sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Los Muertos



(Publicado originalmente no Filmologia)

Se tomarmos como referência La Liberdad (Argentina, 2001), o filme anterior de Lisandro Alonso e por enquanto seu mais intenso trabalho cinematográfico, o início de Los Muertos (Argentina, 2004) lembra um pouco o plano em que a câmera abandona o lenhador, personagem que acompanhamos fielmente, para seguir sozinha, um tanto suspensa, desvendando texturas de uma mata fechada até o surgimento de uma caminhonete ao fundo. A natureza apaziguada pelo cineasta sofre, enfim, a intervenção humana. Aqui, mais uma vez, a câmera, como sob efeito de um wingardium leviosa, adentra o espaço essencialmente verde, isolado, brincando vez por outra com o foco numa lição imersiva entre lentes, galhos e folhas, até deixar transparecer alguns corpos mortos, possivelmente de indígenas assassinados. Surge a dúvida diante do enigma: talvez seja uma câmera subjetiva; não só isso, talvez estejamos vendo a cena do crime pelos olhos do algoz ou de um dos algozes até que vislumbramos um corpo enrijecido passando. A natureza e a espectatorialidade sofrem mais uma vez a intervenção humana: o algoz se foi, a câmera registra, então, os passos de uma última vítima, o foco insinua um olhar de despedida do ambiente bucólico ou não, talvez não seja isso, talvez Alonso esteja apenas nos obrigando a testemunhar o acontecimento responsável pelo tempo passado pelo protagonista, o belo Argentino Vargas, na prisão, dado revelado depois de um longo fade e de uma interminável sequência de afazeres domésticos prisionais. Acompanhamos sua saída, quando ele deixa uma situação de reclusão forçada para enfrentar uma reclusão induzida no meio de uma floresta tropical, lugar que morava anteriormente, lugar que precisa voltar, acostumar-se e com o qual vai re-estabelecendo gradualmente um estado de integração. 

Na busca de Vargas para restaurar um passado interrompido, acompanhado do encontro com uma familiar deixada de lado, numa adaptação meio Coração das Trevas, menos Apocalipse Now, Alonso vai reforçando seu projeto de cinema. A compra de um presente para a filha, ainda que não saiba a idade que ela deve estar; o encontro com uma prostituta e o sexo cru, sem qualquer articulação de sensualidade e erotismo; os breves rituais de despedida da civilização, um cigarro industrializado, uma conversa antes do barco ou toda sequência de limpeza do rosto embrutecido (cortar o cabelo, raspar a barba, trocar a roupa). Aliás, há, não sei se de maneira intencional, uma diferença diante dos outros filmes pela intrigante beleza do protagonista: mesmo estando um longo tempo encarcerado, Argentino Vargas possui um corpo bronzeado, numa cor que parece a conjunção de várias outras cores; seu cabelo grisalho resplandece, cortado ou não; ele mantém uma efígie portentosa, é barrigudo, mas exibe músculos rijos; possui uma face firme, de expressões duras, rigorosas; parece talhado por mãos indígenas abarcando traços de várias culturas e, claro, ostenta um comportamento sóbrio, revelando-se supra-independente da sociedade, capaz de qualquer ato para sobreviver absolutamente sozinho. O cinema do personagem – pós-dramático, que seja – atinge outro patamar não necessariamente por intervenção do cineasta, mas pela força expressiva – mesmo da não-expressão – do ator. Sua trajetória, de fato, marca uma transformação do sensível, o campo sonoro é inteiramente remixado, o rio traz um silêncio perdido e avassalador, as árvores servem de guia com os galhos que se batem, os insetos e os seus sons parecem se multiplicar, de modo que quanto mais entra na floresta, mais a câmera se aproxima de La Liberdad, ou seja, assume-se como uma testemunha do mundo ordinário e da ausência enquanto matéria cinematográfica. O verde, novamente, preenche toda a tela. 

Durante o período em que Vargas ainda está na prisão, um dos personagens secundários que aparecem e somem comumente nos filmes do argentino, ao produzir uma cadeira manualmente, comenta que “o resultado do trabalho fica melhor com o tempo”. Alonso parece transpor essa lógica dos artesãos que passam a vida produzindo objetos similares, para seus planos cada vez mais longos, como se mantivesse a crença de que é necessário esperar para conseguir aprimorar seu estilo hiperminimalista. A espera também está presente na alimentação sem intermediários e no olhar sobre gerações que lança no final de Los Muertos, pois diferentemente dos ‘civilizados’, os anos podem correr, as décadas podem passar, mas a infância na mata continuará sem grandes mudanças. Avô, filha e neto comungam do mesmo tempo, de modo que os brinquedos da última cena surgem como imagem de uma utopia pessoal. No entanto, se globalmente formos pegar os filmes do cineasta, sua trajetória só pode ser pensada como uma história da derrocada, todos elementos de um cinema artesanal, repetidos a exaustão, vão pouco a pouco perdendo ênfase, tornando-se fuligem, arruinando um ímpeto estético. Como disse um amigo certa vez, exagerando, claro, é possível escrever uma mesma crítica e usá-la para todos os filmes de Alonso. Seja como for, a decadência pode já ser percebida em Los Muertos, pois na tentativa de fazer um filme irmão do anterior, com um apuro fotográfico mais evidente, destoa da condição primitiva da narrativa com uma sofisticação rendida. Se a morte do tatu no mais antigo aparece como uma cena chave para a simbiose entre homem e natureza, algo almejado com os favos de mel no segundo, termina abandonado com a morte da cabra pelas mãos de Vargas, com a retirada de suas vísceras diante da câmera, cadenciando uma vontade de concessão narrativa, algo que explode nas películas seguintes. Há o momento em que fazer cadeiras é novo, cheio de vigor e há o momento em que fazer cadeiras para sempre nada mais é que conformismo. Alonso deveria saber disso.

