sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Imortalidade e inexistência


(Publicado originalmente no Filmologia)

She said, “I know what it’s like to be dead. 
I know what it is to be sad.” 
And she’s making me feel like 
I’ve never been born. 
 Lennon/McCartney – She Said, She Said 
Mesmo escrevendo o roteiro de L’Immortelle pouco antes de Ano Passado em Marienbad, Alain Robbe-Grillet só conseguiu finalizar o projeto dois anos depois de Alain Resnais, usando a experiência concreta do cineasta sobre seu texto para traçar sua própria vereda cinematográfica. Por meio de similares enquadramentos, deslizes laterais de câmera e um programa minimalista de encenação, o escritor-cineasta enfatiza em sua primeira incursão audiovisual não apenas uma proposta que desata os nós do compromisso com o realismo clássico, mas uma narrativa transformada em barafunda através de ruínas de linguagem, descascadas e cuidadosamente colhidas de camadas subterrâneas da realidade psíquica freudiana. Assim como seus companheiros de Rive Gauche, Marguerite Duras, Agnès Varda e Chris Marker, ele escava no campo do empírico dimensões transcendentais, por meio de sua poética da sugestão, nunca definição, costurando delírios e camafeus na manta do visível. Como instantes que perduram, suas imagens, portanto, carregam duplicidades, contradições, são raízes de um estímulo vertiginoso de desorientação, fazendo com que Grillet, em seu fascínio por lugares desconhecidos, invada a história monumental com suas versões alternativas e espaços de subjetividade. Como escreveu Deleuze, o filme não segue “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes, nem sua representação indireta como intervalo ou como todo, é sua apresentação direta, seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi”. Os personagens perambulam numa cidade inundada de significantes, responsáveis por significados confusos, instáveis; tropeçam em temporalidades, confiando sua existência na palavra, mas palavra não como explicação, palavra como um código de impossível redução. 

Acompanhamos em L’Immortelle o encontro decisivo e breve em Istambul de um homem melancólico, perdido e procurando por informações, com uma sedutora mulher, numa série de passeios pelo campo limítrofe de paradigmas territoriais. Caminham com tempo livre para se apaixonar, entram nas mesquitas, visitam ruínas, declinam passagens e voltam para o ponto inicial. A mulher apenas quer ser desejada e isso é pontuado numa consciência cinematográfica, que toma como princípio de certeza, contraditoriamente, a lógica de que a sedução presume talhos de mistério. "Todo viajante ou residente europeu no Oriente tinha de se proteger de suas influências desestabilizadoras. As excentricidades da vida oriental, com seus calendários esquisitos, suas configurações espaciais exóticas, suas línguas irremediavelmente estranhas, sua moralidade de aparência perversa, eram bastante reduzidos quando apresentados num estilo de prosa normativa", escreve Edward Said. A figura feminina se torna um totem: da brincadeira com a noção de identidade nacional aos seus delineamentos faciais, ela pode ser francesa, turca ou grega; dança com o ventre quase furtando uma cultura inteira; é fantasma, sonho, vinga-se como uma lembrança que insiste em aparecer. O francês lançando seus protagonistas num estado letárgico, ele se apaixona pela imagem dela, imagem que desaparece, não cansa de projetar o que Virginia Woolf comenta na sua conferência Profissão para mulheres: “demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma que uma realidade”. A disjunção cronológica entre os planos reforça a obsessão do rapaz em reencontrar a mulher que lhe escapa, cujas informações são falsas e cuja materialidade não respeita os trâmites de uma cognição racional. Tal qual a tradicional cena de horror do labirinto de espelhos, nesse caso sob uma trilha sonora concretista, Grillet como um malabarista do tempo e do espaço, utiliza o movimento ou a ausência de movimento para que a passagem de um andarilho em frente à câmera seja um sinal para a transmutação da paisagem. 

 O filme enquanto exercício extremo de descontinuidade narrativa, encerrado entre certezas moribundas e a exacerbação do mistério, mantém as repetições com variações gradativas do Novo Romance, desenhando e redesenhando a mesma imagem, de tal modo que a mulher some aos poucos de uma sequência de fotografias passadas ad nauseam pela mão do rapaz. Grillet alfineta uma percepção histórica convencional: a mesquita X é a mais antiga da cidade, contudo foi destruída e reconstruída depois da guerra; essas esculturas são do período helênico, mas foram produzidas há trinta anos; aqui fica um cemitério dos servos de Constantino, mas as tumbas estão vazias, ninguém está enterrado sob essa terra. O cineasta não cansa de sobrepor tempos coletivos e tempos individuais: “não olhei o relógio. Se tivesse olhado, descobriria que tinha menos de quatro horas para conhecê-la e talvez isso tivesse me desesperado. Como não olhei, escoei pelo presente”. Não adianta olhar os relógios ou passantes que são estátuas, não adianta camuflar desejos obtusos com persianas fechadas, o casal não pode se beijar diante da geometria do corpo inanimado, emoldurado pela câmera rígida, câmera como uma fita métrica, um pouco mais desvairada que a utilizada por Resnais em Marienbad. “Tudo é produto de sua imaginação”, ela avisa. Grillet parece testar o próprio campo do inteligível, cruzando peregrinos, cabarés e recalques, observando jovens que se desnudam sob qualquer pretexto, mulheres sequestradas, amarradas, flageladas, num jogo sadista e erótico não efetivado pelo protagonista impotente. O filme termina, ela morre, ele morre, ninguém morre, ela continua viva na cabeça dele, porque a imortalidade só pode estar contida em alguém que, decerto, nunca existiu.

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