dos pequenos códigos do olhar. Não ouvimos a banda, não englobamos a totalidade do evento (uma parada gay), mas construímos pelo repertório de cenas coletadas uma vívida impressão do acontecimento, de sua presentificação. A inexistência da ‘banda sonora’ no filme, submerso no mais profundo silêncio em toda sua duração, atualiza a perspectiva essencial de uma linguagem que ainda é luz, é sombra. E não precisa de mais para o ser. 

As Aventuras de Paulo Brusky (Gabriel Mascaro, 2010) 
Concebido dentro de uma estética virtual, um viés da animação, o filme que marca o encontro de Paulo Brusky com Gabriel Mascaro dentro da plataforma ‘Second Life’ reflete questões fundamentais ao prosseguimento do cinema no séc. XXI. A partir de uma perspectiva autoral (de Brusky), a invenção sem limites técnicos (de Mascaro) conecta a mais pura fantasia à dura realidade — econômica, política — da criação artística. A dolorosa lembrança metalinguística que permeia todo o filme, de tratar-se única e simplesmente de um filme, é o que transcende o ilusório, que reveste e resgata toda uma associação entre o cinema e o sonho, concretizando o impossível e materializando subjetividades outrora apenas potenciais. Uma brincadeira muito séria que desenferruja algumas motivações há muito abandonadas pelo cinema. 

Mens Sana In Corpore Sano (Juliano Dornelles, 2011) 
Se o novo século é também caracterizado por uma intensificação do ‘cinema dos corpos’, na maneira como as imagens tocam as superfícies da forma humana e fazem da pele do filme um núcleo imediato de percepção, o bizarro trabalho de Juliano Dornelles se confirma inserido numa problemática inerente ao seu tempo histórico. Inspirado por uma estética do terror e do grotesco, e trabalhado sob uma rigorosa paleta de cores e sons que o aproximam do período mudo sem perder o equilíbrio nas referências do cinema B, Mens Sana é uma das mais felizes apropriações recentes de gênero, imprevista e eloquente, questionadora de sua própria concepção formal e do imaginário em que mergulha. Uma perfeita imagem da imperfeição. 

[Projetotorresgêmeas] (Coletivo, 2011) Dentro do formato de criação coletiva — em expansão na contemporaneidade —, possivelmente, nenhum outro filme tenha alcançado um resultado político e estético tão incisivo, em Pernambuco, quanto este [Projeto]. Motivado pela disputa imobiliária e a decorrente transformação no cartão postal e no imaginário cultural afetivo do Recife, o filme reúne um híbrido de artistas e expressões, que assinam um verdadeiro manifesto, provocação certeira a encontrar no cinema um caminho para o pensamento sobre o tempo e o espaço de uma cidade, sobre a sua transformação/diluição. A arrojada proposta de divulgação do trabalho (na rede, em festivais, cineclubes e centros de educação) acentua a urgência de sua visibilidade, enquanto propõe uma arte democrática, acessível. Ao se reclamar uma cidade, inclui-se aí o direito a seu cinema. 

A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011) Se, em meados dos anos 2000, Assis realizou Amarelo Manga como um tapa na cara do Recife, deixando na época os próprios recifenses fascinados com tamanha brutalidade, o diretor conseguiu através de seu mais recente filme escrever uma carta de amor à fragilizada cidade, um amor que contesta todas as formas de opressão, misturando um ímpeto libertário trôpego a uma crença histórica na poesia marginal. Filmado em preto e branco, vemos uma cartografia de corpos e afetos; encontros intensos, ébrios, apaixonados e inocentes, que servem bem ao intuito confuso de escárnio e celebração, fazendo com que os recifenses (não só eles!) visualizem um tempo que transcorre, uma duração, um cinema-território entre gerações que se apontam. A Febre do Rato se baseia numa escrita poética em que cada verso (cena) impulsiona, diante do real, um vivaz universo.

* Conceito desenvolvido pela profª Laura U. Marks em importantes publicações na teoria do cinema deste século, como The Skin of The Film (2000) e Touch: intercultural cinema, embodiment and the senses (2002).