Dos en la Vereda



(Publicado originalmente no Filmologia)

Com os olhos certamente encantados pelo tédio como um problema filosófico, Lisandro Alonso, em parceria com Catriel Vildosola, sacou sua câmera em direção ao seu primeiro filme, Dos en la Vereda (Argentina, 1995), esboçando um curta de quatro minutos que, numa única tomada, mostra dois amigos sentados embaixo de uma marquise numa viela. Eles bebem uma Quilmes, observam o mundo com desinteresse, soltando eventuais e breves frases sobre uma mulher que passa, sobre um convite nunca efetivado ou sobre a necessidade de comprar outra cerveja. Parecem cansados, enfadados, escutam rádio e fumam um cigarro, enquanto os diretores traçam de maneira bastante minimalista um registro da ausência por meio de um tempo que se dilata, um tempo arrastado em que nada acontece até o fim. Há, contudo, uma ambiguidade nas imagens, pois o tédio não surge apenas como um estado sem estímulo, o direto contrário do afeto no sentido literal de afetar, mas como um comportamento político em potência: vindo do termo latim tædium, do verbo tædere, traduzido como fastio, desgosto, aborrecimento, dissabor, enjôo, repugnância, tudo que enfada, molesta, cansa, incomoda, o conceito pode ser pensado como uma aversão completa diante dos rumos de uma sociedade mecanizada e racional que perdeu as certezas de uma fé, uma negação tão abrupta que produz uma absoluta indiferença diante da realidade. Com a ascensão reivindicada pelo Romantismo, o tédio é uma experiência própria da Modernidade, uma perda de significado, a mortificação simbólica do ser.

A apatia provinda desse estado, para alguns filósofos um estado que reforça propriedades de nossa humanidade, é marcada também por um desinteresse estético, ainda que Heidegger, dando uma conotação existencialista ao debate, destaque o tédio como o sentimento que revela a totalidade das coisas em sua indiferença. Essa é a premissa, inclusive, que inspira Alonso em boa parte de seu cinema. Há uma busca pelo momento menor entre os momentos que deveriam ser maiores e dignos de lembranças, o tédio é o tempo que não deve ser lembrado depois que estamos curados, é um tempo tentador, onde todos os movimentos forçados nos levam à falta de ação. Trata-se de um estado que funciona como resposta, um instinto de negatividade intenso por entender as arestas vacilantes de um sistema opressor, desprezando-as em absoluto, podendo chegar ao limite de tirarmos a própria vida para afirmar o desacordo. O tédio é repetição, são os jogos, os cigarros e as pequenas distrações, não necessariamente uma ausência de sentir, mas a impossibilidade de se emocionar como os dados de um mundo deveras cartografado. A própria câmera de Alonso parece sem grande interesse pelos personagens embaixo da marquise, as lentes flagram os dois rapazes apenas por acaso, observando-os por um breve tempo até seguir adiante. A amizade em cena não está distante do desinteresse, um parece totalmente previsível para o outro, como se ambos já soubessem decoradas todas as histórias – elas não serão mais contadas – de modo que marcam aquele contato ínfimo e íntimo através da indiferença.

Sobre homens e ratos

James Bond se consolidou ao longo das últimas seis décadas não apenas como um ícone ocidental de masculinidade, mas como o símbolo cinematográfico maior de um glamour heterossexual, também heteronormativo, por meio da figura mítica do homem britânico de meia idade, charmoso, inteligente, bem vestido, boêmio, galante, sagaz e com uma forte inclinação machista. Nada é capaz de irritar tanto Bond quanto uma mulher lhe ultrapassando no trânsito. Seja como for, mesmo não sendo a melhor cena do filme, menos ainda da franquia, a sequência de Skyfall (EUA / Reino Unido, 2012) em que o vilão, interpretado por Javier Bardem, seduz e coloca a orientação sexual do agente secreto em dúvida, pode ser considerada a mais emblemática dos últimos tempos. Bardem começa amarrando Bond numa cadeira, ele abre a camisa do agente, passa a mão sobre uma cicatriz no peito dele, então acaricia lentamente um mamilo para depois acariciar o outro. A sala de cinema essencialmente hétero reagiu com o típico “hmmmmmmmmm” vindo diretamente do fundão da 4ª série B. Em seguida, o vilão passa lentamente a mão no pescoço de 007, enquanto conta uma história sobre como exterminou uma praga de ratos de sua ilha: atraiu todos eles para um baú, lacrou e lançou no mar, de forma que os animais começaram a comer uns aos outros até sobrarem apenas dois ratos. “Então, nós os soltamos de volta na ilha, mas a partir daquele momento aqueles dois ratos só se alimentariam de ratos. Nós mudamos a natureza deles”. O vilão solta, então, a pergunta que novamente estimularia a plateia num “hmmmmmmmmm” 4ª série B por causa do duplo sentido na legenda em português: “Bond, nós somos como esses dois ratos, por que não nos comemos?”. Bardem pega com força nas coxas bem abertas do agente secreto, enfatizando que existe primeira vez para tudo. Acontece que Daniel Craig, para desconcerto da plateia masculina que se projeta nele, responde a frase capaz de ressignificar toda história do agente secreto: “e o que faz você pensar que seria a minha primeira vez, meu caro?”. Não devem ter sido poucos, que depois disso, foram assistir a todos os filmes da franquia em busca dos indícios.